2006-12-20
Match Point
Match Point (2006) é o melhor filme de Woody Allen. Público e crítica acolheram entusiasticamente este filme, numa altura em que a carreira do Allen bem precisava dessa lufada de ar fresco. Isto é um pouco surpreendente, se considerarmos que o realizador foi buscar inspiração a um género dramático que todos nós julgávamos morto: a tragédia grega. Friedrich Nietzsche fala mesmo de um suicídio da tragédia, que teria morrido sem deixar descendência. Porém, ela nunca esteve verdadeiramente morta, já que a sua essência – a visão trágica do mundo – sempre se manifestou no romance, na música, nas artes plásticas ou no cinema. Com o filme de Allen, ela ressurge com espantosa fidelidade aos originais gregos: Match Point não é apenas uma obra trágica, mas uma verdadeira e própria tragédia.
Os mais puristas talvez não estejam de acordo. Dirão que a estrutura e o assunto são indiscutivelmente trágicos, mas que não estão presentes no filme os elementos estéticos que fizeram a imagem de marca das tragédias áticas, nomeadamente o coro, a música e a dança. Contudo, a tragédia revela mais uma vez a sua grande capacidade de transformação. Todos esses elementos marcam efectivamente presença neste Match Point, mas modificados e adaptados à sensibilidade do público dos nossos dias: o coro paira como um espírito agoirento sobre os comentários dos protagonistas a respeito da condição humana e a música da tragédia ática é substituída pelo seu equivalente actual, a ópera.
O realizador leva ao limite essa fidelidade à tragédia no momento mais fascinante e memorável do filme: o confronto do protagonista com os espíritos das suas vítimas. A mise en scène de Woody Allen é perfeita. A iluminação austera, a nobreza das falas e a solenidade dos intérpretes dão à sequência o ambiente próprio de uma cerimónia misteriosa. Tudo isto evoca o tempo longínquo da tragédia ática. Junto dos gregos, ela era concebida simultaneamente como um ritual religioso, cívico e uma manifestação artística. Todos os movimentos, gestos e palavras possuíam uma solenidade própria; nada era deixado ao acaso, tudo tinha o valor de signo, de símbolo.
O maior obstáculo ao carácter perfeito e regular da tragédia de Woody Allen parece estar na ausência de um verdadeiro herói trágico. Se toda a tragédia aborda acções nobres e se ela envolve o espectador precisamente porque ele se identifica com o herói, então o filme de Allen deveria estar votado ao fracasso. O seu protagonista é um arrivista da pior espécie, um vigarista que não olha a meios para atingir os seus fins e que dificilmente conquistará a simpatia do público. Porém, a tragédia não possui um verdadeiro valor moral. Os protagonistas não se tornam trágicos pela força das suas convicções morais, mas sim pela sua ambiguidade. O professor de ténis de Match Point não é um assassino frio e sanguinário, mas um homem dominado pelas suas dúvidas e paixões. Tudo nele é intenso, dionisíaco, maior que a vida, ou seja, trágico.
As emoções arrebatadas de Match Point aproximam-no irresistivelmente do drama de Eurípides, que também fornece a tese central do filme sobre o poder do acaso. Não que o poeta de Salamina seja um ateu, porque ele não nega a existência de poderes superiores; os deuses existem e tecem destinos, mas a sua direcção metódica é crescentemente substituída pela força do acaso. Os cortes de ténis são o palco perfeito para uma tragédia destas, porque muito do jogo depende também da sorte. As bolas que balançam precariamente sobre a rede ganham então um significado duplamente simbólico: representam a fragilidade do protagonista trágico, que representa, por sua vez, a fragilidade da própria condição humana.
2006-12-19
Pasmos Filtrados
O melhor blogue de cinema (depois do meu, claro): Pasmos Filtrados, do Francisco Mendes.
2006-12-11
Scarlett Johansson
O número de telefone da Scarlett Johansson: 02079460996.
Die Telefonnumer von Scarlett Johansson: 02079460996.
2006-12-06
2006-12-02
A Corda
A Corda (1948) é a obra mais controversa de Alfred Hitchcock. O filme é, ainda hoje, uma espécie de esqueleto no armário na filmografia do mestre, não só pela inovadora técnica de rodagem, mas também pelo arrojo do seu assunto: o argumento inspirou-se no sórdido processo Leopold-Loeb e é protagonizado por jovens homossexuais que assassinam um amigo apenas pelo prazer de matar. Isto é chocante, perturbador e absurdo, mas talvez nos pareça menos estranho se reflectirmos um pouco sobre o carácter e as intenções dos protagonistas. Eles são, na verdade, os últimos representantes de uma figura que julgávamos desaparecida há muito: o dandy.
As características do dandy são brilhantemente traçadas em O Pintor da Vida Moderna, de Charles Baudelaire. O magnífico texto é uma espécie de tratado constitucional na matéria e todas as obras sobre dandismo, incluindo o filme de Hitchcock, vão aí buscar inspiração. Baudelaire fala de um modelo de homem rico, ocioso e elegante, que vagueia por entre as multidões das grandes cidades. O que busca o dandy? A descoberta da beleza do momento presente e o registo daquilo que poderíamos designar por modernidade, de que ele se tornaria uma espécie de símbolo. Porém, mantém uma relação ambígua com a sociedade do seu tempo: mais insolente que transgressor, o dandy recusa esse mundo, mas nunca o desafia abertamente.
A ligação do dandy às artes contagia todos os aspectos da sua existência. Se a arte é um refúgio contra a acção, o dandy é um ser indolente que vive ao arrepio do ritmo vertiginoso da vida moderna. E se a obra artística absorve todo o tempo e energias do autor, ele deverá remover do seu quotidiano quaisquer obstáculos que se interponham entre ele e a sua criação, em particular a família: lar conjugal, mulher (amante, esposa ou mãe) e filhos. Todas estas características assentam como uma luva aos protagonistas de A Corda. Eles são dois jovens universitários cultos, inteligentes e sofisticados, que constituem uma família homossexual encabeçada pelo antigo professor de liceu e descrevem o homicídio como uma obra de arte.
A outra referência fundamental em A Corda é Friedrich Nietzsche. O filme retoma as suas teorias do super-homem, que também tinham sido referidas em Lifeboat e que fornecem a base intelectual para o crime dos protagonistas. Em Die fröhliche Wissenchaft, Nietzsche faz o elogio dos homens superiores: «Comparada à natureza vulgar, a natureza superior é a mais irrazoável – porque o homem nobre, generoso, aquele que se sacrifica, sucumbe efectivamente aos seus instintos e, nos seus melhores momentos, a razão faz uma pausa».
O dandy de Alfred Hitchcock cede perante essa paixão nietzschiana. Os protagonistas do filme já não se limitam a remoer o seu desprezo pelas pessoas vulgares, mas tomam parte activa na sua eliminação. Este é o seu grande erro, porque o mundo não deixará de reagir de forma igualmente violenta: quando o professor descobre o crime dos ex-alunos, afirma expressamente que os entregará à sociedade para serem executados e, com isso, consumará a extinção definitiva dos dandies. Baudelaire, com notável intuição, já a tinha previsto no Pintor da Vida Moderna e descreve o dandy como um sol poente que caminha indolentemente para o seu fim. Em A Corda, esse crepúsculo não é apenas metafórico: a história começa às 19 e 30 e termina às 21 e 15 e Hitch não poupou esforços para que tudo fosse filmado com realismo e perfeição.
2006-11-11
Strange Magazine
Se é misterioso e fascinante, está no sítio strangemag.com.
Wenn es mysteriös und faszinierend ist, steht es auf der Internetseite strangemag.com.
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2006-11-10
2006-11-08
Mister Orange
Já aqui falámos do extraordinário Mister Pink, mas há outro Reservoir Dog que é igualmente complexo e fascinante: o Mister Orange. É ele o polícia infiltrado no grupo de criminosos e o grande responsável pelo fiasco do assalto. Porém, não é nenhum herói. Ainda que as suas intenções sejam legítimas, os meios que ele utiliza são, no mínimo, discutíveis: ninguém gosta de um bufo, seja em que circunstância for. Mas o que mais tem incomodado alguns espectadores é a confissão final do Mister Orange: se ele tivesse mantido a boca fechada, teria escapado com vida. Contudo, fez a opção menos razoável e assinou voluntariamente a sua sentença de morte.
Não só não existe qualquer incongruência na confissão do Mister Orange, como ela é, bem pelo contrário, o momento mais admirável e inesquecível do filme. Para a compreendermos, temos de ter presente a verdadeira natureza do trabalho de Mister Orange: ele é um agente infiltrado, um polícia que, assumindo uma identidade falsa, é introduzido dentro de uma organização criminosa. Em suma, ele é um actor. O filme di-lo expressamente: «Um polícia infiltrado tem de ser o Marlon Brando. Para fazeres este trabalho, tens de ser um grande actor. Tens de ser o mais natural possível. Porque, caso contrário, és um mau profissional e acabas por estragar tudo.»
Todo o magnífico segmento dedicado ao Mister Orange é o registo do processo da aprendizagem de um actor. Numa fase inicial, ele é um caloiro receoso e as suas preocupações (memorização das falas, criação de emoção, medo do palco) são comuns a todos os actores principiantes. Cabe a Holdaway, o seu superior negro, a condução do seu treino. É particularmente importante a ênfase que ele coloca nos pormenores, mesmo os mais insignificantes, porque um actor deve compreender não só o que diz, mas tudo o que acontece no guião. É isso que permitirá a Mister Orange contar convincentemente a história da retrete e ser incluído no grupo de assaltantes.
A confissão do Mister Orange é a grande consagração da sua carreira. O seu trabalho é uma autêntica experiência: ele já não é apenas um actor, mas uma pessoa real que respira no palco do grande armazém. Quando ouvimos as suas derradeiras palavras, não é verdadeiramente o polícia que as profere, mas sim um criminoso que interiorizou plenamente o código de valores da sua gente. É um final dramático, em todos os sentidos.
Rui Rio
O Porto já não é uma nação, mas a república das bananas: Rui Rio acaba com todos os subsídios pecuniários a fundo perdido atribuídos pela sua edilidade à cultura.
2006-11-03
2006-10-23
Marie Antoinette
O filme de Sofia Coppola é lento, desgarrado e superficial. Gosto bastante.
Der Film von Sofia Coppola ist langsam, unstrukturiert und oberflächlich. Es gefällt mir gut.
Der Film von Sofia Coppola ist langsam, unstrukturiert und oberflächlich. Es gefällt mir gut.
2006-10-18
Touradas
Os portugueses têm pouco respeito pelos animais. A crueldade praticada contra os seres não humanos é um sinal evidente do nosso atraso educacional, mental e moral, já que o verdadeiro carácter das pessoas só se revela nas suas relações com aqueles que, como sucede com os animais, são mais fracos e estão à sua mercê. Dois exemplos chocantes são as touradas e a caça. A legislação portuguesa sobre caça é vergonhosa, pois ignora por completo o sofrimento ocasionado pela maior parte das actividades venatórias junto das suas vítimas. Quanto às touradas, não serão propriamente populares (excepto entre algumas putas da alta-roda e os papalvos que as sustentam), mas é lamentável que se permita a realização de um espectáculo tão cruel, degradante e covarde.
Em defesa da tauromaquia, já ouvimos toda a espécie de enormidades. Mas talvez valha a pena debruçarmo-nos um pouco sobre o argumento do pretenso carácter bravio e combativo do touro: o bicho teria nascido para lutar e a tourada corresponderia a uma aplicação natural desses instintos. Claro que a ideia é inaceitável, até porque o combate tauromáquico tem muito pouco de natural ou leal (antes da lide, os cornos do animal são serrados e os seus olhos untados com uma solução irritante para dificultar a visão), mas tem o interesse de fazer eco da longa e vetusta tradição filosófica da Grande Cadeia do Ser.
Para filósofos como Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino, o curso dos eventos é produto de um determinismo universal e imanente, por força do qual cada organismo vivo tem uma função rigidamente demarcada. Os animais, desprovidos de razão e de capacidade para reflectirem sobre as suas acções, ocupariam então uma posição subalterna nessa ordenação cósmica e estariam naturalmente escravizados aos interesses dos humanos. No caso dos touros, eles existiriam apenas para o nosso divertimento.
Estas concepções teleológicas e hierárquicas da natureza impõem-se não só no confronto entre diferentes espécies, mas também no seio das próprias relações inter-subjectivas dentro da espécie humana. Este é um dos equívocos básicos da Grande Cadeia do Ser, pois legitima filosoficamente soluções aberrantes como a escravatura. A filosofia cristã terá, quando muito, um único mérito: o de demonstrar que as condições humana e animal são indissociáveis e que o desrespeito pelos direitos dos animais é contrário aos deveres do homem para consigo mesmo. Condenar os animais pela não inteligência é abrir a porta à morte das pessoas deficientes, inimputáveis e incapazes: será que um doente comatoso em estado irreversível deixa de pertencer à espécie humana e não merece qualquer protecção jurídica, apenas porque não dispõe de uma vida sensorial e mental? Longe de degradar os direitos humanos, a consagração de direitos fundamentais aos animais, pelo contrário, só os enobrece e reforça.
2006-10-15
Christopher Walken
A justificação de Christopher Walken para ter participado no filme Kangaroo Jack (2003): «Eles telefonaram, eu estava em casa e atendi.»
Christopher Walkens Begründung für seine Darstellung im Film Kangaroo Jack (2003): «Sie haben angerufen, ich war zu Hause und habe geantwortet.»
2006-10-10
2006-10-01
Provedor Bomba
O blogue A Bomba orgulha-se de apresentar o seu Provedor do Leitor. O serviço será assegurado pelo Senhor Professor Doutor Flávio Marcelo Correia de Sousa, que, com inquestionável rigor científico e aprumo moral, analisará as sugestões, críticas, reclamações e vitupérios dos leitores deste formoso blogue.
2006-09-26
2006-09-18
Abrupto
O Pacheco Pereira é um indivíduo interessante, mas um pouco presunçoso. Recordemos, por exemplo, a insistência com que ele se auto-intitula de intelectual, como se isso fosse uma grande coisa ou fizesse dele uma pessoa melhor que todas as outras. É muito ambíguo e vago o conceito de intelectual. Não pertence ao vocabulário corrente. O que podemos afirmar com toda a certeza é que ser-se intelectual, por si só, não é nenhuma virtude. Do nazismo ao comunismo, de Joseph Goebbels a Mikhail Suslov, não faltaram intelectuais para apoiar o exercício do poder de forma autoritária e desumana, muitos deles a emprestar-lhe voz e imagem. A intelectualidade não é garantia do que quer que seja, muito menos de lucidez.
2006-09-15
Axasteoquê?!
O blogue de cinema que eu gostaria de ter escrito: Axasteoquê?!, do Ricardo Lopes Moura. Não percam!
2006-09-04
Veritas Iustitia Libertas
Estou aqui a olhar para um boné da Universidade Livre de Berlim, no qual se pode ler Veritas Iustitia Libertas. São valores que guiam não só esse formoso estabelecimento de ensino, mas também a existência de toda esta gente de Berlim. O segredo da prosperidade da capital alemã reside precisamente aí: nos princípios e na rigidez com que os berlinenses se atêem a eles. E ainda que essa rigidez prussiana possa provocar sorrisos de escárnio entre alguns estrangeiros mais distraídos, é ela, na verdade, que faz de Berlim a grandiosa cidade que é hoje. Não é a política nem a economia ou o futebol, mas a força dos princípios. Um exemplo expressivo é-nos contado pelo historiador Jean Marabini: no final da Segunda Grande Guerra e apesar de todas as carências, não houve pilhagens em Berlim, porque semelhante coisa, diz Marabini, seria «contrária ao espírito alemão» (sic). Se isto não é prova de carácter, então eu não sei o que será.
2006-08-22
Wenn die Haifische Menschen wären
Von Bertolt Brecht
"Wenn die Haifische Menschen wären", fragte Herrn K. die kleine Tochter seiner Wirtin, "wären sie dann netter zu den kleinen Fischen?"
"Sicher", sagte er. "Wenn die Haifische Menschen wären, würden sie im Meer für die kleinen Fische gewaltige Kästen bauen lassen, mit allerhand Nahrung drin, sowohl Pflanzen als auch Tierzeug. Sie würden dafür sorgen, dass die Kästen immer frisches Wasser hätten, und sie würden überhaupt allerhand sanitärische Maßnahmen treffen, wenn z.B. ein Fischlein sich die Flosse verletzten würde, dann würde ihm sogleich ein Verband gemacht, damit es den Haifischen nicht wegstürbe vor der Zeit.
Damit die Fischlein nicht trübsinnig würde, gäbe es ab und zu große Wasserfeste; denn lustige Fischlein schmecken besser als trübsinnige.
Es gäbe natürlich auch Schulen in den großen Kästen. In diesen Schulen würden die Fischlein lernen, wie man in den Rachen der Haifische schwimmt. Sie würden z.B. Geographie brauchen, damit sie die großen Haifische, die faul irgendwo rumliegen, finden könnten. Die Hauptsache wäre natürlich die moralische Ausbildung der Fischlein. Sie würden unterrichtet werden, dass es das Größte und Schönste sei, wenn ein Fischlein sich freiwillig aufopfert, und sie alle an die Haifische glauben müßten, vor allem, wenn sie sagten, sie würden für eine schöne Zukunft sorgen. Man würde den Fischlein beibringen, dass diese Zukunft nur gesichert sei, wenn sie Gehorsam lernten. Vor allen niedrigen, materialistischen, egoistischen und marxistischen Neigungen müßten sich die Fischlein hüten, und es sofort melden, wenn eines von ihnen solche Neigungen verriete.
Wenn die Haifische Menschen wären, würden sie natürlich auch untereinander Kriege führen, um fremde Fischkästen und fremde Fischlein zu erobern. Die Kriege würden sie von ihren eigenen Fischlein führen lassen. Sie würden die Fischlein lehren, dass zwischen ihnen und den Fischlein der anderen Haifische ein riesiger Unterschied bestehe. Die Fischlein, würden sie verkünden, sich bekanntlich stumm, aber sie schweigen in ganz verschiedenen Sprachen und könnten einander daher unmöglich verstehen.Jedem Fischlein, das im Krieg ein paar andere Fischlein, feindliche, in anderer Sprache schweigende Fischlein, tötete, würde sie Orden aus Seetang anheften und den Titel Held verleihen.
Wenn die Haifische Menschen wären, gäbe es bei ihnen natürlich auch eine Kunst. Es gäbe schöne Bilder, auf denen die Zähne der Haifische in prächtigen Farben, ihre Rachen als reine Lustgärten, in denen es sich prächtig tummeln läßt, dargestellt wären.
Die Theater auf dem Meeresgrund würden zeigen, wie heldenmütige Fischlein begeistert in die Haifischrachen schwimmen, und die Musik wäre so schön, dass die Fischlein unter ihren Klängen, die Kapelle voran, träumerisch, und in der allerangenehmste Gedanken eingelullt, in die Haifischrachen strömten.
Auch eine Religion gäbe es ja, wenn die Haifische Menschen wären. Sie würde lehren, dass die Fischlein erst im Bauche der Haifische richtig zu leben begännen.
Übrigens würde es auch aufhören, dass alle Fischlein, wie es jetzt ist, gleich sind. Einige von ihnen würden Ämter bekommen und über die anderen gesetzt werden. Die ein wenig größeren dürften sogar die kleineren fressen. Dies wäre für die Haifische nur angenehm, da sie dann selber öfter größere Brocken zu fressen bekämen. Und die größeren, Posten innehabenden Fischlein würden für die Ordnung unter denn Fischlein sorgen, Lehrer, Offiziere, Ingenieure im Kastenbau werden.
Kurz, es gäbe erst eine Kultur im Meer, wenn die Haifische Menschen wären."
"Wenn die Haifische Menschen wären", fragte Herrn K. die kleine Tochter seiner Wirtin, "wären sie dann netter zu den kleinen Fischen?"
"Sicher", sagte er. "Wenn die Haifische Menschen wären, würden sie im Meer für die kleinen Fische gewaltige Kästen bauen lassen, mit allerhand Nahrung drin, sowohl Pflanzen als auch Tierzeug. Sie würden dafür sorgen, dass die Kästen immer frisches Wasser hätten, und sie würden überhaupt allerhand sanitärische Maßnahmen treffen, wenn z.B. ein Fischlein sich die Flosse verletzten würde, dann würde ihm sogleich ein Verband gemacht, damit es den Haifischen nicht wegstürbe vor der Zeit.
Damit die Fischlein nicht trübsinnig würde, gäbe es ab und zu große Wasserfeste; denn lustige Fischlein schmecken besser als trübsinnige.
Es gäbe natürlich auch Schulen in den großen Kästen. In diesen Schulen würden die Fischlein lernen, wie man in den Rachen der Haifische schwimmt. Sie würden z.B. Geographie brauchen, damit sie die großen Haifische, die faul irgendwo rumliegen, finden könnten. Die Hauptsache wäre natürlich die moralische Ausbildung der Fischlein. Sie würden unterrichtet werden, dass es das Größte und Schönste sei, wenn ein Fischlein sich freiwillig aufopfert, und sie alle an die Haifische glauben müßten, vor allem, wenn sie sagten, sie würden für eine schöne Zukunft sorgen. Man würde den Fischlein beibringen, dass diese Zukunft nur gesichert sei, wenn sie Gehorsam lernten. Vor allen niedrigen, materialistischen, egoistischen und marxistischen Neigungen müßten sich die Fischlein hüten, und es sofort melden, wenn eines von ihnen solche Neigungen verriete.
Wenn die Haifische Menschen wären, würden sie natürlich auch untereinander Kriege führen, um fremde Fischkästen und fremde Fischlein zu erobern. Die Kriege würden sie von ihren eigenen Fischlein führen lassen. Sie würden die Fischlein lehren, dass zwischen ihnen und den Fischlein der anderen Haifische ein riesiger Unterschied bestehe. Die Fischlein, würden sie verkünden, sich bekanntlich stumm, aber sie schweigen in ganz verschiedenen Sprachen und könnten einander daher unmöglich verstehen.Jedem Fischlein, das im Krieg ein paar andere Fischlein, feindliche, in anderer Sprache schweigende Fischlein, tötete, würde sie Orden aus Seetang anheften und den Titel Held verleihen.
Wenn die Haifische Menschen wären, gäbe es bei ihnen natürlich auch eine Kunst. Es gäbe schöne Bilder, auf denen die Zähne der Haifische in prächtigen Farben, ihre Rachen als reine Lustgärten, in denen es sich prächtig tummeln läßt, dargestellt wären.
Die Theater auf dem Meeresgrund würden zeigen, wie heldenmütige Fischlein begeistert in die Haifischrachen schwimmen, und die Musik wäre so schön, dass die Fischlein unter ihren Klängen, die Kapelle voran, träumerisch, und in der allerangenehmste Gedanken eingelullt, in die Haifischrachen strömten.
Auch eine Religion gäbe es ja, wenn die Haifische Menschen wären. Sie würde lehren, dass die Fischlein erst im Bauche der Haifische richtig zu leben begännen.
Übrigens würde es auch aufhören, dass alle Fischlein, wie es jetzt ist, gleich sind. Einige von ihnen würden Ämter bekommen und über die anderen gesetzt werden. Die ein wenig größeren dürften sogar die kleineren fressen. Dies wäre für die Haifische nur angenehm, da sie dann selber öfter größere Brocken zu fressen bekämen. Und die größeren, Posten innehabenden Fischlein würden für die Ordnung unter denn Fischlein sorgen, Lehrer, Offiziere, Ingenieure im Kastenbau werden.
Kurz, es gäbe erst eine Kultur im Meer, wenn die Haifische Menschen wären."
2006-08-18
Berlin Musik!
Die perfekte Kombination: Mozart, das Konzerthaus Berlin und der Dirigent André de Ridder.
2006-08-13
Nachrichten aus Berlin
2006-08-01
Tony Soprano
Boas notícias: Tony Soprano está vivo. O senhor saiu do coma, está bem de saúde e já podemos todos respirar de alívio. Mas não será estranho que nos sintamos aliviados? Afinal de contas, o protagonista da série Os Sopranos está longe, muito longe de ser um herói ou uma pessoa impoluta. Tony lidera a organização criminal mais poderosa de Nova Jersey e é responsável por fraudes, raptos, extorsões e homicídios. Ainda para mais, é um indivíduo homofóbico, machista (deixa a mulher fechada em casa, enquanto vai para a cama com as suas goomahs) e racista. Então, como se explica que gostemos tanto dele?
Tony Soprano poderá ser mau, mas não é completamente mau. Apesar de todas as brutalidades que comete, ele não é um indivíduo totalmente desprovido de escrúpulos e já deu algumas provas de carácter. O caso mais evidente é a relação com os seus filhos: Tony adora os miúdos e toma os maiores cuidados para que, de futuro, eles não enveredem pela vida do crime. «Tudo o que eu faço é por ti e pelo teu irmão», disse ele à filha e com razão.
O que talvez não seja tão evidente é que as razões que fazem de Tony um homem mau são as mesmas que o tornam bom. Ele é ao mesmo tempo um criminoso brutal e um tipo decente, porque adopta um sistema moral muito particular: família e negócios são a espinha dorsal do seu código de valores e que ele sobrepõe a todas as outras coisas. Tony Soprano só se preocupa com os familiares e amigos e fará de tudo para proteger essas pessoas que lhe estão mais próximas. Este é o seu grande erro, pois a moral deve ser essencialmente imparcial.
A realidade, porém, é que o pensamento moral dominante nos nossos dias é o da parcialidade. Poderemos não ser chefes mafiosos, mas normalmente só pensamos numa parte das pessoas que são afectadas pelas nossas acções. Por exemplo, a pessoa que oferece presentes caros aos familiares em vez de ajudar organizações humanitárias não é censurada, porque age correctamente com a família e é só isso que a moralidade exige dela; e ninguém se escandaliza com o sindicalista que coloca os interesses da profissão à frente do bem comum, já que ele age por lealdade aos seus colegas. Em matéria de princípios, Tony Soprano não é muito diferente de qualquer um de nós.
2006-07-25
2006-07-24
Twin Peaks
O protagonista de Twin Peaks não é um detective comum. Os procedimentos de Dale Cooper afastam-se das técnicas tradicionais da investigação criminal e incluem por vezes o recurso aos sonhos, aos pressentimentos e às intuições. O exemplo mais célebre é o seu método tibetano. Inspirado por um sonho sobre o Tibete e pelas entradas finais do diário de Laura Palmer, Coop organiza uma experiência bizarra no meio da floresta: escreve num quadro os nomes de todos os suspeitos que incluem a letra J e pede ao ajudante que lhe leia esses nomes, enquanto atira pedras a uma garrafa de vidro. O detective falha quase todas as tentativas, mas acerta na garrafa após a menção do nome de Leo Johnson.
O método tibetano é sedutor e empolgante, mas parece estranho que surja a meio de um murder mystery. Afinal, uma das regras de ouro das histórias policiais consiste no rigor lógico da resolução do mistério: toda a actuação do detective deve assentar na análise das provas segundo métodos racionais e científicos, o que exclui a intervenção do acaso, do espiritismo ou da intuição. Foi o grande Edgar Allan Poe, pai fundador do género policial, quem primeiro falou de uma «peculiar analytic ability» do investigador, que resultaria de «an excited, or perhaps of a diseased, intelligence».
Há boas razões para estes métodos dedutivos tradicionais. Desde logo, por uma questão de fair-play: a resolução do crime é concebida como um jogo intelectual que deve envolver tanto o protagonista como o público e ambos devem estar, à partida, numa situação de igualdade no que respeita à descoberta da identidade do assassino. Mas existem também razões culturais profundas, pois o romance policial de Poe nasceu imbuído da visão determinista que caracteriza a ciência moderna. O princípio da causalidade – as mesmas causas, nas mesmas condições, produzem os mesmos efeitos – permite explicar todos os fenómenos do mundo, incluindo os crimes.
Se o inquérito policial de Edgar Allan Poe é um produto da modernidade, já o método tibetano de David Lynch é caracteristicamente pós-moderno. Cooper é um protagonista dividido que representa a confusão alienante dos nossos tempos: ele não rejeita por completo os métodos das ciências exactas, mas adiciona-lhes a intuição que permite descascar como uma cebola as camadas sobrepostas da realidade e chegar aos níveis mais profundos que a razão não atinge. Esta obsessão com o caos que se esconde sob a superfície da vida percorre toda a obra de Lynch: «Just beneath the surface there’s another world, and still different worlds as you dig deeper. I knew it as a kid, but I couldn’t find the proof. It was just a feeling.»
2006-07-21
Grup Tekkan
A versão alemã do nosso Zé Cabra: os rapazes do Grup Tekkan e o grande êxito 'Wo bist du mein Sonnenlicht'.
Die deutsche Version von Zé Cabra: Die Jungs von Grup Tekkan und der grosse Erfolg 'Wo bist du mein Sonnenlicht'.
Die deutsche Version von Zé Cabra: Die Jungs von Grup Tekkan und der grosse Erfolg 'Wo bist du mein Sonnenlicht'.
2006-07-15
O público português
Tal como se analisa e julga a qualidade de um filme, também se deveria poder criticar a qualidade do público de cinema. O critério de avaliação consistiria no que poderíamos chamar, algo pomposamente, de cultura cinéfila dos espectadores – que incluiria parâmetros como a assiduidade, o civismo ou a extensão dos conhecimentos sobre filmes. Teríamos então de concluir que o público português é uma merda. É ele o grande responsável pela crise do nosso cinema: temos excelentes cineastas, argumentistas, actores e técnicos; só falta mesmo é um público bom.
O nosso público não tem um mínimo de espírito crítico. É um público provinciano (no pior sentido) e pacóvio. Um estudo recente da Universidade Lusófona demonstrou que mais de metade dos portugueses têm uma atitude de indiferença em relação ao cinema do nosso país. Eis alguns números expressivos: 58,2% dos inquiridos afirmaram-se nem satisfeitos nem insatisfeitos com os filmes, mas 45,9% não foram capazes de dizer qual o último filme que tinham visto e 66,7% acham que a solução está na melhoria da qualidade dos diálogos. Isto diz tudo.
O problema maior é que já nem os filmes estrangeiros, bons ou maus, parecem interessar aos portugueses. Os cinemas estão cada vez mais às moscas e multiplicam-se os casos de salas históricas que encerram por falta de espectadores. À excepção de alguns fenómenos da moda ou altamente mediatizados, o cinema é hoje um espectáculo em crise entre nós e os resultados do box-office não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito.
Quanto à falta de civismo, chega a ser escandalosa. Os poucos portugueses que ainda vão ao cinema não sabem como se comportar num lugar desses, nem respeitam os outros que lá estão e também pagaram bilhete: os pés em cima das cadeiras, a ruminância das pipocas e até a escarradela furtiva para o chão já se tornaram em lugares comuns. Quando fui ao cinema ver A Costa dos Murmúrios, a algazarra de um casal de paneleiros enchia a sala toda; a meio da sessão, lá tive de me levantar e pedir aos dois que se calassem, porque não conseguia ouvir o filme; mal regressei ao meu lugar, recomeça aquela balada infernal. Ainda hoje, não sei do que trata A Costa dos Murmúrios.
O nosso público não tem um mínimo de espírito crítico. É um público provinciano (no pior sentido) e pacóvio. Um estudo recente da Universidade Lusófona demonstrou que mais de metade dos portugueses têm uma atitude de indiferença em relação ao cinema do nosso país. Eis alguns números expressivos: 58,2% dos inquiridos afirmaram-se nem satisfeitos nem insatisfeitos com os filmes, mas 45,9% não foram capazes de dizer qual o último filme que tinham visto e 66,7% acham que a solução está na melhoria da qualidade dos diálogos. Isto diz tudo.
O problema maior é que já nem os filmes estrangeiros, bons ou maus, parecem interessar aos portugueses. Os cinemas estão cada vez mais às moscas e multiplicam-se os casos de salas históricas que encerram por falta de espectadores. À excepção de alguns fenómenos da moda ou altamente mediatizados, o cinema é hoje um espectáculo em crise entre nós e os resultados do box-office não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito.
Quanto à falta de civismo, chega a ser escandalosa. Os poucos portugueses que ainda vão ao cinema não sabem como se comportar num lugar desses, nem respeitam os outros que lá estão e também pagaram bilhete: os pés em cima das cadeiras, a ruminância das pipocas e até a escarradela furtiva para o chão já se tornaram em lugares comuns. Quando fui ao cinema ver A Costa dos Murmúrios, a algazarra de um casal de paneleiros enchia a sala toda; a meio da sessão, lá tive de me levantar e pedir aos dois que se calassem, porque não conseguia ouvir o filme; mal regressei ao meu lugar, recomeça aquela balada infernal. Ainda hoje, não sei do que trata A Costa dos Murmúrios.
2006-07-14
Modigliani
O filme pode ser uma grande merda, mas a interpretação do Andy Garcia é, como sempre, uma obra-prima.
2006-07-08
Gato Fedorento
Quando se escrever a história do surrealismo em Portugal, os nomes mais importantes serão Mário Cesariny, João César Monteiro e… os Gatos Fedorentos. A arte do fabuloso quarteto de humoristas assenta na chamada justaposição, que é um procedimento caracteristicamente surrealista. A justaposição consiste na junção de dois objectos incompatíveis sobre uma superfície que lhes é estranha: Max Ernst descreveu «o encontro casual de uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de operações» de Lautréamont como um exemplo clássico.
Esta apetência pelas «rencontres fortuites d’objets» corresponde a uma tentativa de compor as imagens segundo a lógica de funcionamento dos sonhos. Nestes, as leis da física não impõem quaisquer limitações à movimentação dos corpos e todas as combinações são possíveis. Por isso, as imagens surrealistas são tão bizarras e sedutoras: o procedimento da justaposição permite que o artista represente os níveis profundos do inconsciente e que, ao mesmo tempo, exclua o mais possível o pensamento racional.
Os programas dos Gatos Fedorentos são férteis nestas imagens. Recordemos os super-heróis que disputam partidas de ténis, as irmãs carmelitas armadas com metralhadoras ou o Napoleão Bonaparte que se debate com problemas de utilização de um computador pessoal. Todos estes números funcionam lindamente, porque aplicam com eficácia o princípio da justaposição. Mas talvez o número mais surrealista da carreira dos Gatos seja o do célebre Senhor Vítor. A discussão, já de si absurda, entre funcionários públicos e o utente protagonista é interrompida pela intromissão de uma bola de ténis gigante: um magnífico e redondo deus ex machina que pouco ou nada fica a dever ao enorme ovo engaiolado de René Magritte.
As justaposições surpreendentes não se limitaram às imagens, pois o surrealismo começou por ser um fenómeno literário. Para os seus poetas, a escrita automática, os textos colectivos, as collages e os «cadavres exquis» revelavam uma actividade inconsciente escondida por séculos de racionalismo. As palavras perdem a sua função utilitária e trivial de comunicação e passam a ser «des tremplins à l’esprit». Um exemplo expressivo retirado dos espectáculos dos Gatos Fedorentos é o já referido Senhor Vítor, fórmula como, por razões práticas, o utente do serviço público se refere a todos e quaisquer interlocutores: o nome converte-se então numa realidade puramente poética e desliga-se por completo do mundo referencial.
2006-07-05
Bur(r)ocracia (ii)
Serviço de Finanças do Lumiar, 15 horas. 30 minutos à espera na bicha para o balcão cinco. Utente brasileira pede cartão de contribuinte mas funcionária menopáusica diz que ali não têm nada e por isso que vá para o outro lado; mas no outro lado já lhe disseram para ir ao balcão cinco, ao que funcionária menopáusica responde que vai receber o cartão no correio; utente já está há três meses à espera e não recebeu nada no correio, pelo que a funcionária pergunta com quem vive, quantos são lá em casa e se alguém não terá roubado o cartão de contribuinte e que a solução é a utente brasileira fazer novo pedido e pagar uma segunda vez o mesmo cartão. Chega a minha vez. Peço uma certidão um papel qualquer coisa que diga que não tenho dívidas ao fisco mas funcionária menopáusica diz que ali no fisco não sabem nem podem saber se tenho dívidas ao fisco, ao que respondo que já antes um colega dela viu que eu não tinha dívidas ao fisco; funcionária menopáusica diz que não pode ser e quando foi isso e como se chamava esse colega que disse que eu não tinha dívidas ao fisco; respondo que não me recordo do nome de todos os funcionários das finanças com quem falei na vida mas que têm obrigação de ter uma base de dados dos contribuintes e funcionária menopáusica retorque que há muita coisa que não funciona bem e se quiser que vá de avião para a Madeira buscar o papel certidão qualquer coisa que diga que eu não tenho dívidas ao fisco. Acima das nossas cabeças, paira um enorme e branco cartaz que louva a eficiência da Administração Pública e onde se lê um garrafal SIMPLEX. E se fossem todos para o caralhex?
2006-07-04
2006-07-03
Laranja Mecânica
«Estavam lá eu, que sou o Alex, e os meus três compinchas, Georgie, Pete e Dim. E estávamos na Leitaria Korova a puxar pelas carolas sobre o que fazer durante a noite. A Korova vendia leite aditivado, leite mais velocet, synthemesc ou drencorm, que era o que estávamos a beber. E isto havia de nos espicaçar para um pouco da boa e velha ultra-violência.»
«Se há coisa que não suporto é ver um bêbedo velho e nojento a berrar aos quatro ventos velhas canções entercortadas de arrotos, como se tivesse uma nojenta orquestra enfiada no bucho. Nunca suportei ver quem quer que fosse nesse estado, qualquer que fosse a sua idade. Mas ainda mais, tratando-se de um velhadas como este.»
«É um mundo de merda, porque já não há lei nem ordem. É um mundo de merda, porque deixam os novos fazer pouco caso dos velhos, como vocês fazem. Oh, já não é um mundo para um velho como eu. Que mundo é este, afinal? Homens na Lua. E homens girando à volta da Terra. E já ninguém liga mais à lei e à ordem terrenas.»
«Eu vivia com o meu pai e a minha mãe no Bairro Municipal 18-A. Tinha sido uma noite maravilhosa e do que eu precisava agora era de um digno fim de festa com o velho Ludwig Van. Que felicidade! Que felicidade e que céu aberto! Era toda a beleza, todo o encanto feito carne! Era como se um pássaro tecesse um raro ninho de fios celestes ou como se um vinho de prata escorresse de uma nave espacial insensível às leis da gravidade.»
«Como é que vai ser a vossa vida? Um fora e dentro de instituições como esta? Para a maioria, mais dentro que fora. Ou vão escutar a palavra de Deus e aprender qual o castigo que aguarda os pecadores sem remédio no outro mundo? Sois um punhado de idiotas, vendendo a vossa progenitura por um prato de papas frias, a emoção do roubo e da violência, o desejo de viver sem trabalhar. Valerá isso a pena quando temos provas irrefutáveis, sim, provas indiscutíveis de que o inferno existe?»
«O governo não se pode preocupar com teorias penais ultrapassadas. Em breve precisaremos de todo o espaço prisional para presos políticos. Presos de delito comum como estes devem receber tratamento adequado que elimine todo o impulso criminoso. Implementação dentro de um ano. O castigo para eles nada significa. Eles até apreciam o pretenso castigo.»
«Couves... cuecas... não tem bico.»
«Li tudo sobre as flagelações e a coroa de espinhos. E via-me tomando parte em tudo, desde as chicotadas até ao martelar dos pregos, solenemente vestido de soldado romano. Gostava menos da parte final do Livro, que tinha mais de conversa fiada do que de acção e pouca-vergonha. Gosto da parte em que os judeus se flagelam para depois beberem o seu vinho judeu e se meterem nas camas com as servas das mulheres. Isso sim, interessava-me.»
«Há uma grande tradição de liberdade a defender. A liberdade é tudo. O homem comum deixa correr, trocando a liberdade por uma vida calma. É nosso dever despertá-lo, guiá-lo, empurrá-lo.»
«Se há coisa que não suporto é ver um bêbedo velho e nojento a berrar aos quatro ventos velhas canções entercortadas de arrotos, como se tivesse uma nojenta orquestra enfiada no bucho. Nunca suportei ver quem quer que fosse nesse estado, qualquer que fosse a sua idade. Mas ainda mais, tratando-se de um velhadas como este.»
«É um mundo de merda, porque já não há lei nem ordem. É um mundo de merda, porque deixam os novos fazer pouco caso dos velhos, como vocês fazem. Oh, já não é um mundo para um velho como eu. Que mundo é este, afinal? Homens na Lua. E homens girando à volta da Terra. E já ninguém liga mais à lei e à ordem terrenas.»
«Eu vivia com o meu pai e a minha mãe no Bairro Municipal 18-A. Tinha sido uma noite maravilhosa e do que eu precisava agora era de um digno fim de festa com o velho Ludwig Van. Que felicidade! Que felicidade e que céu aberto! Era toda a beleza, todo o encanto feito carne! Era como se um pássaro tecesse um raro ninho de fios celestes ou como se um vinho de prata escorresse de uma nave espacial insensível às leis da gravidade.»
«Como é que vai ser a vossa vida? Um fora e dentro de instituições como esta? Para a maioria, mais dentro que fora. Ou vão escutar a palavra de Deus e aprender qual o castigo que aguarda os pecadores sem remédio no outro mundo? Sois um punhado de idiotas, vendendo a vossa progenitura por um prato de papas frias, a emoção do roubo e da violência, o desejo de viver sem trabalhar. Valerá isso a pena quando temos provas irrefutáveis, sim, provas indiscutíveis de que o inferno existe?»
«O governo não se pode preocupar com teorias penais ultrapassadas. Em breve precisaremos de todo o espaço prisional para presos políticos. Presos de delito comum como estes devem receber tratamento adequado que elimine todo o impulso criminoso. Implementação dentro de um ano. O castigo para eles nada significa. Eles até apreciam o pretenso castigo.»
«Couves... cuecas... não tem bico.»
«Li tudo sobre as flagelações e a coroa de espinhos. E via-me tomando parte em tudo, desde as chicotadas até ao martelar dos pregos, solenemente vestido de soldado romano. Gostava menos da parte final do Livro, que tinha mais de conversa fiada do que de acção e pouca-vergonha. Gosto da parte em que os judeus se flagelam para depois beberem o seu vinho judeu e se meterem nas camas com as servas das mulheres. Isso sim, interessava-me.»
«Há uma grande tradição de liberdade a defender. A liberdade é tudo. O homem comum deixa correr, trocando a liberdade por uma vida calma. É nosso dever despertá-lo, guiá-lo, empurrá-lo.»
2006-06-27
2006-06-26
Tempo de Viver
A telenovela Tempo de Viver marca o regresso de Rui Vilhena. Conheci pessoalmente o conceituado argumentista em Fevereiro de 2006 e guardo a imagem de um profissional exigente, íntegro e inteligentíssimo. É ele o grande responsável pelo sucesso (de público e não só) desta nova aposta da TVI: se os realizadores são os verdadeiros autores do cinema, já a ficção televisiva é o território por excelência dos argumentistas. O próprio patrão José Eduardo Moniz salientou publicamente a qualidade do texto de Tempo de Viver e com toda a razão. Resta saber o que torna a escrita do Vilhena tão eficaz e sedutora.
O primeiro objectivo de qualquer texto dramático (seja em televisão, teatro ou cinema) consiste na obtenção e manutenção da atenção do espectador através do suspense. Só quando este objectivo for conseguido, é que o autor poderá ambicionar finalidades mais nobres, como a transmissão de conhecimentos ou a promoção de uma ideologia. A questão é saber como pode um autor agarrar os seus espectadores. A este respeito, os teóricos da arte dramática distinguem três grandes modalidades de suspense: o que é suscitado pela questão principal (quem é o assassino?), pelas sequências e cenas (o fantasma vai ou não aparecer perante Hamlet?) e pelos diálogos. Vale a pena analisarmos esta última modalidade, já que as telenovelas do Rui Vilhena são famosas pela excelência dos seus diálogos.
A brevidade é a primeira condição de um bom diálogo dramático. Uma fala em telenovela deve dizer o máximo com o mínimo de palavras, porque a tv é um meio eminentemente visual. Os diálogos escritos pelo Rui Vilhena fazem um excelente uso daquilo que no teatro clássico grego se designava por stikomythia ou a troca enérgica de falas breves. Nada de floreados, redundâncias inúteis ou longos monólogos.
Importa ainda que os diálogos sejam claros. A acção mais violenta não suscitará qualquer impacto ou poderá mesmo provocar um enfado profundo, se os espectadores não compreenderem quem são, o que fazem e o que dizem as personagens. Aristóteles falava em «clareza sem baixeza». Esta necessidade de clareza é ainda mais pertinente num projecto como uma telenovela, já que se pretende atingir o maior número possível de espectadores e de todos os estratos sócio-culturais. Em Tempo de Viver, as personagens repetem à exaustão os nomes dos seus interlocutores para que ninguém perca pitada.
A condição mais importante de um diálogo com suspense é a dosagem da informação nas quantidades e nos momentos certos. Recordemos, por exemplo, como a Rosa do Canto nada diz de início à Margarida Vila-Nova (fabulosa na pele da vilã!) sobre o que sabe a respeito da prisão da mãe Alexandra Lencastre: o precioso trunfo é guardado para mais tarde, de modo a que a revelação da verdade possa produzir o efeito de uma bomba atómica. A minúcia do Vilhena chega ao ponto de reservar as informações mais relevantes para o final das falas, de modo a que não se desperdicem palavras e a atenção dos espectadores não se perca a meio.
O primeiro objectivo de qualquer texto dramático (seja em televisão, teatro ou cinema) consiste na obtenção e manutenção da atenção do espectador através do suspense. Só quando este objectivo for conseguido, é que o autor poderá ambicionar finalidades mais nobres, como a transmissão de conhecimentos ou a promoção de uma ideologia. A questão é saber como pode um autor agarrar os seus espectadores. A este respeito, os teóricos da arte dramática distinguem três grandes modalidades de suspense: o que é suscitado pela questão principal (quem é o assassino?), pelas sequências e cenas (o fantasma vai ou não aparecer perante Hamlet?) e pelos diálogos. Vale a pena analisarmos esta última modalidade, já que as telenovelas do Rui Vilhena são famosas pela excelência dos seus diálogos.
A brevidade é a primeira condição de um bom diálogo dramático. Uma fala em telenovela deve dizer o máximo com o mínimo de palavras, porque a tv é um meio eminentemente visual. Os diálogos escritos pelo Rui Vilhena fazem um excelente uso daquilo que no teatro clássico grego se designava por stikomythia ou a troca enérgica de falas breves. Nada de floreados, redundâncias inúteis ou longos monólogos.
Importa ainda que os diálogos sejam claros. A acção mais violenta não suscitará qualquer impacto ou poderá mesmo provocar um enfado profundo, se os espectadores não compreenderem quem são, o que fazem e o que dizem as personagens. Aristóteles falava em «clareza sem baixeza». Esta necessidade de clareza é ainda mais pertinente num projecto como uma telenovela, já que se pretende atingir o maior número possível de espectadores e de todos os estratos sócio-culturais. Em Tempo de Viver, as personagens repetem à exaustão os nomes dos seus interlocutores para que ninguém perca pitada.
A condição mais importante de um diálogo com suspense é a dosagem da informação nas quantidades e nos momentos certos. Recordemos, por exemplo, como a Rosa do Canto nada diz de início à Margarida Vila-Nova (fabulosa na pele da vilã!) sobre o que sabe a respeito da prisão da mãe Alexandra Lencastre: o precioso trunfo é guardado para mais tarde, de modo a que a revelação da verdade possa produzir o efeito de uma bomba atómica. A minúcia do Vilhena chega ao ponto de reservar as informações mais relevantes para o final das falas, de modo a que não se desperdicem palavras e a atenção dos espectadores não se perca a meio.
Rainer Werner Fassbinder
A retrospectiva que nos liberta a cabeça: o grande Rainer Werner Fassbinder no Centro Cultural da Malaposta.
2006-06-19
2006-06-12
Leni Riefenstahl
Leni Riefenstahl foi uma personalidade envolta em polémica. A cineasta alemã ficou tristemente célebre pelo seu apoio ao regime de Hitler e, em particular, pela realização de filmes de propaganda nazi como O Triunfo da Vontade (1934). Após a Segunda Grande Guerra, Leni foi julgada por um tribunal, que a considerou uma simpatizante do fascismo: os juízes utilizaram então uma escala de 1 (criminosos de guerra) a 5 (inocentes) e ela ficou-se por um 4. Mais recentemente, a senhora voltou a ser julgada por ter negado a existência do Holocausto. A Alemanha não lhe perdoou as opções ideológicas, mas Leni sempre defendeu O Triunfo da Vontade com unhas e dentes e alegou que o filme nada tem a ver com o nazismo.
Eis o que disse a Riefenstahl: «O filme não abordava a política, mas apenas um acontecimento público. Eu teria feito o mesmo filme em Moscovo, se fosse necessário, ou na América, se algo de semelhante aí tivesse ocorrido. Limitei-me a abordar um assunto da melhor maneira que pude e a transformá-lo num filme. Se era sobre política ou legumes ou fruta, era-me totalmente indiferente.» À primeira vista, Leni parece ter razão. O cinema é uma arte objectiva, porque mostra a realidade tal como ela é, sem adornos nem juízos de valor. É por isso que os filmes e as fotografias, ao contrário das imagens feitas à mão, podem servir como meio de prova nos tribunais.
Mas o cinema não é totalmente objectivo. Por detrás da câmara de filmar, há sempre um realizador que manipula as imagens e lhes dá um sentido. E o filme da Riefenstahl reflecte bem as convicções políticas da autora, até pelas suas omissões: nada é dito sobre os pogroms, os guetos, os campos de concentração e outras realidades incómodas para o regime. Em seu lugar, o que vemos são imagens que, como é característico de todo o cinema nazi, seduzem e galvanizam os espectadores: as bandeiras, as multidões, as suásticas, os uniformes… tudo surge revestido de um brilho quase mágico neste Triunfo da Vontade. É verdade que o filme nunca apela expressamente ao anti-semitismo e à violência, mas toda a sua mise en scène glorifica um regime político que foi violentamente anti-semita.
Há ainda uma segunda objecção, que decorre da natureza da montagem cinematográfica. A pós-produção é a fase derradeira da feitura de um filme e a forma como as imagens são cortadas e dispostas não é inocente, pois determina o sentido do que se vê. Veja-se como, no Triunfo da Vontade, a realizadora intercala os discursos do Führer com os planos dos rostos fascinados dos alemães. Obviamente, a Riefenstahl conhecia bem o poder da montagem e até falou longamente sobre isso: «Aquando da montagem, descobri uma mensagem contida no filme: a criação de empregos e a paz. Outros motivos políticos ou objectivos não são mencionados. Não há nada sobre anti-semitismo, nem sobre a teoria da raça. Emprego e paz são as mensagens do Triunfo da Vontade.» Não me parece.
Futebolês
O futebol é, por natureza, o domínio das banalidades, das tonterias e dos clichés. Eis uma pequeníssima amostra:
«Quem não marca, arrisca-se a perder»
«A bola é redonda e o campo é rectangular»
«A gestão exemplar do Sporting»
«O segundo poste»
«Entrámos bem / mal no jogo»
«O sistema»
«Sim, mas o mais importante é a equipa»
«A Costa do Mafim sabe jogar à bola, a bola que joga é bonita»
«Até os comemos»
«Quem não marca, arrisca-se a perder»
«A bola é redonda e o campo é rectangular»
«A gestão exemplar do Sporting»
«O segundo poste»
«Entrámos bem / mal no jogo»
«O sistema»
«Sim, mas o mais importante é a equipa»
«A Costa do Mafim sabe jogar à bola, a bola que joga é bonita»
«Até os comemos»
2006-06-01
Grindhouse
A sala de cinema mais alternativa da Internet está no excelente blogue Grindhouse, do Kay.
2006-05-26
O Código Da Vinci
Adaptar um romance ao cinema é sempre uma tarefa complexa e delicada. Há diferenças muito profundas entre as linguagens da literatura e do cinema e as razões que explicam o êxito de um livro não são necessariamente as mesmas que tornam um filme bem sucedido. Susan Sontag escreveu doutamente sobre o assunto: «Mesmo um romance mediano, como o 'Mephisto', de Klaus Mann, acaba sempre por ser consideravelmente mais rico, mais complexo que o filme. Quase que parece estar na natureza de um filme – independentemente da sua qualidade – que ele reduza, dilua e simplifique qualquer bom romance que adapte». À questão da qualidade literária, junta-se ainda o obstáculo da extensão dos romances, pois as necessidades de distribuição e exibição dos filmes impõem que a sua duração não exceda, em regra, as três horas.
O exemplo do Código Da Vinci parece, à primeira vista, confirmar as palavras de Sontag. A história de Dan Brown poderá ter funcionado magnificamente no papel, mas deixa qualquer realizador de cinema em apuros. Por um lado, a estrutura do romance parece exigir alterações profundas aquando de uma adaptação ao grande ecrã: o enredo é intrincado, há demasiadas personagens principais e secundárias e os diálogos são extensíssimos. É o que se designa na gíria por «peixe com penas». Por outro lado, quaisquer tentativas de reformulação da narrativa original encontrariam a resistência dos milhões de fãs que o romance conquistou em todo o mundo: afinal de contas, trata-se do maior blockbuster literário dos nossos tempos.
Apesar de todos os escolhos, a transposição do Código Da Vinci para o cinema foi um êxito. O filme de Ron Howard é excelente e satisfaz em igual medida os fãs e os iniciantes destas andanças do Código. Os principais elementos do romance estão lá todos: o Louvre, Saint-Sulpice, Château Villette, a Abadia de Westminster, a capela de Rosslyn, os enigmas, o sagrado feminino e o polémico convite à reflexão sobre as origens do cristianismo. E ainda que alguns trechos bombásticos tenham sido amenizados ou suprimidos (foi omitida, por exemplo, a referência à sede bilionária do Opus Dei na Lexington Avenue, em Nova Iorque), as falas mais célebres foram ciosamente preservadas: «a Bíblia não chegou via fax do céu» ou «um falo rudimentar».
Por mais que alguns críticos torçam o nariz, o mérito de Ron Howard é evidente. Curiosamente, a sua maior qualidade talvez resida na mesma razão pela qual Susan Sontag se revelou tão descrente dos filmes: a simplificação. Goste-se ou não, é inegável que Howard conseguiu tornar as teses de Dan Brown compreensíveis para o público de cinema e suplantou as dificuldades do projecto com a simplicidade com que Colombo pôs de pé o seu famoso ovo. Mas o realizador não se limitou a transcrever o livro, pois a sua adaptação é, na realidade, bastante original. Recordemos a despedida dos dois protagonistas e o gag final do pé sobre a água, um belo momento de auto-reflexividade em que o realizador parece recordar que tudo não passa, afinal, de mera ficção especulativa.
2006-05-18
2006-05-15
Most Wanted
Alguns blogues excelentes que andam misteriosamente calados ou desaparecidos: o Ford Mustang, o Velho, a Medula da Fauna e a nossa Valéria Mendez.
2006-05-08
Margarida Rebelo Pinto
Gosto da Margarida Rebelo Pinto. Há boas razões para gostar da senhora, quanto mais não seja porque foi ela a escritora que fez com que os portugueses redescobrissem o gosto pelos livros. E não são apenas os portugueses: a nossa escritora mais comercial também já foi publicada em países como a Alemanha, o Brasil, a Espanha, a Bélgica e a Holanda. Mesmo assim, há sempre quem não goste e um dos críticos mais severos é o João Pedro George, autor do blogue Esplanar e do livro Couves & Alforrecas: Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto. Já todos conhecemos o texto e as razões do famoso sociólogo, que fundamenta o seu desapreço pela autora numa pitoresca acusação de auto-plágio. George é enérgico e eloquente no seu texto, mas não tem razão nenhuma naquilo que diz.
Toda a argumentação de João Pedro George assenta nesta ideia simples: os livros da Rebelo Pinto repetem-se e por isso são maus – ou são «sub-literatura», para usar a sua expressão. Mas a verdade é que os escritores, maus e bons, sempre se repetiram e imitaram uns aos outros. A teoria da literatura codificou esta realidade em termos como alusão literária, intertextualidade ou re-utilização, os quais, na essência, dizem apenas isto: a repetição, em literatura, é algo de normal e até inevitável. Isto não é, obviamente, nenhuma desculpabilização do plágio. Significa apenas que é ridículo formular juízos sobre obras literárias só com base em pretensas auto-imitações e que alguns obsessivos da originalidade não sabem o que estão a dizer ou então têm alguma na manga.
Seja como for, estamos a falar de generalidades, porque a Margarida Rebelo Pinto é, na realidade, uma autora original. É um completo absurdo dizer, como fez o George, que «as personagens, as situações, os temas e a estrutura narrativa são sempre os mesmos». Goste-se ou não, a abrangência da escrita dela é inegável e são variadíssimos os géneros e formas literárias a que a escritora emprestou a sua sensibilidade e a sua argúcia: dos romances polifónicos como Alma de Pássaro ou Pessoas Como Nós até às crónicas jornalísticas, das peças de teatro à longa carta de amor de Diário da Tua Ausência, estamos perante uma criadora que se reinventa a cada nova obra e sempre com inegável êxito.
Resta saber qual é o segredo do sucesso da Margarida Rebelo Pinto. Desde logo, a autora teve o mérito de encontrar um conjunto de temas suficientemente importantes para interessarem a toda a gente: o amor («não quero desistir do amor»), a solidão, a condição feminina. Os seus ambientes luxuosos – que a Rebelo Pinto, como grande jet-setter que é, conhece lindamente – são povoados por príncipes e princesas que conduzem Audis, vestem roupas caras e fazem compras em Nova Iorque. Isto contagia as narrativas da Rebelo Pinto com um encantamento semelhante ao dos contos de fadas – recordemos as abundantes alusões aos irmãos Grimm ou até a supremacia das suas mulheres, pois nos contos maravilhosos proliferam as personagens femininas cujas virtudes e qualidades são recompensadas. Mas a autora introduz duas novidades: a espantosa mobilidade social dos protagonistas, pois até as personagens de condição modesta conseguem ascender meteoricamente a essa realeza; e o desprezo pelos finais felizes, já que os problemas, como na vida real, só começam verdadeiramente depois do casamento.
2006-05-03
Alfredo Farinha
O grande Alfredo Farinha escreve, sempre com argúcia e eloquência, sobre Cavaco e os cravos de Abril:
«Sem cravos de Abril, nem rosas de Maio. Esta poderia ser a legenda para a forma como se apresentou à Nação, na casa comum da Família Portuguesa, em S. Bento, o senhor Presidente da República, no dia em que uma parte considerável dela celebra aquela que considera ser uma das efemérides históricas mais notáveis da sua secular existência.
[...]
Para o autor, que chegara a temer reacções demasiado vivas e agrestes, do lado contrário àquela que tivesse por boa a decisão a tomar, foi um gesto de sabedoria e de grande maturidade política, algo de comparável, com ressalva das devidas a óbvias proporções, à atitude de Alexandre, quando decidiu servir-se da espada para cortar, de um só golpe, o lendário 'nó górdico'. Tão lógico, tão fácil, tão natural... E ainda se poderia tirar ao alegado problema do 'cravo vermelho, sim ou não', bastante mais da carga política com que quiseram vesti-lo alguns dos costumados fazedores da 'guerrilha institucional' que lhes alimenta e prolonga o tacho nos grandes órgão de comunicação.
[...]
Por isso, quem tiver os olhos para ver e ouvidos para ouvir, não terá dúvidas quanto à mensagem de Cavaco Silva, no seu primeiro 25 de Abril como Presidente da República: 'Vim para unir e não para alargar o fosso da separação entre os portugueses. Não serei refém de nenhuma das metades em que as desavenças e os erros dos políticos (profissionais, não-profissionais e amadores, como os jogadores nos clubes de futebol) cortaram a Nação. Não serei cravo de Abril, nem rosa de Maio, não serei o Presidente da Esquerda ou da Direita, serei apenas, no voto de fidelidade que fiz a mim próprio e à Pátria, o Presidente de Portugal.'
[...]
Um homem tem o direito de mandar os porcos para o curral e os vigaristas para a cadeia
Aqui ficam a propósito e a declaração solene de que, se tal viesse a ser necessário, seria o velho jornalista que assina estas notas e que tem a consciência de ter sido, mal ou bem, um dos mais activos e combativos pela boa causa, o primeiro a fazê-lo. É que, com mais de oitenta anos de idade e noventa, pelo menos, de trabalho prestado, durante meio século, a dois empregadores simultâneos, para ter e dar à família o minimamente justo e andar de cabeça erguida na exigente profissão que exerceu, um homem sente-se no direito de, neste mesmo país, onde está a tornar-se medonho viver, [...] reclamar em voz alta, exigir, berrar, bramar, trovejar, ser incómodo, ser inconveniente, ser malcriado, detestado, ameaçado de morte ou prisão, ser mesmo preso, ou deixar-se matar, para que os responsáveis materiais, legais ou morais pelo 'funcionamento regular das instituições democráticas' se sintam acompanhados e coagidos a assumir, com autoridade e firmeza, as suas prerrogativas e obrigações.
[...]
P.S.: Não dispondo da prerrogativa de falar face a face com o engº José Sócrates - ensejo que tive uma só vez, na Sertã, num animado debate, que recordo com prazer e algum orgulho, que S. Exª certamente compreenderá... - utilizo esta via e esta oportunidade para, como português e como beirão, lhe pedir que não continue a transformar o Governo de Portugal, a que espantosa e esporadicamente preside (os deuses deviam estar cegos, surdos e mudos), numa agência de publicidade, ainda por cima, enfadonha, repetitiva e pouco credível. [...] Governar um País é incomparavelmente mais difícil que viajar nesses frágeis balõezinhos e (aqui entre beirões de aldeia), bastante mais difícil, até, que guiar um rebanho de cabras, serra acima, serra abaixo, ou pinha adentro. Há pessoas que nunca deviam ter pensado em governar um país - em especial o meu.»
(in O Diabo, 3 de Maio de 2006)
«Sem cravos de Abril, nem rosas de Maio. Esta poderia ser a legenda para a forma como se apresentou à Nação, na casa comum da Família Portuguesa, em S. Bento, o senhor Presidente da República, no dia em que uma parte considerável dela celebra aquela que considera ser uma das efemérides históricas mais notáveis da sua secular existência.
[...]
Para o autor, que chegara a temer reacções demasiado vivas e agrestes, do lado contrário àquela que tivesse por boa a decisão a tomar, foi um gesto de sabedoria e de grande maturidade política, algo de comparável, com ressalva das devidas a óbvias proporções, à atitude de Alexandre, quando decidiu servir-se da espada para cortar, de um só golpe, o lendário 'nó górdico'. Tão lógico, tão fácil, tão natural... E ainda se poderia tirar ao alegado problema do 'cravo vermelho, sim ou não', bastante mais da carga política com que quiseram vesti-lo alguns dos costumados fazedores da 'guerrilha institucional' que lhes alimenta e prolonga o tacho nos grandes órgão de comunicação.
[...]
Por isso, quem tiver os olhos para ver e ouvidos para ouvir, não terá dúvidas quanto à mensagem de Cavaco Silva, no seu primeiro 25 de Abril como Presidente da República: 'Vim para unir e não para alargar o fosso da separação entre os portugueses. Não serei refém de nenhuma das metades em que as desavenças e os erros dos políticos (profissionais, não-profissionais e amadores, como os jogadores nos clubes de futebol) cortaram a Nação. Não serei cravo de Abril, nem rosa de Maio, não serei o Presidente da Esquerda ou da Direita, serei apenas, no voto de fidelidade que fiz a mim próprio e à Pátria, o Presidente de Portugal.'
[...]
Um homem tem o direito de mandar os porcos para o curral e os vigaristas para a cadeia
Aqui ficam a propósito e a declaração solene de que, se tal viesse a ser necessário, seria o velho jornalista que assina estas notas e que tem a consciência de ter sido, mal ou bem, um dos mais activos e combativos pela boa causa, o primeiro a fazê-lo. É que, com mais de oitenta anos de idade e noventa, pelo menos, de trabalho prestado, durante meio século, a dois empregadores simultâneos, para ter e dar à família o minimamente justo e andar de cabeça erguida na exigente profissão que exerceu, um homem sente-se no direito de, neste mesmo país, onde está a tornar-se medonho viver, [...] reclamar em voz alta, exigir, berrar, bramar, trovejar, ser incómodo, ser inconveniente, ser malcriado, detestado, ameaçado de morte ou prisão, ser mesmo preso, ou deixar-se matar, para que os responsáveis materiais, legais ou morais pelo 'funcionamento regular das instituições democráticas' se sintam acompanhados e coagidos a assumir, com autoridade e firmeza, as suas prerrogativas e obrigações.
[...]
P.S.: Não dispondo da prerrogativa de falar face a face com o engº José Sócrates - ensejo que tive uma só vez, na Sertã, num animado debate, que recordo com prazer e algum orgulho, que S. Exª certamente compreenderá... - utilizo esta via e esta oportunidade para, como português e como beirão, lhe pedir que não continue a transformar o Governo de Portugal, a que espantosa e esporadicamente preside (os deuses deviam estar cegos, surdos e mudos), numa agência de publicidade, ainda por cima, enfadonha, repetitiva e pouco credível. [...] Governar um País é incomparavelmente mais difícil que viajar nesses frágeis balõezinhos e (aqui entre beirões de aldeia), bastante mais difícil, até, que guiar um rebanho de cabras, serra acima, serra abaixo, ou pinha adentro. Há pessoas que nunca deviam ter pensado em governar um país - em especial o meu.»
(in O Diabo, 3 de Maio de 2006)
2006-05-02
Isabelle Huppert
A extraordinária actriz que consegue transformar filmes medíocres em grandes espectáculos cinematográficos: la belle Isabelle Huppert.
2006-04-23
Donnie Darko
Donnie Darko (2001) é um filme ambíguo e complexo. O argumento parece demasiado confuso, pois preocupa-se mais em colocar questões fascinantes do que fornecer respostas claras. Isto faz da obra de estreia de Richard Kelly uma raridade em Hollywood, já que os guionistas americanos prezam muito os enredos claros, coerentes e bem ordenados. Porém, tudo em Donnie Darko tem uma explicação. Na verdade, este filme sobre viagens no tempo é uma espécie de quebra-cabeças gigante. As soluções estão lá todas escondidas como ovos de Páscoa, mas é preciso saber procurar nos sítios certos.
A referência à Breve História do Tempo, de Stephen Hawking, é uma pista importante. O livro fornece uma explicação para a evolução do Universo e procura uma teoria unitária que concilie duas teorias parciais fundamentais: a mecânica quântica e a teoria da relatividade geral. A relatividade determina que o tempo não está completamente separado nem é independente do espaço, mas sim combinado com ele, para formar um objecto chamado espaço-tempo. Isto permite, teoricamente, as viagens através do tempo. Hawking admite mesmo que haja pontes ou atalhos, chamados buracos de verme, para chegar às regiões mais distantes do espaço-tempo. Ao regressarmos ao passado através de uma dessas pontes, estaríamos a criar um universo alternativo e faríamos com que o tempo fluísse em dois cursos paralelos.
A viagem no tempo é teoricamente possível, mas apresenta dificuldades práticas tremendas. Não só porque os buracos de verme são instáveis e só existem por períodos muito breves, mas também porque as quantidades de combustível necessárias para uma viagem dessas são imensas. Então, como conseguiu Donnie Darko recuar ao passado? O livro A Filosofia das Viagens no Tempo dá-nos a resposta: tudo decorre num Universo Tangente em que o nosso protagonista foi escolhido como Receptor Vivo para devolver um Artefacto ao Universo Primário. Ora, o Receptor Vivo é muitas vezes abençoado com poderes sobrenaturais, que incluem força acrescida, telepatia e a habilidade de manipular o fogo e a água. Isto explica que Donnie tenha conseguido inundar a escola, incendiar a casa e enfiar o machado na estátua de bronze.
As acções de Donnie Darko são guiadas por Frank, o misterioso Coelhinho Gigante. Toda a mise en scène do realizador Richard Kelly parece indiciar que o Coelho é uma personagem maléfica: a voz distorcida, as sombras que o envolvem e os actos de destruição (o incêndio e a inundação) que ele desencadeia. Porém, Frank não tem nada de maligno. Ele é, na verdade, um mensageiro regressado do futuro e a sua intenção é auxiliar Donnie a resgatar a Humanidade da destruição pelo Universo Tangente. E se Frank obriga o jovem herói a cometer alguns actos de violência, é apenas para que seja colocada em movimento a extraordinária sequência de acontecimentos que levará à salvação do mundo: a inundação da escola leva ao encontro do protagonista e da sua namorada; juntos, eles poderão então entregar-se em sacrifício.
Frank não está só, pois todos os outros habitantes da cidade também auxiliam o protagonista. Eles são os chamados Manipulados Vivos e fornecem continuamente pistas para a solução do mistério: a professora de inglês refere a expressão Cellar Door, que conduzirá o protagonista à casa da Avó Morte; a partida da mãe permite a realização da fatídica festa de bruxas; e até os dois rufias são fundamentais, pois acabam por provocar o atropelamento. No final, todos eles sobreviverão e estarão reunidos na magnífica sequência ao som da canção Mad World.
Resta saber quem é o grande responsável pela manipulação de todas estas personagens. Uma possibilidade é que ela tenha partido de uma civilização mais evoluída que a nossa: os sonhos de Donnie mostram-nos uma cidade do futuro inundada em água e o próprio Stephen Hawking escreveu que uma tecnologia avançada poderia utilizar com sucesso os buracos de verme. Outra possibilidade é a intervenção divina, que também é sugerida pelo filme. Esta solução tem consequências teológicas: Deus não seria um Grande Relojoeiro que dá corda ao mundo e se afasta para nunca mais intervir, mas é, pelo contrário, um criador que pode mudar de ideias e actuar no seu Universo através de milagres.
2006-04-17
2006-04-11
Olho de Fogo
Finalmente, o nosso Presidente Alberto João Jardim tem um adversário à altura: o excelente e controverso Olho de Fogo.
2006-04-05
Agostinho da Silva
O Professor Agostinho da Silva foi um defensor do direito à preguiça. O saudoso filósofo acreditava numa sociedade sem economia, na qual as pessoas pudessem expressar livremente os seus talentos em vez de serem apanhadas numa estrutura organizada que acaba sempre por ser repressiva: «Que o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo e o mundo poeta para ele, de tal modo que nunca mais ninguém se preocupe por fazer tal ou tal obra». Mais uma vez: «Que o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo». Estas ideias podem parecer um pouco estranhas, sobretudo hoje, que tanto se fala na necessidade dos portugueses serem mais produtivos. Porém, elas estão mais pertinentes do que nunca e demonstram que a filosofia de Agostinho da Silva continua lúcida e actual – um pensamento vivo, no dizer feliz do excelente documentário de João Rodrigo Mattos.
O Professor Agostinho não está só, pois as suas ideias sobre o ócio surgem a jusante de uma longa tradição de filósofos da preguiça. Platão, Marivaux, Rousseau, Cícero, Xenofonte, Aristóteles, Lao-tseu foram enérgicos defensores das virtudes da malandrice. A Antiga Grécia inventou a filosofia e, com isso, o direito à vida contemplativa. Com São Tomás de Aquino, o Ocidente cristão reconhece pela primeira vez a necessidade de um tempo para o repouso e o prazer, um tempo durante o qual se pudesse dormir, descansar, brincar. Mas o maior teórico da preguiça continua a ser o francês Paul Lafargue, discípulo e genro de Marx, que denuncia «o amor ao trabalho» como «uma estranha loucura» responsável por «misérias individuais e sociais que, há dois séculos, atormentam a triste humanidade».
Todos estes pensadores concordam que nem toda a inactividade é verdadeiro ócio. Só é defensável a preguiça que se traduza em inacção criativa, uma ideia que o Professor Agostinho também afirmou expressamente: «O tempo livre, quando não se enche com coisa nenhuma, torna-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo. É a razão por que morre tanto reformado já que, deixando de ter o seu emprego, se não encontrar novos objectivos na vida, a morte seguir-se-á rapidamente». Tudo o que não propicia a redescoberta da individualidade é uma impostura: não há nada de particularmente interessante na chamada power nap (a sesta dinâmica) que os americanos inventaram ou na obsessão quase doentia daqueles casais que insistem em passar revista a todos os livros, filmes e espectáculos que estejam na moda.
A ligação da preguiça ao pensamento criativo faz dela uma questão política e muito problemática. A industrialização engenhocou toda uma nova cultura do tempo, que repartiu o quotidiano em três partes desiguais: o trabalho, o sono e, residualmente, o lazer. O movimento sindical tem encetado uma luta de décadas no sentido da igualização destes três tempos, mas o trabalho permaneceu no imaginário colectivo como o grande objectivo da existência humana. Daí o cariz subversivo da preguiça: se os novos princípios do progresso transformam os homens em escravos da profissão e maníacos do lucro, então a preguiça converte-se em verdadeiro princípio revolucionário. E a luta dos ociosos começa lentamente a ganhar um carácter organizado e transnacional, graças à constituição de autênticos sindicatos da preguiça nos mais diversos países: Bélgica, Alemanha, Estados Unidos e até o diligente Japão. Em França, organizações como os Chômeurs heureux ou o Parti Oisif preconizam a «erradicação do trabalho para suprimir o desemprego». Travesseiros ao alto!
O Professor Agostinho não está só, pois as suas ideias sobre o ócio surgem a jusante de uma longa tradição de filósofos da preguiça. Platão, Marivaux, Rousseau, Cícero, Xenofonte, Aristóteles, Lao-tseu foram enérgicos defensores das virtudes da malandrice. A Antiga Grécia inventou a filosofia e, com isso, o direito à vida contemplativa. Com São Tomás de Aquino, o Ocidente cristão reconhece pela primeira vez a necessidade de um tempo para o repouso e o prazer, um tempo durante o qual se pudesse dormir, descansar, brincar. Mas o maior teórico da preguiça continua a ser o francês Paul Lafargue, discípulo e genro de Marx, que denuncia «o amor ao trabalho» como «uma estranha loucura» responsável por «misérias individuais e sociais que, há dois séculos, atormentam a triste humanidade».
Todos estes pensadores concordam que nem toda a inactividade é verdadeiro ócio. Só é defensável a preguiça que se traduza em inacção criativa, uma ideia que o Professor Agostinho também afirmou expressamente: «O tempo livre, quando não se enche com coisa nenhuma, torna-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo. É a razão por que morre tanto reformado já que, deixando de ter o seu emprego, se não encontrar novos objectivos na vida, a morte seguir-se-á rapidamente». Tudo o que não propicia a redescoberta da individualidade é uma impostura: não há nada de particularmente interessante na chamada power nap (a sesta dinâmica) que os americanos inventaram ou na obsessão quase doentia daqueles casais que insistem em passar revista a todos os livros, filmes e espectáculos que estejam na moda.
A ligação da preguiça ao pensamento criativo faz dela uma questão política e muito problemática. A industrialização engenhocou toda uma nova cultura do tempo, que repartiu o quotidiano em três partes desiguais: o trabalho, o sono e, residualmente, o lazer. O movimento sindical tem encetado uma luta de décadas no sentido da igualização destes três tempos, mas o trabalho permaneceu no imaginário colectivo como o grande objectivo da existência humana. Daí o cariz subversivo da preguiça: se os novos princípios do progresso transformam os homens em escravos da profissão e maníacos do lucro, então a preguiça converte-se em verdadeiro princípio revolucionário. E a luta dos ociosos começa lentamente a ganhar um carácter organizado e transnacional, graças à constituição de autênticos sindicatos da preguiça nos mais diversos países: Bélgica, Alemanha, Estados Unidos e até o diligente Japão. Em França, organizações como os Chômeurs heureux ou o Parti Oisif preconizam a «erradicação do trabalho para suprimir o desemprego». Travesseiros ao alto!
2006-03-28
Nossa Senhora
Segundo o filme Espelho Mágico, do Mestre Manoel de Oliveira, a Nossa Senhora era rica e tinha este aspecto.
2006-03-27
Aquiles
O verdadeiro calcanhar de Aquiles, segundo a escritora alemã Christa Wolf: «Odysseus hatte schnell Verdacht geschöpft, ihn und den Menelaos, den alle Griechen, weil er Helena verloren hatte, insgeheim verachteten, bei der Frau gelassen, war seiner Spürnase gefolgt und fand Achill in einer abgelegnen Kammer mit einem andern Jüngling auf dem Bett. Und da der erfahrene vorausschauende Odysseus ja sich selbst, indem er sich närrisch stellte, dem Truppenaufgebot hatte entziehn wollen - wie? Das wüssten wir nicht? Ja was wüssten wir von unsern Feiden überhaupt! -, da er nicht dulden wollte, dass ein anderer davonkam, wo er bluten musste, habe er also den Achill buchstäblich am Schlafittchen in den Krieg geschleppt. Es mochte sein, dass er das schon bereute. Achill stellte nämlich allen nach: Jünglingen, nach denen ihn wirklich verlangte, und Mädchen, als Beweis, dass er wie alle war.»
(in Christa Wolf: Kassandra, München, Luchterhand, 2004, p. 99)
2006-03-20
Errâncias
«Alexander Reschke evitou o caminho que passava junto ao mercado. O abandono em que se encontrava e o cheiro que ficara pairando podiam ter feito esfriar o seu entusiasmo. Concentrado ia com certeza. Oiço-o trautear à boca fechada: qualquer coisa entre a Serenata Nocturna e a Suite de Holberg. Contornou pela direita o edifício colossal em gótico tardio, parou, hesitou quando a Travessa das Mulheres abriu com os seus patamares, teve a tentação de emborcar um copito ou outro num bar ainda aberto, talvez no Clube dos Actores, que anunciava movimento com o canto que se ouvia pela porta escancarada, resistiu e manteve-se fiel à sua boa disposição: foi em direcção ao hotel.» (in Günter Grass: Mau Agoiro)
«Errou pelas ruas nocturnas consentindo que a aragem leve e tépida das montanhas brincasse nas suas fontes, até que, por fim, num passo resoluto, como se tivesse finalmente divisado um objectivo há muito procurado, entrou num café relativamente pequeno, modesto mas acolhedor, de antigo estilo vienense, moderadamente iluminado e pouco frequentado àquela hora.» (in Arthur Schnitzler: Traumnovelle)
«Le 4 octobre dernier, à la fin d’un de ces après-midi tout à fait désoeuvrés et très mornes, comme j’ai le secret d’en passer, je me trouvais rue Lafayette: après m’être arrêté quelques minutes devant la vitrine de la librairie de L’Humanité et avoir fait l’acquisition du dernier ouvrage de Trotsky, sans but je poursuivais ma route dans la direction de l’Opéra. Les bureaux, les ateliers commençaient à se vider, du haut en bas des maisons des portes se fermaient, des gens sur le trottoir se serraient la main, il commençait tout de même à y avoir plus de monde. J’observais sans le vouloir des visages, des accoutrements, des allures.» (in André Breton: Nadja)
«A humidade vinda do rio encharcava-me os ossos. Deixei de ouvir as badaladas da Sé. Acabou-se-me o tabaco, o que ainda assim foi o pior de tudo. A comichão já não me incomodava muito, a não ser nas costas das mãos. O ardor nos tomates só começou mais tarde, pela manhã, se não estou em erro. Rabiei durante não sei quanto tempo. Não se via vivalma, nem um ladrão de carros para dar dois dedos e cravar um cigarro. Por fim, lá topei uma padaria aberta. As carcaças cairam-me na fraqueza. Costume. Tenho um pacote de manteiga escondido no meu quarto. Aposto que a puta da velha não o encontra nem que vire tudo do avesso. Já não caio noutra.» (in João César Monteiro: Recordações da Casa Amarela)
«Errou pelas ruas nocturnas consentindo que a aragem leve e tépida das montanhas brincasse nas suas fontes, até que, por fim, num passo resoluto, como se tivesse finalmente divisado um objectivo há muito procurado, entrou num café relativamente pequeno, modesto mas acolhedor, de antigo estilo vienense, moderadamente iluminado e pouco frequentado àquela hora.» (in Arthur Schnitzler: Traumnovelle)
«Le 4 octobre dernier, à la fin d’un de ces après-midi tout à fait désoeuvrés et très mornes, comme j’ai le secret d’en passer, je me trouvais rue Lafayette: après m’être arrêté quelques minutes devant la vitrine de la librairie de L’Humanité et avoir fait l’acquisition du dernier ouvrage de Trotsky, sans but je poursuivais ma route dans la direction de l’Opéra. Les bureaux, les ateliers commençaient à se vider, du haut en bas des maisons des portes se fermaient, des gens sur le trottoir se serraient la main, il commençait tout de même à y avoir plus de monde. J’observais sans le vouloir des visages, des accoutrements, des allures.» (in André Breton: Nadja)
«A humidade vinda do rio encharcava-me os ossos. Deixei de ouvir as badaladas da Sé. Acabou-se-me o tabaco, o que ainda assim foi o pior de tudo. A comichão já não me incomodava muito, a não ser nas costas das mãos. O ardor nos tomates só começou mais tarde, pela manhã, se não estou em erro. Rabiei durante não sei quanto tempo. Não se via vivalma, nem um ladrão de carros para dar dois dedos e cravar um cigarro. Por fim, lá topei uma padaria aberta. As carcaças cairam-me na fraqueza. Costume. Tenho um pacote de manteiga escondido no meu quarto. Aposto que a puta da velha não o encontra nem que vire tudo do avesso. Já não caio noutra.» (in João César Monteiro: Recordações da Casa Amarela)
2006-03-15
Sim, Sr. Ministro
A série Sim, Sr. Ministro é um magnífico objecto de estudo para os especialistas da ciência política e da linguística. A política é um domínio da actividade humana que se socorre de uma linguagem muito particular, que visa não só a manipulação do público mas também a estruturação do pensamento dos próprios governantes. Veja-se o caso da guerra do Golfo: o discurso político foi abundante em metáforas do mundo empresarial, que banalizavam o conflito armado e amesquinhavam as suas sequelas humanas, económicas e ambientais. Algo de semelhante acontece com Sim, Sr. Ministro, já que a série retrata um verdadeiro ambiente de guerra: a máquina administrativa do Estado em conflito permanente com o ministro protagonista, cujas propostas, por mais razoáveis e lúcidas que sejam, encontram sempre as maiores resistências.
Uma das armas utilizadas pelos burocratas é precisamente o palavreado complexo, altamente técnico e muitas vezes indecifrável. Esta linguagem decorre do fenómeno que Max Weber designava por profissionalização: os funcionários que exercem o poder burocrático trabalham em regime de exclusividade, no sentido de serem especializados nas suas tarefas e apenas a elas se dedicarem. Ora, esses conhecimentos técnicos específicos fazem dos altos funcionários uma peça fundamental no processo de decisão política e o modo como eles transmitem as informações aos governantes pode condicionar fortemente as suas opções. O nosso ministro queixa-se muitas vezes desse estado de coisas: «das três vezes que dei ordens com palavras de uma só sílaba, recebi relatórios incompreensíveis que diziam exactamente o contrário daquilo que eu lhes tinha pedido para dizerem».
Outro dos traços característicos da linguagem de Sim, Sr. Ministro consiste na abundância do understatement. É uma figura de retórica caracteristicamente britânica, que suaviza a linguagem e torna a realidade menos tangível: a «intrujice» converte-se em «maleabilidade moral», o «encobrimento» em «discrição responsável» e a «greve» em «harmonia industrial». Um excelente exemplo pode ser encontrado no episódio A Visita de Estado:
«O Buranda é o que costumávamos chamar de País Subdesenvolvido. Contudo, esta designação foi universalmente considerada ofensiva. Daí passaram a Países em Vias de Desenvolvimento e mais tarde a Países Menos Desenvolvidos ou PMD. Estamos agora a preparar-nos para substituir PMD por PRRH: Países Ricos em Recursos Humanos. O que significa são mais que sobrepovoados e imploram por dinheiro […] O Buranda seria uma Nação Pré-rica: Pré-rica em petróleo que poderemos explorar dentro de alguns anos. Não é de forma alguma um PQA: um Paísito Qualquer de África.»
Ou seja, a linguagem permite tornear qualquer má consciência que eventualmente existisse relativamente aos países mais pobres de África. Mais uma vez, são os problemas dos políticos com a realidade das coisas.
Poderíamos ainda acrescentar a ironia (a expressão Sim, Sr. Ministro é profundamente irónica, pois é proferida pelos funcionários quando a vontade do governante já foi completamente subjugada), os jogos de palavras e outros brilharetes dos guionistas. Mas por mais inspirados que sejam os diálogos, os melhores momentos da série são silenciosos e estão ligados à linguagem corporal dos três magníficos actores que encabeçam o elenco. Uma troca de olhares, um estalar de dedos ou um sorriso afectado podem ganhar conotações inesperadas e fascinantes: por exemplo, quando o ministro protagonista sabe da sua ascensão a chefe do governo, leva napoleonicamente a mão à barriga, num gesto tão significativo e carregado de simbolismo como a entrée royale de Luís XIV em Paris.
2006-03-09
Brokeback Mountain
Ang Lee afirmou várias vezes que Brokeback Mountain (2005) não é um filme gay, mas apenas uma história sobre a ilusão do amor. O realizador explicou em numerosas entrevistas quais eram as suas intenções: «Aquilo que me interessava era o aspecto dramático da história, o seu impacto emocional e a forma como podia ecoar nas nossas vidas, independentemente das orientações sexuais». Porém, a simpatia de Lee para com as pretensões das pessoas marginalizadas é evidente em toda a sua filmografia. E na cerimónia da entrega dos Óscares, fugiu-lhe a boca para a verdade quando proferiu um discurso eloquente e emocionado em defesa dos direitos das minorias sexuais. Não há dúvidas que Brokeback Mountain é um filme empenhado na causa dos direitos dos homossexuais.
As convicções ideológicas de Ang Lee estão presentes em toda a sua mise en scène e em particular na apetência pelos grandes cenários naturais. É um motivo que Lee foi buscar ao cinema chinês que ele tanto aprecia e que já se tornou numa imagem de marca do realizador. Dos jardins ingleses de Sensibilidade e Bom Senso à montanha mágica de Brokeback Mountain, os espaços naturais nada têm de decorativo e são também protagonistas de pleno direito, com o seu dramatismo, emotividade e simbologia. Novamente, Ang Lee: «Para mim, a montanha é a principal personagem do filme. Por isso, ela tinha de resultar bem visualmente e por isso passei tanto tempo a filmar lá no alto, ao ponto dos meus assistentes me perguntarem se era mesmo preciso demorar tanto».
O conceito de natureza em Brokeback Mountain é abrangente e inclui não apenas as paisagens mas também as pessoas e a sua sexualidade. Os heróis do filme são dois rancheiros pobres, que interagem com o espaço natural e nele projectam a sua interioridade e os seus conflitos íntimos. Os momentos de maior afecto entre ambos ocorrem muitas vezes junto de um rio, imagem simbólica da fertilidade, da morte e da renovação. Por sua vez, a montanha é um lugar de meditação e isolamento: tal como a montanha de Wudan é o lugar a que o protagonista do Tigre e o Dragão se recolhe para o treino de meditação, também o rancheiro de Brokeback Mountain parte numa viagem de introspecção e descoberta interior. O próprio nome do protagonista (Ennis significa literalmente ilha) sugere essa ideia de solidão e abandono.
A natureza selvagem e indómita da montanha contrasta com o espaço urbano. As mulheres exigentes, os sogros detestáveis (curiosamente, um deles é vendedor de máquinas) ou as crianças ruidosas fazem da cidade um lugar disfórico, que representa a América patriarcal e homofóbica dos tempos da Guerra Fria. É um modelo social que merece as maiores reservas de Ang Lee e nem os ritos e símbolos mais sagrados são poupados ao seu olhar crítico: recordemos a mordacidade com que o realizador filma os jantares em família do Dia de Acção de Graças, por contraponto às refeições solitárias e silenciosas na montanha. Mais uma vez, salta à vista a sua solidariedade com as minorias sexuais. Dir-se-á que o filme é protagonizado por um homem homofóbico, que os dois rancheiros pouco fazem para concretizar os seus sonhos de uma vida em comum e que a palavra homossexualidade nem sequer chega a ser proferida. Porém, tudo isso apenas retrata a complexidade do espírito humano. Se Ang Lee tivesse feito um filme unidimensional ou panfletário, dificilmente teria conseguido a adesão do público e estimulado as pessoas à reflexão sobre o absurdo da homofobia.
2006-03-06
Nossa Senhora & São José
«Maria: Zé, vamos ter um bébé.
Zé: O quê? Não pode ser. Eu só to esfrego entre as coxas.
Maria: Pois... não sei. Deve ter havido um imprevisto qualquer.
Zé: Quem disse que estás grávida?
Maria: Um anjo que me apareceu no quintal.
Zé: Um anjo?
Maria: Um anjo do Senhor. Chamava-se Gabriel. Tinha uma trombeta e apareceu-me no quintal.
Zé: O quê?
Maria: Apareceu-me.
Zé: Estava nu?
Maria: Não. Acho que tinha uma gabardina. Não sei bem. Brilhava muito e não dava para ver bem.
Zé: Maria, tu não andas bem. Porque não tiras uns dias de folga? As contas da loja podem esperar.
Maria: Estou-te a dizer, Zé. O Anjo Gabriel disse-me que o Senhor quer que eu tenha o filho Dele.
Zé: Pediste para te mandarem um sinal qualquer?
Maria: Claro que sim. E ele disse-me que amanhã ia começar a ficar enjoada.
Zé: Mas porque é que Deus quer um puto?
Maria: Bom... o Gabriel disse que, de acordo com o Lucas, tem a ver com o ego. Além disso, parece que prometeu aos judeus mas esteve muito ocupado até agora. Mas agora que finalmente se sente preparado para ter filhos, não quer limitar-se a fazer um de barro ou pó. Quer que haja humanos envolvidos no processo.
Zé: E está a pensar ajudar nas despesas? Deus sabe que não podemos sozinhos. Dava-me jeito uma loja maior e podia arranjar-me um daqueles contratos para fazer cruzes. Os romanos andam a pregar toda a gente a que deitam as mãos.
Maria: Querido, o Gabriel disse que não há motivo para preocupações. O miúdo tem a vida feita. Vai ser um excelente orador e ter jeito para milagres.
Zé: Ao menos isso. Olha lá, agora que estás oficialmente grávida, achas que podemos... passar à acção a sério?
Maria: Desculpa, querido. Deus quer que isto seja um parto de uma mãe virgem.
Zé: Não estou a perceber.
Maria: É isso mesmo que ouviste, Zé.
Zé: Quer dizer que não posso fazer nada?
Maria: Ele quer que arranjes um nome para o miúdo.
Zé: Cristo!
Maria: Boa, Zé. És o maior!»
(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, Novembro de 2005)
Zé: O quê? Não pode ser. Eu só to esfrego entre as coxas.
Maria: Pois... não sei. Deve ter havido um imprevisto qualquer.
Zé: Quem disse que estás grávida?
Maria: Um anjo que me apareceu no quintal.
Zé: Um anjo?
Maria: Um anjo do Senhor. Chamava-se Gabriel. Tinha uma trombeta e apareceu-me no quintal.
Zé: O quê?
Maria: Apareceu-me.
Zé: Estava nu?
Maria: Não. Acho que tinha uma gabardina. Não sei bem. Brilhava muito e não dava para ver bem.
Zé: Maria, tu não andas bem. Porque não tiras uns dias de folga? As contas da loja podem esperar.
Maria: Estou-te a dizer, Zé. O Anjo Gabriel disse-me que o Senhor quer que eu tenha o filho Dele.
Zé: Pediste para te mandarem um sinal qualquer?
Maria: Claro que sim. E ele disse-me que amanhã ia começar a ficar enjoada.
Zé: Mas porque é que Deus quer um puto?
Maria: Bom... o Gabriel disse que, de acordo com o Lucas, tem a ver com o ego. Além disso, parece que prometeu aos judeus mas esteve muito ocupado até agora. Mas agora que finalmente se sente preparado para ter filhos, não quer limitar-se a fazer um de barro ou pó. Quer que haja humanos envolvidos no processo.
Zé: E está a pensar ajudar nas despesas? Deus sabe que não podemos sozinhos. Dava-me jeito uma loja maior e podia arranjar-me um daqueles contratos para fazer cruzes. Os romanos andam a pregar toda a gente a que deitam as mãos.
Maria: Querido, o Gabriel disse que não há motivo para preocupações. O miúdo tem a vida feita. Vai ser um excelente orador e ter jeito para milagres.
Zé: Ao menos isso. Olha lá, agora que estás oficialmente grávida, achas que podemos... passar à acção a sério?
Maria: Desculpa, querido. Deus quer que isto seja um parto de uma mãe virgem.
Zé: Não estou a perceber.
Maria: É isso mesmo que ouviste, Zé.
Zé: Quer dizer que não posso fazer nada?
Maria: Ele quer que arranjes um nome para o miúdo.
Zé: Cristo!
Maria: Boa, Zé. És o maior!»
(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, Novembro de 2005)
2006-03-01
Centelha Luminosa
O melhor e mais polémico blogue anarquista: a Centelha Luminosa. O seu criador chama-se SAM e é já um dos meus heróis da blogosfera.
2006-02-26
Tubarão
Os filmes de Steven Spielberg deixam-nos com o coração dividido ao meio. É verdade que Spielberg não é o cineasta mais profundo que existe e que a sua visão do mundo é muitas vezes pueril, simplista e ingénua. Em contrapartida, o realizador da Lista de Schindler sempre revelou uma energia notável e um grande conhecimento das técnicas dramáticas e dos princípios fundamentais da psicologia da percepção e da compreensão que as regem. Foram estas qualidades que fizeram de Spielberg o cineasta mais famoso da actualidade e um ícone da cultura popular, que ombreia com nomes como Mark Twain, Walt Disney, Norman Rockwell, Ernest Hemingway ou Aaron Copland.
O extraordinário filme Tubarão (1975) é, ainda hoje, a melhor coisa que Steven Spielberg fez em cinema. Curiosamente e talvez por causa das filmagens longas e conturbadas, o cineasta nunca gostou muito do resultado final: «quando revejo o filme, tenho a sensação que foi outra pessoa que o realizou». A afirmação é surpreendente, pois Tubarão é um verdadeiro filme de autor, naquele sentido particular que foi formulado pelos críticos da Nouvelle Vague. O projecto dos produtores Richard Zanuck e David Brown começou por ser o de um típico filme de aventuras, cuja raison d’être consistia exclusivamente no sucesso comercial; porém, o jovem realizador depressa se impôs e deixou indeléveis as marcas do seu génio criativo. Por exemplo, o ritmo. O filme move-se a um ritmo prodigioso e não há um único fotograma que seja inútil, redundante ou aborrecido.
Vale a pena determo-nos um pouco sobre esta questão do ritmo. Se toda a história é uma metáfora da vida, então um filme deverá seguir o ritmo particular dessa mesma vida. Ora, o andamento do nosso quotidiano não é uniforme, pois os momentos de maior agitação alternam geralmente com os de algum sossego: o frenesim do trabalho no escritório, uma visita mais tranquila ao café da esquina para retemperar energias e o regresso à confusão quando se conduz o automóvel de volta a casa. Algo de semelhante acontece com os filmes: uma sequência lenta talvez pareça aborrecida se vier após outra sequência igualmente lenta; mas se preceder uma sequência mais dinâmica, poderá já ser bem acolhida. É tudo uma questão de contexto.
Um excelente exemplo da mestria de Spielberg é a sequência em que o embarcadouro é destruído pelo monstro marinho. É um momento pleno de ritmo, precisamente porque junta com eficácia o terror e o humor. Os dois pescadores escapam ao ataque do tubarão por uma unha negra e um deles desabafa: «Já podemos ir para casa?!» É uma réplica divertidíssima e no tempo certo, que permite que o espectador dê uma saudável gargalhada e liberte a tensão acumulada. Mais uma vez, é uma questão de contexto.
A primeira aparição do tubarão branco também conjuga esses dois elementos, mas agora na ordem inversa: primeiro o humor e depois o terror. Já no barco de pesca, o protagonista lança isco ao mar e resmunga que não tem muita vontade de estar ali «a atirar aquela merda»; nesse preciso instante, o tubarão irrompe das águas e exibe as suas temíveis mandíbulas. Uma entrada em grande! Até então, o monstro marinho nunca nos havia sido mostrado, mas apenas sugerido por uma série de sinais indiciadores da sua presença: a música de John Williams, os gritos de terror dos banhistas ou a barbatana dorsal à superfície da água. Esta estratégia (que já se tornou num cliché do cinema do terror) seria repetida noutros filmes de Spielberg: por exemplo, a aproximação do T-Rex no Parque Jurássico é sinalizada pela agitação nas copas das árvores ou pelas vibrações da água.
O momento mais encantador do filme é aquele em que o protagonista e o filho brincam à mesa de jantar, que contrasta com o ritmo implacável do resto da história. Spielberg sempre teve um enorme afecto pelas crianças e a sua qualidade de pai de família exemplar emerge nessa magnífica sequência, a mais comovente e reveladora de toda a sua filmografia. Isto introduz a noção de verdade do cinema. Os filmes poderão ser obras ficcionais, mas são também profundamente verdadeiros, porque desvelam o universo interior dos cineastas e deixam registadas a sua personalidade e psicologia. É essa genuinidade de sentimentos que faz de Tubarão um filme com o valor de documento humano.
2006-02-13
George Carlin
«Pessoalmente, acho que há tantas provas da existência de OVNIS como da existência de Deus. Talvez até haja mais. Pelo menos, no caso dos OVNIS, há inúmeros avistamentos filmados (e inexplicáveis) em todo o mundo, juntamente com indícios captados por radar e examinados por operadores de radar civis e militares com anos de experiência.»
«Os adoradores de crianças profissionais dizem que devíamos pôr as necessidades das crianças em primeiro lugar. Porquê? Então e as necessidades dos adultos? Ficam para segundo? É uma estupidez. Se pusermos as necessidades das crianças primeiro, vamos ficar com fraldas e chupa-chupas a mais e com charros e preservativos a menos.»
«Sabem o que nunca se vê? Um coreano com sardas e nariz grande.»
«'Gourmet': cá está mais uma palavra que os filhos da mãe da publicidade nos impingiram. Hoje, tudo é 'gourmet': comida 'gourmet' enlatada, refeição 'gourmet' pronta a comer. Olhem lá, tentem não ser estúpidos demais, está bem? O café não pode ser 'gourmet'. Nem os bolos e nem a pizza. 'Gourmet' só quer dizer uma coisa: 'vamos cobrar-lhe mais dinheiro'. O mesmo é válido para a palavra culinária. A diferença entre comida e culinária é sessenta dólares. Mais nada. Estão a roubar-vos. Sabem o que é comida 'gourmet' a sério? Pénis de caracol tostado. Filete de rabo de panda em calda de açúcar. Entranhas de pato na cataplana. Isto é que é culinária.»
«Entre duas pessoas, o amor é incrivelmente poderoso. É uma coisa linda. Mas, se o amor tivesse algum poder para mudar o mundo, já devia ter conseguido. O amor não pode mudar o mundo. É bom. É agradável. É melhor que o ódio. Mas não tem poder especial nenhum sobre as coisas. Sabe bem. Ama-te a ti próprio, procura outra pessoa para amar e aproveita.»
«Aqui ficam as dicas de cozinha para hoje do Restaurante Familiar do Piorio: carne picada que foi deixada à temperatura ambiente por mais de nove dias e endureceu ligeiramente pode ser amaciada através da infusão numa mistura de gasolina e acetona. Deixe a carne de molho de um dia para o outro e seque-a ao sol durante vários dias. Certifique-se de que o tempero será bem condimentado para disfarçar o sabor a gasolina. Tente usar a carne logo após concluído o processo. Já agora, carne preparada desta maneira não deverá ser cozinhada ao lume.»
«Beethoven era discípulo de Haydn e Schubert morava perto dos dois. Supostamente, frequentavam todos os mesmos cafés. Gostava de saber se alguma vez se juntaram e fizeram uma orgia com uma pianista. Lembrei-me disto.»
«E sabem que mais? Na semana passada, atropelei uma ovelha. Ou, se calhar, atropelei um anão com um casaco de pele de ovelha. Não tenho a certeza porque não parei. É outra regra minha: nunca paro quando tenho acidentes. Vocês param? Não. Não podem. Quem é que tem tempo? Eu não.»
«Bush chama cobardes às pessoas da al-Qaeda e diz 'eles gostam de se esconder'. Ora bem, não foi precisamente isso que o Exército Continental americano fez durante a revolução? Os nossos estimados patriotas? Esconderam-se. Esconderam-se atrás das árvores. Saíam do esconderijo, matavam uns soldados britânicos e fugiam. Tal e qual como a al-Qaeda. É isso que se faz quando se está em desvantagem numérica e se tem menos poder de fogo do que o inimigo. Chama-se a isso 'tentar vencer'. Não é cobardia.»
«No Estado de Nova Iorque, a lei diz que os ingredientes dos cachorros quentes podem incluir uma determinada quantidade ou percentagem de partes de insectos ou excrementos de rato. A lei permite isto. Portanto, quando comem um cachorro quente em Nova Iorque, têm a esperança de que o cachorro que estão a comer contenha apenas as partes mais nutritivas dos insectos (não apenas as patas e as antenas) e que os ratos cujos excrementos estão a comer tivessem dietas saudáveis.»
«Não é por não terem muito dinheiro que não podem gastar o pouco que têm.»
(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2005)
«Os adoradores de crianças profissionais dizem que devíamos pôr as necessidades das crianças em primeiro lugar. Porquê? Então e as necessidades dos adultos? Ficam para segundo? É uma estupidez. Se pusermos as necessidades das crianças primeiro, vamos ficar com fraldas e chupa-chupas a mais e com charros e preservativos a menos.»
«Sabem o que nunca se vê? Um coreano com sardas e nariz grande.»
«'Gourmet': cá está mais uma palavra que os filhos da mãe da publicidade nos impingiram. Hoje, tudo é 'gourmet': comida 'gourmet' enlatada, refeição 'gourmet' pronta a comer. Olhem lá, tentem não ser estúpidos demais, está bem? O café não pode ser 'gourmet'. Nem os bolos e nem a pizza. 'Gourmet' só quer dizer uma coisa: 'vamos cobrar-lhe mais dinheiro'. O mesmo é válido para a palavra culinária. A diferença entre comida e culinária é sessenta dólares. Mais nada. Estão a roubar-vos. Sabem o que é comida 'gourmet' a sério? Pénis de caracol tostado. Filete de rabo de panda em calda de açúcar. Entranhas de pato na cataplana. Isto é que é culinária.»
«Entre duas pessoas, o amor é incrivelmente poderoso. É uma coisa linda. Mas, se o amor tivesse algum poder para mudar o mundo, já devia ter conseguido. O amor não pode mudar o mundo. É bom. É agradável. É melhor que o ódio. Mas não tem poder especial nenhum sobre as coisas. Sabe bem. Ama-te a ti próprio, procura outra pessoa para amar e aproveita.»
«Aqui ficam as dicas de cozinha para hoje do Restaurante Familiar do Piorio: carne picada que foi deixada à temperatura ambiente por mais de nove dias e endureceu ligeiramente pode ser amaciada através da infusão numa mistura de gasolina e acetona. Deixe a carne de molho de um dia para o outro e seque-a ao sol durante vários dias. Certifique-se de que o tempero será bem condimentado para disfarçar o sabor a gasolina. Tente usar a carne logo após concluído o processo. Já agora, carne preparada desta maneira não deverá ser cozinhada ao lume.»
«Beethoven era discípulo de Haydn e Schubert morava perto dos dois. Supostamente, frequentavam todos os mesmos cafés. Gostava de saber se alguma vez se juntaram e fizeram uma orgia com uma pianista. Lembrei-me disto.»
«E sabem que mais? Na semana passada, atropelei uma ovelha. Ou, se calhar, atropelei um anão com um casaco de pele de ovelha. Não tenho a certeza porque não parei. É outra regra minha: nunca paro quando tenho acidentes. Vocês param? Não. Não podem. Quem é que tem tempo? Eu não.»
«Bush chama cobardes às pessoas da al-Qaeda e diz 'eles gostam de se esconder'. Ora bem, não foi precisamente isso que o Exército Continental americano fez durante a revolução? Os nossos estimados patriotas? Esconderam-se. Esconderam-se atrás das árvores. Saíam do esconderijo, matavam uns soldados britânicos e fugiam. Tal e qual como a al-Qaeda. É isso que se faz quando se está em desvantagem numérica e se tem menos poder de fogo do que o inimigo. Chama-se a isso 'tentar vencer'. Não é cobardia.»
«No Estado de Nova Iorque, a lei diz que os ingredientes dos cachorros quentes podem incluir uma determinada quantidade ou percentagem de partes de insectos ou excrementos de rato. A lei permite isto. Portanto, quando comem um cachorro quente em Nova Iorque, têm a esperança de que o cachorro que estão a comer contenha apenas as partes mais nutritivas dos insectos (não apenas as patas e as antenas) e que os ratos cujos excrementos estão a comer tivessem dietas saudáveis.»
«Não é por não terem muito dinheiro que não podem gastar o pouco que têm.»
(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2005)
2006-02-06
Canções do Tiago
O magnífico blogue do guionista que escreveu o parto mais poético e surpreendente da história do cinema: as Canções do Tiago.
2006-02-02
George W. Bush
Quando foi questionado sobre Brokeback Mountain, o nosso imperador George W. Bush limitou-se a dizer que não viu o filme. Muito prudente da parte dele, mas o sorriso de escárnio não enganou ninguém.
2006-01-31
Manoel de Oliveira
Trabalhar com o Manoel de Oliveira é sempre um prazer enorme. Tudo corre na perfeição: não há gritarias, os horários são cumpridos ao segundo e no final todos estão contentes com um trabalho bem feito. É a diferença entre um grande mestre do cinema como o Oliveira e as baratas tontas do costume.
2006-01-30
Almeida Garrett
Depois de 1854, o nosso Almeida Garrett morre uma segunda vez com a destruição da sua casa em Campo de Ourique. Para construir, ao que parece, apartamentos de luxo, onde os vereadores poderão dar a foda das três da tarde.
2006-01-27
Adeus Lenine!
A dimensão privada da história é muitas vezes esquecida. Até recentemente, a historiografia científica e pragmática pouco dizia sobre a repercussão dos acontecimentos históricos na esfera privada e quem quisesse saber algo a esse respeito teria de ler biografias de pessoas desconhecidas. Porém, a plena compreensão da história implica o conhecimento desses dois domínios – público e privado – e da interacção entre eles. A destituição de Bismarck poderá ter sido decisiva para a Alemanha, mas dificilmente será uma data importante na biografia do alemão comum: nenhuma família foi separada, nenhuma amizade se destruiu e a vida seguiu o seu curso. Já a construção do muro de Berlim representou uma revolução no quotidiano de milhões de pessoas. Há duas obras célebres que a abordaram brilhantemente: uma, é o filme Adeus Lenine! (2003), de Wolfgang Becker; a outra, é o romance O Saltador do Muro (1982), de Peter Schneider.
As páginas iniciais do livro de Schneider descrevem uma vista aérea de Berlim. Observada do céu, a Colossal apresenta-se como uma unidade orgânica e nada indicia que nela confinam dois continentes políticos. Porém, a dividi-la está o muro que, «com o seu fantástico trajecto em ziguezague, aparece como o produto monstruoso de uma fantasia anárquica». O formidável paredão constitui a fronteira mais vigiada e difícil de atravessar em todo o mundo, mas alguns berlinenses não se conformam com esse estado de coisas. Por exemplo, os famosos saltadores. É o caso de Lutz e os irmãos Willy, três cinéfilos do Leste que arriscam a vida para poderem ver filmes do Charles Bronson no Ocidente; ou do quarentão Kabe, que salta para o lado oriental «por uma necessidade doentia de transpor o muro». Tudo isto reforça aquela impressão inicial de verdadeira unidade, mas O Saltador do Muro deixa o leitor com uma interrogação inquietante: ainda que o muro de betão venha a cair, há muitos outros muros interiores que devem ser derrubados.
Adeus Lenine! é uma espécie de sequela cinematográfica do romance de Peter Schneider. As afinidades entre o filme e o livro são evidentes: o mesmo sentido de humor absurdo percorre como uma seiva vital as duas obras; ambas abordam a chamada questão alemã sem os preconceitos e ideias caricaturadas do costume; e ambas dão primazia à história do quotidiano.
O filme começa com mais uma travessia do muro: o saltador consegue escapar para o Ocidente, mas tem de deixar a mulher e os dois filhos no lado Leste. Sozinha, a mãe substitui o marido pelo Estado socialista. Não é uma troca completamente irrazoável: o acordo dá-lhe segurança, habitação e emprego, além do que ela acredita convictamente no princípio «de cada um conforme as capacidades, a cada um segundo as necessidades» sobre o qual assenta a Alemanha socialista. Em contrapartida, a nossa protagonista terá de prescindir da sua individualidade, pois os 500.000 informantes da Stasi tornam o quotidiano da RDA reprimido e desconfiado: antes de deixar a boca, cada palavra é minuciosamente ponderada; um sorriso na altura errada ou um olhar inconveniente podem originar perigosas suspeitas e acusações; e até alguns gestos, tons de voz ou peças de roupa podem ser interpretados como sinais de orientações políticas subversivas.
Apesar da repressão policial, a mentalidade pragmática e austera dos alemães de Leste acomodou-se a essa ideologia que glorificava a classe trabalhadora, elogiava a diligência e pregava a obediência à autoridade de um partido único. A reunificação exigirá que esses 16 milhões de pessoas reformulem abruptamente todo um modo de vida. Ao contrário dos irmãos e irmãs do Ocidente, os alemães orientais nunca tiveram a oportunidade de se adaptar psicologicamente ao regime democrático e partem para a aventura da reunificação em situação de clara desvantagem. Esfriada a euforia inicial, há uma sensação nítida de perda e a crispação prolifera entre Ossis e Wessis: o protagonista de Adeus Lenine! insulta o funcionário dos câmbios chamando-o de «ocidental de merda» e o cunhado do Ocidente responde que «vocês, os alemães de Leste, nunca estão satisfeitos». Afinal, a premonição de Peter Schneider estava correcta...
Alguns muros parecem mesmo ser insuperáveis. O vínculo da mãe à antiga RDA é tão profundo, que uma não pode sobreviver sem a outra. A protagonista morre pouco após a extinção do seu país e as recordações dessas duas mães confundem-se no espírito do jovem herói do filme: «O país que a minha mãe deixou foi o país em que ela acreditou. E nós mantivemo-lo vivo até ao seu último suspiro. Um país que nunca existiu desta forma. Um país que, para mim, estará sempre associado à minha mãe». Esta nostalgia é, ainda hoje, comungada por muitos alemães do Leste e alguns deles acreditam até na possibilidade de um regresso parcial ao passado ou terceira via: uma solução compromissória que reunisse o melhor do capitalismo e do socialismo. Se há no mundo algum povo capaz de concretizar com sucesso uma utopia dessas, é o alemão.
2006-01-16
Bocage (v)
Agora que estreou a série Bocage na RTP, o realizador Fernando Vendrell já pode exclamar: «Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!» Parabéns ao elenco, à equipa técnica e... a mim também, que lá estou no papel de Mosca!
2006-01-13
Jel
A revelação televisiva do ano é o Jel (assim mesmo, com jota). Semana após semana, o intrépido DJ e humorista arriscou a vida (literalmente!) para nos proporcionar os melhores momentos da Revolta dos Pastéis de Nata.
2006-01-09
Botequins bloguísticos
Alguns estabelecimentos da blogosfera onde se está muito bem: No Café, a Tasca da Cultura e o botequim do extraordinário Nuno Markl.
2006-01-06
Ota
300 anos antes da polémica Ota, já o filósofo Voltaire fornecia os argumentos contra a construção do novo aeroporto: «On arrive à la mort aussi bien en manquant de tout qu'en jouissant de ce qui peut rendre la vie agréable. Le sauvage du Canada subsiste et atteint la vieillesse comme le citoyen d'Angleterre qui a cinquante mille guinées de revenu. Mais qui comparera jamais le pays des Iroquois à l'Angleterre? Que la république de Raguse et le canton de Zug fassent des lois sumptuaires: ils ont raison, il faut que le pauvre ne dépense point au-delà de ses forces; mais j'ai lu quelque part: 'Sachez surtout que le luxe enrichit un grand État, s'il en perd un petit.'»
2006-01-04
Um Violino no Telhado
Segundo Um Violino no Telhado (1971), o segredo da longevidade do povo judaico está nas suas tradições. A tese do filme é enunciada logo na sua memorável sequência de abertura: «Um violinista no telhado. Parece uma loucura, não é? Mas aqui, na nossa pequena aldeia de Anatevka, pode dizer-se que cada um de nós é um violinista no telhado. A tentar arranhar uma melodia agradável e simples sem partir o pescoço. Não é fácil. Talvez perguntem porque é que ficamos lá em cima se é tão perigoso? Bem, ficamos porque Anatevka é a nossa casa. E como mantemos o equilíbrio? Isso, posso dizer-vos numa palavra: tradição». As tradições sempre foram a «pátria portátil» dos judeus e uma fonte de força nos momentos mais difíceis da sua História. Porém, o mundo não pára e a evolução dos tempos vai pôr em questão o sentido e a viabilidade de muitos desses costumes.
O primeiro teste às convicções do protagonista surge com o noivado da sua filha mais velha. Seguindo a tradição, o pai escolheu o noivo e decidiu-se pelo velho talhante da aldeia. Para uma família pobre como é a do nosso herói, é difícil casar uma filha e qualquer pretendente que tenha duas pernas e um coração ainda a bater não é coisa que se despreze. Mais: o talhante é rico, trabalhador e honesto, ainda que seja idoso e lhe falte a erudição (kuppah). Porém, a jovem está apaixonada por outro homem e não quer casar com os restos velhos de ninguém. Um grande problema, sobretudo porque os dois jovens já se tinham comprometido em segredo. O pai tem de decidir e acede às pretensões da filha: mesmo que o futuro genro seja uma migalha de homem, os filhos são o bem mais precioso de um judeu e a sua felicidade é um verdadeiro mandamento (mitzvá).
A sequência do casamento é notável pela sua riqueza de pormenores. O realizador detém-se longamente sobre os rituais e pequenos gestos, que são plenos de significado espiritual: a cerimónia decorre ao ar livre, como um prenúncio de que o casamento será abençoado com tantas crianças quantas sejam as estrelas do céu; os nubentes estão sob uma tenda (chupá), que simboliza o novo lar que está a ser criado; e o rabi administra as bênções sobre a taça de vinho, símbolo da alegria e contentamento. A cerimónia termina com um costume estranho, quando o noivo quebra um copo de vidro com o pé: isto recorda que a alegria deve ser moderada pela memória das catástrofes do povo e que a felicidade dos judeus nunca estará completa enquanto o Templo de Jerusalém permanecer destruído.
A quebra do copo revela-se tristemente premonitória quando o casamento é interrompido pela investida dos militares russos sobre a aldeia. É um pogrom que não poupa ninguém e reduz Anatevka a um amontoado de escombros. O plano picado que conclui a sequência é memorável: por entre a destruição, o protagonista questiona o céu sobre o sentido de toda aquela violência. Isto suscita duas observações. A primeira reporta-se à relação dialéctica que os judeus mantêm com a sua divindade. Questionar faz parte da condição judaica e, como se vê, nem Deus escapa ao interrogatório: o nosso protagonista não só conversa com o Senhor, como chega a argumentar com Ele, seguindo o exemplo de Abraão. A segunda observação respeita ao dilema moral da injustiça no mundo. Afinal, se o Deus judaico é amoroso e Todo-Poderoso, como é que se justifica que aconteçam coisas más como estas às pessoas inocentes? Esta é a mais fundamental dificuldade humana com Deus e a Bíblia não a esquece. O Livro de Job, que descreve o percurso de um justo que passa da felicidade à miséria, ensina que os desígnios divinos estão para lá da nossa compreensão. Mais tarde, os filósofos judeus resumiram esta ideia: «se eu pudesse compreender Deus, eu seria Deus».
Até a destruição da aldeia parece insignificante aos olhos do protagonista, quando descobre que a filha mais nova casou secretamente com um gentio. Novamente, o leitmotiv da tradição: o casamento com alguém exterior à fé é inaceitável e o último dos tabus, pois «um pássaro pode amar um peixe, mas onde construiriam uma casa juntos?» As palavras do protagonista recordam-nos o milagre de Chanuká (Festa da Dedicação do Templo) ou Festa das Luzes: tal como o óleo que alimentou a lâmpada do Templo nunca se mistura com os outros líquidos, também os judeus sempre recusaram a assimilação. Num dos momentos mais emocionantes do filme, o protagonista terá de reunir toda a sua força para aceitar a filha de volta e proferir aquelas palavras decisivas: «que Deus te acompanhe».
A maior provação de todas está reservada para o final, quando a população de Anatevka é expulsa por decreto do czar. A triste procissão de judeus errantes representa, por sinédoque, o sofrimento e desenraizamento de todo um povo e sublinha a completa ausência de sentido do anti-semitismo. Nada justifica o degredo desta comunidade pacífica, trabalhadora e estabelecida há mais de três séculos, tal como nada justifica a perseguição milenar aos judeus. Mas esta gente tem o hábito de sobreviver. Os judeus escorraçados de Anatevka são, na verdade, os mais afortunados: muitos deles escaparão com vida e alguns conseguirão até realizar o sonho de «fazer a América». O violinista, agora com os pés bem assentes no chão, estará sempre a zelar por eles e, enquanto a sua música continuar a ser ouvida, nada terão a temer.
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