2006-03-20

Errâncias

«Alexander Reschke evitou o caminho que passava junto ao mercado. O abandono em que se encontrava e o cheiro que ficara pairando podiam ter feito esfriar o seu entusiasmo. Concentrado ia com certeza. Oiço-o trautear à boca fechada: qualquer coisa entre a Serenata Nocturna e a Suite de Holberg. Contornou pela direita o edifício colossal em gótico tardio, parou, hesitou quando a Travessa das Mulheres abriu com os seus patamares, teve a tentação de emborcar um copito ou outro num bar ainda aberto, talvez no Clube dos Actores, que anunciava movimento com o canto que se ouvia pela porta escancarada, resistiu e manteve-se fiel à sua boa disposição: foi em direcção ao hotel.» (in Günter Grass: Mau Agoiro)

«Errou pelas ruas nocturnas consentindo que a aragem leve e tépida das montanhas brincasse nas suas fontes, até que, por fim, num passo resoluto, como se tivesse finalmente divisado um objectivo há muito procurado, entrou num café relativamente pequeno, modesto mas acolhedor, de antigo estilo vienense, moderadamente iluminado e pouco frequentado àquela hora.» (in Arthur Schnitzler: Traumnovelle)

«Le 4 octobre dernier, à la fin d’un de ces après-midi tout à fait désoeuvrés et très mornes, comme j’ai le secret d’en passer, je me trouvais rue Lafayette: après m’être arrêté quelques minutes devant la vitrine de la librairie de L’Humanité et avoir fait l’acquisition du dernier ouvrage de Trotsky, sans but je poursuivais ma route dans la direction de l’Opéra. Les bureaux, les ateliers commençaient à se vider, du haut en bas des maisons des portes se fermaient, des gens sur le trottoir se serraient la main, il commençait tout de même à y avoir plus de monde. J’observais sans le vouloir des visages, des accoutrements, des allures.» (in André Breton: Nadja)

«A humidade vinda do rio encharcava-me os ossos. Deixei de ouvir as badaladas da Sé. Acabou-se-me o tabaco, o que ainda assim foi o pior de tudo. A comichão já não me incomodava muito, a não ser nas costas das mãos. O ardor nos tomates só começou mais tarde, pela manhã, se não estou em erro. Rabiei durante não sei quanto tempo. Não se via vivalma, nem um ladrão de carros para dar dois dedos e cravar um cigarro. Por fim, lá topei uma padaria aberta. As carcaças cairam-me na fraqueza. Costume. Tenho um pacote de manteiga escondido no meu quarto. Aposto que a puta da velha não o encontra nem que vire tudo do avesso. Já não caio noutra.» (in João César Monteiro: Recordações da Casa Amarela)