2005-12-30

Cavaco (iii)

Há pelo menos um grupo relativamente ao qual podemos dizer que é quase obrigatório não votar Cavaco: os agentes culturais. O candidato de Boliqueime despreza tudo o que seja cultura e mesmo quando lhe dedica algumas migalhas do seu discurso é apenas para dizer que a economia vem primeiro. Mas Cavaco não tem razão, porque é a cultura que precede a economia e não o contrário. Na verdade, uma boa oferta cultural influencia de maneira decisiva as decisões de implantação de novas unidades económicas. Os executivos das grandes empresas desejam viver em cidades bonitas, com zonas residenciais agradáveis e amplas possibilidades de ocupação dos tempos livres. Dois casos exemplares: o Estado da Renânia-Vestefália, mais ou menos com a dimensão do nosso país, conta com 250 orquestras, 500 teatros, 10.000 grupos corais e ainda bilhetes familiares, transportes e museus a preços simbólicos; em Nova Iorque, a espectacular recuperação do New Amsterdam Theater revitalizou toda a Rua 42 e atraiu o comércio e o turismo de luxo.

Bocage (iv)

«Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleópatra por puta alcança a c’roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:

Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.»

2005-12-28

Crash

«Vaughan morreu ontem ao chocar com o carro pela última vez. Durante o período da nossa amizade, ele ensaiara a sua própria morte em múltiplos choques, mas este foi o seu único acidente na verdadeira acepção do termo. Lançado numa rota de colisão com a limusina da actriz de cinema, o seu carro galgou as barreiras laterais do viaduto do aeroporto de Londres e foi despenhar-se sobre o tejadilho dum autocarro cheio de passageiros acabados de sair dum avião. Os corpos esmagados dos turistas, como uma hemorragia do Sol, ainda jaziam sobre os assentos de vinil quando, passada uma hora, eu abri caminho por entre os técnicos da polícia. Agarrada ao braço do seu 'chauffeur', Elizabeth Taylor, a actriz de cinema com quem durante tantos meses Vaughan sonhara morrer, estava parada sob as luzes giratórias das ambulâncias. No momento em que me ajoelhei sobre o corpo de Vaughan, ela levou uma mão enluvada à garganta. Teria ela visto, na postura do cadáver, a imagem da morte que Vaughan lhe destinara?»

(in J. G. Ballard: Crash, tradução de Paulo Faria, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1996, p. 27)

2005-12-23

Plan 9 from Outer Space


«Daqui fala Eros, um soldado espacial de outro planeta desta galáxia. Conheço as nossas dificuldades de comunicação mas sei que vocês conceberam um dicta-robot ou, como lhe chamam na Terra, um computador de linguagem. Agora podem compreender o que eu digo. Desde o início do vosso tempo que somos muito mais avançados. Levaram séculos para compreender aquilo que já concebemos há eternidades. Ainda acham impossível a nossa existência? Não é possível que julguem ser o único planeta habitado! Como pode uma espécie ser tão estúpida?! Permitam-me que vos sossegue. Não queremos conquistar o vosso planeta, queremos apenas salvá-lo. Poderíamos tê-lo destruído há muito tempo, se fosse esse o nosso objectivo. As nossas intenções são amigáveis. Admito que tivemos de usar certos meios que podem ser considerados criminosos, mas isso foi por causa dos vossos canhões, que destruiram alguns dos nossos representantes. Se continuarem a impossibilitar as nossas aterragens, teremos de concluir que não pretendem ser amigáveis. Nesse caso, não teremos alternativa senão destruir-vos antes que nos destruam. Com as vossas mentes infantis e antiquadas, produziram explosivos demasiado rápidos para que compreendam o seu alcance. Estão à beira de destruir todo o Universo...»

2005-12-22

Elton John


Acho que o casamento de Elton John e David Furnish é absolutamente vergonhoso: um com 58 anos e o outro 43, o que perfaz uma diferença de idades entre ambos de 15 anos!

2005-12-21

Bocage (iii)

A excelente série Bocage, de Fernando Vendrell, dá a conhecer aos espectadores da RTP todas as facetas do grande poeta setubalense: a sua escrita fulgurante, os conflitos permanentes com a sociedade do seu tempo e, claro está, a sua atribulada vida amorosa. Hoje, o fascínio de Bocage pelas mulheres é tão célebre quanto a extraordinária fluência e musicalidade dos seus versos, ainda que todos os seus breves idílios tivessem terminado sempre em desilusão ou em luto: nuns casos, porque a tuberculose, verdadeiro flagelo social da altura, encurtou a vida de muitas dessas jovens; noutros, porque o espírito exaltado e excêntrico do poeta não se prestava a relações duradouras. Mesmo assim, os seus poemas de amor guardaram para a posteridade os nomes de Marília, Tirsália, Elvira, Fílis, Anárdia, Jónia e tantas outras.

A mulher que mais marcou Bocage foi a doce Gertrúria. Foi ela o seu primeiro grande amor e a sua companhia em passeios intermináveis pelas margens do Tejo. Foi também ela que motivou a sua viagem para o Oriente: Bocage pretendia, qual cavaleiro andante, viver as aventuras mais extraordinárias em terras longínquas e assim tornar-se digno do seu afecto. Seguindo as pisadas de Camões, parte para a Índia e a carreira militar até lhe corre de feição. Porém, a tacanhez dos locais exaspera o vate, que acaba por desertar e cair em desgraça. Pior: a sua Gertrúria já há muito que não lhe responde às cartas. Regressado a Lisboa, Bocage descobre porquê: a jovem casara-se entretanto com Gil Francisco, irmão mais velho do poeta! O pai José Luís Soares recebe-o friamente e o corte de relações com a família é inevitável. É uma grande desilusão para o poeta (a primeira de muitas!), que mergulha de cabeça na vida boémia e dissoluta de Lisboa.

O pai de Bocage nunca lhe perdoou a deserção, a desonra e o seu envolvimento com D. Ana de Montdegui, a Manteigui. O poeta cruzou-se com ela em Surrate e tomou-se de amores por essa rameira elegante e cara, muito disputada. Quem logo a cobiçou foi o governador D. Francisco Guilherme de Sousa, que a instalou numa das melhores casas da cidade. Certos homens de meia-idade orgulham-se de ostentar assim uma amante vistosa e à Manteigui também não desagradava nada essa vida indolente e sensual. Porém, até uma mulher destas era susceptível de se apaixonar e, na verdade, sustentava com o seu dinheiro um amante negro. Só ele a satisfazia. Mas o dinheiro não compra tudo e o Hércules africano depressa se cansou dela. Ao saber-se traída, a Manteigui soltou gritos tão aflitivos que alarmaram toda a Surrate. Bocage dedicou-lhe então alguns versos satíricos, sem os quais essa Manteigui, apesar de todos os seus luxos e ricos adoradores, estaria hoje completamente esquecida.

Seguiu-se o amor de Maria Vicência, a relação mais intensa desde Gertrúria. Tudo seria perfeito, se não fosse a oposição da mãe da jovem: era impensável o casamento com um pelintra daqueles, que arrastava a sua existência pelas tabernas da Mouraria, de Alfama e do Bairro Alto. Com o falecimento da austera senhora, Bocage sonha com a concretização desse amor. Pura ilusão! Antes de morrer, a mãe fez Vicência prometer que jamais se casaria e a rapariga não pretende faltar à palavra dada.

A mulher mais fiel de todas foi a sua irmã Maria Francisca. Foi ela que o amparou nos últimos dias de vida e que pôs um ponto final na sua carreira de boémio. Finalmente, o vate descobria os confortos de um lar organizado: as refeições quentes, um quarto asseado e, melhor de tudo, as risadas cristalinas de uma sobrinha pequena. Se Francisca tivesse surgido meia dúzia de anos antes, talvez o destino do poeta tivesse sido diferente. Porém, os excessos da sua vida desregrada, a miséria sofrida nas prisões e o trabalho intenso dos últimos tempos contribuíram decisivamente para o aneurisma que lhe devorava o corpo. A doença foi implacável e fulminou-o com a morte. Mas Bocage não morreu só: antes que exalasse, fraco, o último suspiro de vida, foi visitado pela sua Maria Vicência.

2005-12-16

Bocage (ii)

«Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
de zelos infernais, letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(digo moças mil) num só momento
Inimigo de hipócritas e frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou cagando ao vento.»

2005-12-12

Presidenciais 2006


O novo modelo civilizado de debates televisivos, em que os candidatos presidenciais não podem debater o que quer que seja. Evidentemente, Cavaco já disse que aprova.

2005-12-09

Alfred Hitchcock

O epitáfio que Alfred Hitchcock sugeriu para a sua própria sepultura: «Vejam o que vos acontecerá se não forem bons meninos».

2005-12-05

O Inquilino


O filme O Inquilino (1976), de Roman Polanski, aborda o tema fascinante e inesgotável da duplicidade. Fala-se em duplos ou Doppelgänger a respeito de qualquer sósia ou duplicado espiritual de uma pessoa viva. Encontramo-los em todas as épocas e culturas, com as mais variadas formas e os mais diversos significados. Porém, há um traço que se tem mantido mais ou menos constante e que faz do duplo um tema polanskiano por excelência: a sua malignidade. As concepções moralistas do cristianismo atribuíram-lhe um carácter demoníaco: se antes, o duplo era visto como um anjo da guarda ou uma espécie de penhor da imortalidade da alma, ele agora surge como precisamente o oposto, um símbolo da finitude do indivíduo e arauto da morte. Ele representa o outro, o desconhecido, o sobrenatural. Posteriormente, a tradição romântica viria a humanizar o duplo e a atribuir-lhe uma origem interna, como a manifestação de uma parte do Eu.

A filosofia, as artes e a literatura sempre se interessaram pela duplicidade. Dostoiévski fez do duplo um tema preferencial e nele assentou o seu combate contra o Iluminismo russo do século XIX, com o seu racionalismo universalista e a convicção de que a razão poderia apreender toda a realidade e criar um mundo novo e melhor. Apesar das reacções desfavoráveis ao seu romance O Duplo (que Polanski tentou, sem sucesso, adaptar ao cinema), o escritor russo nunca deixou de reconhecer a importância e originalidade do tema. O grande Edgar Allan Poe demonstrou igualmente um interesse profundo pela duplicidade: um dos seus temas predilectos é o do homem perseguido pelo seu próprio imitador, a sua réplica, o seu outro. Também o nosso José Saramago abordou a temática em O Homem Duplicado.

A ciência médica fornece um contributo valioso para esta reflexão, porque a aparição do duplo está invariavelmente associada a situações de desintegração da personalidade e distúrbios de identidade. Se inicialmente apenas as crianças, os filósofos e os artistas se preocupavam constantemente com os problemas que a identidade lhes colocava, eles são hoje um objecto preferencial do estudo da psicanálise. São muitas as questões suscitadas: qual é a natureza do que chamamos identidade? Existe desde o começo da vida ou vai-se consolidando paulatinamente no decurso da evolução? Que papel desempenha o corpo no sentimento de identidade? Qual é o limite de mudança tolerável sem que a identidade se destrua de forma irreparável?

O filme O Inquilino, num dos seus momentos mais memoráveis, verbaliza o essencial destas preocupações: «Diz-me, em que preciso momento é que um indivíduo deixa de ser o que pensa que é? Cortas-me o braço. Digo ‘Eu e o meu braço’. Cortas-me o outro braço. Eu digo ‘Eu e os meus dois braços’. Tu tiras-me o estômago, os rins, presumindo que isso era possível e eu digo, ‘Eu e os meus intestinos’. E, agora, se me cortares a cabeça, eu diria ‘Eu e a minha cabeça’ ou ‘Eu e o meu corpo’? Que direito tem a cabeça de se apelidar eu mesmo?» Tal como os heróis de Dostoiévski lutam pela sua existência e delimitação do seu tempo e espaço, também o protagonista de Polanski vai iniciar um duelo cerrado pela manutenção do Eu.

A luta de O Inquilino é desigual, porque o nosso herói enfrenta sozinho um mundo de adversidades. A mudança para um prédio com vizinhos desconhecidos e hostis coloca o protagonista num ambiente que é desfavorável à consolidação da sua identidade. Mais: ele é, tal como o próprio Roman Polanski, um emigrante polaco em Paris. Poderíamos aplicar a ambos a célebre expressão «partir é morrer um pouco», pois a mudança para um novo país tem uma tal magnitude que não põe apenas em evidência a identidade, mas também a coloca em risco. A perda de referências é maciça: pessoas, coisas, lugares, língua, cultura, costumes, clima, às vezes a profissão e o meio social ou económico. Polanski falou muitas vezes desse seu sentimento de estranheza: «se deixar o carro mal estacionado, não é o facto de ele estar em cima do passeio que interessa, mas sim o facto de falar com sotaque estrangeiro».

O triunfo do duplo parece assegurado na sequência em que a nova Simone Choule se admira ao espelho. A transformação está, a partir desse momento, completa. A psicanálise fala mesmo de uma fase do espelho, pois um aspecto essencial do desenvolvimento da identidade da criança é constituído pelas suas reacções defronte da sua imagem reflectida: num primeiro momento, ela interpreta a sua imagem no espelho como um ser real que tenta agarrar; posteriormente, compreenderá que essa imagem não é a de um outro ser, mas a dela própria. Também o adolescente se questiona sobre a quem pertence o corpo que vê no espelho: se é o seu próprio, ou o do seu pai, jovem, com o qual agora se parece.

A mesma sequência do espelho parece dividir abruptamente o filme em duas partes distintas. Isto viria a merecer algumas críticas de Roman Polanski: «Olhando em retrospectiva, penso que a insanidade de Trelkovsky não evolui de forma suficientemente gradual e que as suas alucinações são demasiado surpreendentes e inusitadas. O filme assenta numa mudança de registo quando vai a meio. Até os cinéfilos mais sofisticados não apreciam a mistura de géneros. Uma tragédia deve permanecer uma tragédia; uma comédia que se transmuta em tragédia quase sempre falha». Porém, Polanski não tem razão no que diz e acaba por ser injustamente severo com o seu próprio filme. Se o duplo consegue dominar o protagonista, isso significa que a sua existência era, à partida, débil. Desde o início, o filme fornece sinais claros da perturbação da identidade do protagonista, pela forma como se submete à ideologia do grupo de vizinhos: o nosso herói humilha-se perante a porteira; aceita as condições escandalosas que lhe são impostas pelo senhorio; expulsa os amigos de casa a mando de um vizinho; e nem sequer pode receber a própria namorada. Tudo isto é inquietante e demonstra que a destruição do protagonista já há muito que estava em curso.