2006-03-15
Sim, Sr. Ministro
A série Sim, Sr. Ministro é um magnífico objecto de estudo para os especialistas da ciência política e da linguística. A política é um domínio da actividade humana que se socorre de uma linguagem muito particular, que visa não só a manipulação do público mas também a estruturação do pensamento dos próprios governantes. Veja-se o caso da guerra do Golfo: o discurso político foi abundante em metáforas do mundo empresarial, que banalizavam o conflito armado e amesquinhavam as suas sequelas humanas, económicas e ambientais. Algo de semelhante acontece com Sim, Sr. Ministro, já que a série retrata um verdadeiro ambiente de guerra: a máquina administrativa do Estado em conflito permanente com o ministro protagonista, cujas propostas, por mais razoáveis e lúcidas que sejam, encontram sempre as maiores resistências.
Uma das armas utilizadas pelos burocratas é precisamente o palavreado complexo, altamente técnico e muitas vezes indecifrável. Esta linguagem decorre do fenómeno que Max Weber designava por profissionalização: os funcionários que exercem o poder burocrático trabalham em regime de exclusividade, no sentido de serem especializados nas suas tarefas e apenas a elas se dedicarem. Ora, esses conhecimentos técnicos específicos fazem dos altos funcionários uma peça fundamental no processo de decisão política e o modo como eles transmitem as informações aos governantes pode condicionar fortemente as suas opções. O nosso ministro queixa-se muitas vezes desse estado de coisas: «das três vezes que dei ordens com palavras de uma só sílaba, recebi relatórios incompreensíveis que diziam exactamente o contrário daquilo que eu lhes tinha pedido para dizerem».
Outro dos traços característicos da linguagem de Sim, Sr. Ministro consiste na abundância do understatement. É uma figura de retórica caracteristicamente britânica, que suaviza a linguagem e torna a realidade menos tangível: a «intrujice» converte-se em «maleabilidade moral», o «encobrimento» em «discrição responsável» e a «greve» em «harmonia industrial». Um excelente exemplo pode ser encontrado no episódio A Visita de Estado:
«O Buranda é o que costumávamos chamar de País Subdesenvolvido. Contudo, esta designação foi universalmente considerada ofensiva. Daí passaram a Países em Vias de Desenvolvimento e mais tarde a Países Menos Desenvolvidos ou PMD. Estamos agora a preparar-nos para substituir PMD por PRRH: Países Ricos em Recursos Humanos. O que significa são mais que sobrepovoados e imploram por dinheiro […] O Buranda seria uma Nação Pré-rica: Pré-rica em petróleo que poderemos explorar dentro de alguns anos. Não é de forma alguma um PQA: um Paísito Qualquer de África.»
Ou seja, a linguagem permite tornear qualquer má consciência que eventualmente existisse relativamente aos países mais pobres de África. Mais uma vez, são os problemas dos políticos com a realidade das coisas.
Poderíamos ainda acrescentar a ironia (a expressão Sim, Sr. Ministro é profundamente irónica, pois é proferida pelos funcionários quando a vontade do governante já foi completamente subjugada), os jogos de palavras e outros brilharetes dos guionistas. Mas por mais inspirados que sejam os diálogos, os melhores momentos da série são silenciosos e estão ligados à linguagem corporal dos três magníficos actores que encabeçam o elenco. Uma troca de olhares, um estalar de dedos ou um sorriso afectado podem ganhar conotações inesperadas e fascinantes: por exemplo, quando o ministro protagonista sabe da sua ascensão a chefe do governo, leva napoleonicamente a mão à barriga, num gesto tão significativo e carregado de simbolismo como a entrée royale de Luís XIV em Paris.
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8 comentários:
Grande serie, sem duvida alguma!!!:)
lol É realista, sem dúvida, amigo SAM. Num dos episódios, o ministro queixa-se de ter sido alvo de escutas telefónicas ilegais e fala do perigo da democracia, das garantias, etc. Faz-vos recordar alguma coisa? lol
Que saudades...
Um excelente texto, bem estruturado. Onde, estas palavras reflectem a realidade, hipócrita, dos nossos governantes.
Julgam que esta geração é de papalvos, mas enganam-se. Esta geração é, pela força negativas das circunstâncias do mercado livre, a geração mais culta, sobe todos os aspectos.
Fez-me lembrar a famosa metáfora do grande Eça «o governo não pode cair porque não é um edifício. Sairá com benzina porque é uma nódoa».
O que é interessante na série é que o ministro não é mau nem estúpido - não é propriamente «uma nódoa». Pelo contrário, até é um protagonista simpático e bem intencionado. O problema é o chamado sistema, tão poderoso e enraizado que acaba por levar sempre a melhor.
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