2007-07-31

The Matrix (ii)


Cypher é a personagem mais controversa do filme The Matrix (1999). Os seus actos parecem ainda mais odiosos que os das máquinas, porque supostamente revelam astúcia e mesquinhez. Cypher desiste do combate por Zion e denuncia os seus companheiros. Em troca, pretende apenas esquecer o seu passado e viver dentro de um programa que lhe proporcione uma vida mais confortável. À mesa de um restaurante virtual e enquanto saboreia a imitação de um bife, ele esclarece quais são as suas intenções: «I know this steak doesn’t exist. I know that when I put it in my mouth, the Matrix is telling my brain that it is juicy and delicious. After nine years, you know what I realize? Ignorance is bliss.»

A opção de Cypher parece chocante e inaceitável. Os seus opositores apontam-lhe duas grandes objecções. A primeira é o seu servilismo. Uma pessoa ligada a uma máquina de experiências ficaria manietada, porque seria apenas o recipiente passivo de experiências previamente programadas. Estaria privada não só de alterar a sua vida e o mundo, mas também de ser insólita e plenamente criativa, de poder inventar novos mundos. Não seria, para usar a expressão do saudoso Professor Agostinho da Silva, inteiramente livre. A segunda objecção consiste no egoísmo dessa decisão. Cypher agiria de forma egoísta, ao fazer do seu próprio prazer o objectivo mais importante da vida e ao preferir as meras sensações às experiências genuínas.

Se pensarmos um pouco mais, chegaremos à conclusão que estas objecções são injustas. Cypher quer apenas tornar a sua vida melhor. É uma aspiração natural, sobretudo se considerarmos que ele viveu quase uma década em condições difíceis e perigosas no deserto do real. Tão natural, aliás, que os seus companheiros da nave Nebuchadnezzar partilham dos mesmos desejos: também o íntegro e leal Mouse discorda de Dozer quando este diz que a ração de combate tem tudo o que o corpo necessita; não tem, porque não proporciona o prazer que é essencial à vida humana. Parece absurdo dizer que uma vida tão insípida como esta é livre. A existência no mundo virtual, pelo contrário, pode ser incrivelmente sedutora. Não só porque as máquinas conseguiram criar uma realidade rigorosamente idêntica à nossa, mas também porque melhoraram essa realidade em muitos aspectos: por exemplo, a pobreza foi erradicada. E porque os habitantes da Matrix não sabem nem têm possibilidade de saber que vivem numa máquina, a sua existência nada tem de censurável.

Tudo isto significa que Cypher não é mau. Ele não é um vilão porque o seu comportamento não ofende os padrões morais e ideológicos da nossa sociedade, embora seja um antagonista, já que as suas escolhas o contrapõem ao protagonista do filme. Neo representa o filósofo autêntico. Ele sobrepõe o que pensa ser a busca da verdade a todas as outras coisas: quando Morpheus lhe dá a escolher entre o comprimido vermelho que permite aceder à verdadeira natureza das coisas e o comprimido azul que mantém inalterada a sua percepção do mundo, Neo opta por enfrentar o deserto do real. A sua decisão teria sido aplaudida por Platão, que identifica felicidade com autenticidade, assim como Camus, Heidegger ou Sartre. Também John Stuart Mill afirmou que «é melhor ser um humano descontente que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates descontente que um tolo satisfeito.» Já a opção de Cypher pelo prazer e pelo sonho faz dele não um filósofo, mas um poeta. As críticas feitas à sua escolha não se distinguem muito das que têm sido feitas à poesia e são igualmente injustas.

2007-07-18

London 1849

«One of the greatest challenges to urban life in the nineteenth century was the question of what to do with what Johnson calls the ‘rising tide of excrement’ piling up under the feet of the population of London and other cities. At the time the custom was to throw one’s waste out the back window or store it in overflowing cesspools and cellars. An 1849 survey found out that in London, one home in five stank of human waste, and one in twenty contained heaps of shit in the cellar. ‘At mid-century Victorian England was in danger of becoming submerged in a huge dung-heap of its own making,’ wrote historian Anthony Wohl.»

(Helen Epstein : 'Death by the Numbers', in The New York Review of Books, Volume LIV, Number 11, June 28 2007, p. 41)

2007-07-13

eXistenZ


eXistenZ (1999) é o filme mais incompreendido de David Cronenberg. Muita gente acha o filme desinteressante e até alguns fãs do realizador canadiano falam de uma imitação servil das suas melhores obras, em especial o fabuloso Videodrome. Porém, as críticas são tremendamente injustas. Não só porque qualquer autor tem sempre o seu conjunto de temas e motivos predilectos aos quais regressa ciclicamente, mas também porque o filme traz grandes novidades à linguagem cinematográfica de David Cronenberg: em eXistenZ, a câmara perde a sua tradicional fluidez e a montagem predomina sobre a mise en scène. O próprio Cronenberg reconheceu a importância da montagem: «And there’s a lot more cutting, editing, in eXistenZ, than there is camera movement. It wasn’t an intellectual thing, it was just visceral. It felt to me that I needed to move around, but I didn’t want to do big, swooping camera moves.»

O brilhantismo da montagem de eXistenZ começa ao nível dos enquadramentos das cenas. A melhor montagem é a que passa imperceptível aos olhos do espectador e o montador David Cronenberg efectua sempre os cortes no tempo e no lugar que asseguram o máximo de fluidez e elegância da sua narrativa. Um bom exemplo é o momento da entrada dos protagonistas no jogo. Qualquer outro montador teria recorrido a sinais óbvios que nos avisassem que estávamos acedendo a um ambiente virtual, mas Cronenberg evita esses floreios ou feitos acrobáticos e prefere as soluções mas subtis e eficazes. Isto dá à sua montagem uma qualidade que poderíamos designar de musical, porque o momento de um corte é escolhido como o da entrada de um instrumento numa peça musical.

Ao nível da montagem de sequências, Cronenberg também é original. A arquitectura do filme é arrojada e complexa: uma sucessão fulgurante de níveis diegéticos, de narrativas dentro de narrativas, de jogos dentro dos jogos. Já tínhamos visto algo de semelhante nas famosas Mil e uma noites, um texto literário com o qual o filme tem grandes afinidades. Porém, há uma diferença fundamental: não encontramos qualquer narrativa enquadrante em eXistenZ. Se no texto tradicional das Mil e uma noites a história de Xerazade e Xahriar é apresentada como a realidade dentro da ficção, um ancoradouro a que podemos recorrer com alguma segurança, já no filme de Cronenberg nunca sabemos até onde chega o universo de bonecas russas e qual delas é a última. O filme termina na maior das ambiguidades e a questão «Ainda estamos dentro do jogo?» fica sem resposta. Tudo é difuso e incerto, como num sonho.

2007-07-03

Países terríveis: Moçambique (ii)

Há apenas quatro salas de cinema em todo o Moçambique!

2007-07-01

Joe Berardo

Berardos Austellung zeigt João César Monteiros Schneewittchen und beweist alles, was ich über diesen Film geschrieben habe: Es ist nicht nur ein Film, sondern auch eine Malerei.

A exposição do Berardo mostra a Branca de Neve de João César Monteiro e comprova tudo aquilo que escrevi sobre este filme: não é apenas um filme, mas também uma pintura.