2006-01-27
Adeus Lenine!
A dimensão privada da história é muitas vezes esquecida. Até recentemente, a historiografia científica e pragmática pouco dizia sobre a repercussão dos acontecimentos históricos na esfera privada e quem quisesse saber algo a esse respeito teria de ler biografias de pessoas desconhecidas. Porém, a plena compreensão da história implica o conhecimento desses dois domínios – público e privado – e da interacção entre eles. A destituição de Bismarck poderá ter sido decisiva para a Alemanha, mas dificilmente será uma data importante na biografia do alemão comum: nenhuma família foi separada, nenhuma amizade se destruiu e a vida seguiu o seu curso. Já a construção do muro de Berlim representou uma revolução no quotidiano de milhões de pessoas. Há duas obras célebres que a abordaram brilhantemente: uma, é o filme Adeus Lenine! (2003), de Wolfgang Becker; a outra, é o romance O Saltador do Muro (1982), de Peter Schneider.
As páginas iniciais do livro de Schneider descrevem uma vista aérea de Berlim. Observada do céu, a Colossal apresenta-se como uma unidade orgânica e nada indicia que nela confinam dois continentes políticos. Porém, a dividi-la está o muro que, «com o seu fantástico trajecto em ziguezague, aparece como o produto monstruoso de uma fantasia anárquica». O formidável paredão constitui a fronteira mais vigiada e difícil de atravessar em todo o mundo, mas alguns berlinenses não se conformam com esse estado de coisas. Por exemplo, os famosos saltadores. É o caso de Lutz e os irmãos Willy, três cinéfilos do Leste que arriscam a vida para poderem ver filmes do Charles Bronson no Ocidente; ou do quarentão Kabe, que salta para o lado oriental «por uma necessidade doentia de transpor o muro». Tudo isto reforça aquela impressão inicial de verdadeira unidade, mas O Saltador do Muro deixa o leitor com uma interrogação inquietante: ainda que o muro de betão venha a cair, há muitos outros muros interiores que devem ser derrubados.
Adeus Lenine! é uma espécie de sequela cinematográfica do romance de Peter Schneider. As afinidades entre o filme e o livro são evidentes: o mesmo sentido de humor absurdo percorre como uma seiva vital as duas obras; ambas abordam a chamada questão alemã sem os preconceitos e ideias caricaturadas do costume; e ambas dão primazia à história do quotidiano.
O filme começa com mais uma travessia do muro: o saltador consegue escapar para o Ocidente, mas tem de deixar a mulher e os dois filhos no lado Leste. Sozinha, a mãe substitui o marido pelo Estado socialista. Não é uma troca completamente irrazoável: o acordo dá-lhe segurança, habitação e emprego, além do que ela acredita convictamente no princípio «de cada um conforme as capacidades, a cada um segundo as necessidades» sobre o qual assenta a Alemanha socialista. Em contrapartida, a nossa protagonista terá de prescindir da sua individualidade, pois os 500.000 informantes da Stasi tornam o quotidiano da RDA reprimido e desconfiado: antes de deixar a boca, cada palavra é minuciosamente ponderada; um sorriso na altura errada ou um olhar inconveniente podem originar perigosas suspeitas e acusações; e até alguns gestos, tons de voz ou peças de roupa podem ser interpretados como sinais de orientações políticas subversivas.
Apesar da repressão policial, a mentalidade pragmática e austera dos alemães de Leste acomodou-se a essa ideologia que glorificava a classe trabalhadora, elogiava a diligência e pregava a obediência à autoridade de um partido único. A reunificação exigirá que esses 16 milhões de pessoas reformulem abruptamente todo um modo de vida. Ao contrário dos irmãos e irmãs do Ocidente, os alemães orientais nunca tiveram a oportunidade de se adaptar psicologicamente ao regime democrático e partem para a aventura da reunificação em situação de clara desvantagem. Esfriada a euforia inicial, há uma sensação nítida de perda e a crispação prolifera entre Ossis e Wessis: o protagonista de Adeus Lenine! insulta o funcionário dos câmbios chamando-o de «ocidental de merda» e o cunhado do Ocidente responde que «vocês, os alemães de Leste, nunca estão satisfeitos». Afinal, a premonição de Peter Schneider estava correcta...
Alguns muros parecem mesmo ser insuperáveis. O vínculo da mãe à antiga RDA é tão profundo, que uma não pode sobreviver sem a outra. A protagonista morre pouco após a extinção do seu país e as recordações dessas duas mães confundem-se no espírito do jovem herói do filme: «O país que a minha mãe deixou foi o país em que ela acreditou. E nós mantivemo-lo vivo até ao seu último suspiro. Um país que nunca existiu desta forma. Um país que, para mim, estará sempre associado à minha mãe». Esta nostalgia é, ainda hoje, comungada por muitos alemães do Leste e alguns deles acreditam até na possibilidade de um regresso parcial ao passado ou terceira via: uma solução compromissória que reunisse o melhor do capitalismo e do socialismo. Se há no mundo algum povo capaz de concretizar com sucesso uma utopia dessas, é o alemão.
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7 comentários:
Só vi "Adeus Lenine" e gostei, mas se são parecidos o outro também deve ser uma boa proposta. "Sophie Scholl - Os Últimos Dias" também não desmerece, embora seja irregular.
O filme e muito porreiro, o site esta muito especializado eu estou a tentar construir um site de criticas em www.batemanscritics.blogspot.com, passa por la e deixa a tua opiniao sobre os filmes
Também não conheço esse livro, mas deixou-me alguma água na boca.
Mr MA: exacto, o teu comentário está bem visto, porque a RDA que está retratada no filme não é a verdadeira RDA, mas sim aquela que o protagonista gostaria que fosse.
Por exemplo, a sequência em que a RDA pretensamente acolhe os 'refugiados' do ocidente é um completo absurdo e a graça está toda aí.
esse sistema para os menos atentos chama-se Nacional Socialismo.
AH AH AH AH Olha que para alguns alemães o nacional-socialismo foi mesmo uma bela utopia.
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