2004-09-24

O Código Da Vinci

O best seller mundial O Código Da Vinci, de Dan Brown, continua bem vivo e a suscitar polémicas furiosas. Desta feita, a revista Visão de 23.09.2004 publica a seu respeito um texto crítico bombasticamente intitulado As mentiras de Dan Brown e O Código da Vinci desmascarado. Mais valia, porém, que tivesse ficado calada: o libelo acusatório de uma tal de Marie-France Etchegoin é tudo menos objectivo e fica-se por um amontoado invejoso de meias verdades e incompleitudes. Metade do texto de Etchegoin é uma mera síntese do enredo delineado por Brown, entremeada com as apreciações biliosas que demonstram bem a parcialidade e falta de seriedade intelectual da autora: «Jesus dormia, então, com Maria Madalena e tiveram muitos pequenos merovíngios». A outra metade ocupa-se da diabolização da pessoa de Pierre Plantard, já falecido, e do seu Priorado do Sião (que são, aliás, figuras relativamente secundárias nesta obra ficcional) e nisso – apenas nisso! – municia o ataque à credibilidade de Dan Brown. Claro que, como tudo o que é humano, este Código Da Vinci não é perfeito; não obstante, o Autor precedeu o seu texto de um trabalho de pesquisa notável, cujas conclusões tiveram o condão de suscitar em todo o mundo controvérsias apaixonantes – sem necessidade de, ao contrário de Etchegoin, recorrer ao estardalhaço e às calúnias.

Kafka e a sua cidade


Kafka, o escritor que influenciou como nenhum outro as literaturas de todo o mundo, quase nunca saiu de Praga. Faltam à sua biografia as grandes deslocações, as viagens memoráveis ou o contacto com culturas exóticas: à semelhança de Stifter ou Yeats, a sua existência foi provinciana e local. A relação do escritor com a sua cidade natal foi, todavia, sempre ambígua: Praga, essa «mãezinha com garras afiadas», era um local que o sufocava e no qual sabia que a pureza e a felicidade não eram possíveis. Mesmo assim, foi aí onde optou por passar a quase totalidade da sua curta vida (1883-1924). Exceptuam-se diversas viagens de serviço, algumas viagens culturais, muitas estadas em casas de repouso, meio ano em Berlim, alguns meses no campo na Boémia e nada mais. «Praga não me larga», escrevia Franz Kafka já aos dezanove anos.

A cidade que Kafka transformou numa metrópole no mapa da literatura nunca é expressamente nomeada na sua obra; aliás, os locais das suas histórias são raramente identificados. Mesmo assim, Praga está inequivocamente presente em obras como A Grande Muralha da China, que é muito claramente baseada num célebre monumento de Praga, a Muralha da Fome, no Alto de São Lourenço: uma muralha que foi construída, sem qualquer finalidade, por desempregados, a quem se devia dar ocupação. A casa de Gregor Samsa em A Metamorfose reproduz fielmente o apartamento da Niklasstrasse que Kafka compartilhava com os seus pais: o guarda-fatos, a secretária e o divã, o hospital que se via da janela, as luzes da rua que se reflectiam no tecto do quarto, as portas, a disposição das outras divisões do apartamento – tudo correspondia. O seu mais antigo fragmento de um conto, Descrição de uma Luta, tem por assunto um passeio nocturno pela cidade.

Quando Kafka nasceu em 1883, Praga ainda fazia parte do Império dos Habsburgos da Boémia. A cidade era um ponto de cruzamento de culturas: numerosas nacionalidades, línguas e orientações políticas e sociais misturavam-se e coexistiam para o melhor e para o pior. Um forte afluxo de habitantes checos tinha transformado esta cidade, outrora predominantemente alemã, numa urbe quase puramente checa onde se mantinha uma minoria de habitantes de língua alemã, dos quais mais de metade eram judeus: a Praga alemã foi também uma Praga judia.

Se no centro da cidade ainda se falava predominantemente alemão, na restante cidade a comunicação era feita quase inteiramente em checo. Esta situação específica explica a linguagem sucinta, fria, indiferente e lacónica de Kafka, que contrastava com o estilo artificioso e emproado dos seus contemporâneos. O alemão de Praga estava consideravelmente afastado do alto alemão não só pela pronúncia, mas também pela construção e sobretudo pelo vocabulário: sob a pressão do isolamento, o alemão em Praga tornava-se cada vez mais um idioma de dias de festa subvencionado pelo Estado e, com isso, era significativa a perda de vocabulário. Inversamente, a estranheza de Kafka perante as coisas tem também causas linguísticas: esse alemão seco, de papel, era incapaz de intimidade com o mundo.

A situação política e social era periclitante e Kafka conheceu Praga como uma cidade profundamente dividida: a classe superior (alemã) – nobreza, militares, indústria – conservadora ou mesmo reaccionária; a classe inferior (checa) nacional-democrata ou nacionalista; pelo meio, a classe média liberal, mais desamparada do que outra coisa (alemã, judia e também checa numa pequena parte). O nacionalismo checo estava a erguer-se contra a predominância alemã e o símbolo mais visível deste movimento de libertação foi a Exposição Regional da Boémia de 1891, no parque do Jardim das Árvores, para a qual foi também construído o mirante no Alto de S. Lourenço, assim como dois funiculares; no mesmo ano, desapareceram das ruas as últimas placas bilingues. Nem as crianças escapavam à disputa entre nacionalidades e um colega de escola de Kafka contou como a pancadaria entre alunos checos e alemães estava na ordem do dia.

Para a família judia de Kafka, apanhada no meio deste fogo cruzado, a vida era um acto de delicado equilíbrio. É aliás muito significativo que Franz tenha nascido na Casa da Torre, como que a documentar a diversidade de proveniências dos seus pais: o pai Herrmann Kafka, oriundo do proletariado provinciano judeo-checo, morava nas ruelas sórdidas do gueto, já há muito abandonado e que, duas dezenas de anos mais tarde, seria definitivamente demolido; e a mãe Julie Löwy, oriunda da abastada e instruída burguesia judeo-alemã, morava numa das mais belas casas no Ring da parte antiga da cidade, na casa de Smetana. Kafka nasceu precisamente na fronteira entre estas duas partes da cidade. Nos seus primeiros tempos, a família viveu modestamente, morou em casas muito pequenas e mudou-se com frequência. Depois, veio a escola primária, o liceu e o estudo do Direito na Universidade Carlos de Praga, que converteu o jovem Franz em «Herr Doktor Kafka». Em Julho de 1908, entra como funcionário ajudante no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho do Reino da Boémia em Praga.

Trabalhar de dia significava escrever à noite no apertado apartamento onde ainda vivia com os pais e as três irmãs. Isso dificilmente permitia a concentração: «Quero escrever e há um tremor constante na minha testa. Estou sentado no meu quarto, que é o quartel-general de todo o barulho do apartamento. Há portas a bater por toda a parte… o pai deita abaixo a porta do meu quarto e atravessa-o com a ponta do roupão de banho a arrastar atrás dele. A Valli grita do vestíbulo como se fosse de um lado para o outro de uma rua de Paris a perguntar se o chapéu do pai foi escovado. A porta da frente faz um barulho como o de uma garganta inflamada. Finalmente, o pai foi embora, e tudo o que resta é o pipilar mais terno e desesperado dos dois canários.» A única solução era uma espécie de auto-hipnose ou emigração interior que simultaneamente o desligava do mundo e lhe permitia assimilar tudo aquilo.

Esta necessidade de silêncio e isolamento, mais um sintoma da angústia perante o mundo exterior, explica a extraordinária inconstância da sua produtividade. No período entre Fevereiro de 1913 e Julho de 1914, não surgiu uma única obra importante. «Quase não há palavras que eu escreva que estejam de harmonia com as outras; as consoantes chocam entre si com um barulho de latas e as vogais acompanham-nas cantadas, como o cantar dos pretos na exposição. As minhas dúvidas dispõem-se em círculo em volta de cada palavra e vejo-as antes de ver a palavra».

O ano de 1912 foi, em contrapartida, o mais prolífico da carreira de Kafka. Nas semanas compreendidas entre 22 de Setembro e 6 de Dezembro (portanto, em setenta e quatro dias), foram produzidas mais de quatrocentas páginas manuscritas. No mesmo espaço de tempo, Kafka escreveu à noiva mais de sessenta cartas, muitas vezes com mais de dez páginas. Além de A Metamorfose, foi também o ano de O Desaparecido e A Sentença.

A data de 22 de Setembro de 1912 foi particularmente gloriosa. Tinha passado a tarde num aborrecido compromisso familiar: os parentes do cunhado tinham vindo visitá-lo pela primeira vez; nunca abriu a boca durante a visita e apetecia-lhe gritar de náusea e desespero. Depois do jantar, por volta das dez, sentou-se à secretária. Tinha a intenção de descrever uma guerra; um jovem devia ver da janela a multidão aproximar-se, quando a caneta, quase sem dar por isso, começou a escrever A Sentença, uma história de pais e filhos onde transparecia pela primeira vez o seu complexo edipiano. Teve logo a impressão de que já não se tratava, como nos primeiros tempos, de um jogo «com a ponta dos dedos». Aquele conto estava escrito com todas as suas energias, com o espírito, a alma e o corpo. Era um autêntico parto, coberto de sangue e muco. As forças do seu inconsciente, que até então tinha contido e reprimido, vinham subitamente à luz, derrubando as barreiras que o entravavam.

Kafka escreveu A Sentença toda a noite sem se interromper, com as pernas firmes e rígidas. Se tivesse parado por um instante, aberto um livro, levantado ou tivesse distraído, teria bloqueado o acesso às verdades silenciosas. Escrever era um fluxo imparável: agarrado à secretária como a uma rocha ou a um sepulcro, não podia levantar a mão do papel, porque de outro modo o conto perderia a fuga, o ímpeto, o andamento natural e contínuo, a mágica fluidez da respiração que tanto havia desejado. Às seis da manhã, quando a criada atravessava pela primeira vez o vestíbulo, escrevia já o último período. Naquelas oito horas, Kafka estabeleceu para sempre a sua concepção da literatura e a sua ideia de inspiração poética: «Só assim se pode escrever, numa entrega total, com uma completa abertura de corpo e de alma».

O sono tornava-se para Kafka um privilégio inacessível. Sabia que, de noite, os homens bons dormem, fechados no sono como crianças e protegidos por mão celestial contra os assaltos dos incubos. Os homens que não dormem são culpados porque não conhecem a paz da alma e são torturados pela obsessão. Kafka, como todos os culpados, não dormia. Esta insónia era, porém, também a sua força. Quem mergulhava em sonos tão inquietos e agitados estava em relação com os demónios da noite e os poderes que se escondem na escuridão, com as forças que enchiam o seu inconsciente; e ele tinha que evocá-las, como na noite extraordinária em que escreveu A Sentença.

Só a noite, porém, não lhe bastava. Era como se todo aquele silêncio não fosse suficiente e que «a noite fosse ainda pouco noite». Kafka teria desejado cancelar o dia e o Verão, a madrugada e o crepúsculo, prolongar as trevas para além dos seus curtos limites, transformando-as num único e interminável Inverno. Imaginou então o seu local ideal de trabalho, isolado do mundo: uma cave hermeticamente fechada em que a comida lhe seria trazida e deixada atrás da porta mais distante. Só teria de percorrer uma curta distância para a recolher e comer antes de retomar a sua criatividade sem ser estorvado pelo contacto humano. Assim é o eu de O Covil, uma das poucas obras de Kafka na primeira pessoa. A criatura (talvez um texugo, uma toupeira ou uma doninha) construiu para si própria um covil com túneis interligados, montes de carne armazenada e a tranquilidade de uma fortaleza. Este refúgio é todavia ameaçado por inimigos que vêm não só do exterior, mas também das próprias entranhas da terra. Eles nunca foram vistos mas estão lá e um deles parece ter dado pela sua presença. O eu sabe que tem os dias contados e acabará por morrer retalhado, já sem forças para resistir.

Esta busca do isolamento perseguiu-o pelos anos. Depois dos fracassos da casa de esquina da Bílkova e do apartamento da casa do Lúcio Dourado, Kafka acabou por se mudar para uma minúscula casinha medieval no nº 22 da Ruela dos Alquimistas, junto ao Castelo de Praga. «Um dia de Verão, fui com Ottla procurar casa; embora já não acreditasse na possibilidade dum sossego verdadeiro, pelo menos fui à procura dele… E nada, a bem dizer, não encontrámos nada. Mas depois, mais para nosso divertimento, perguntámos naquela minúscula ruela. E responderam-nos que sim, que haveria uma casa para alugar a partir de Novembro. Ottla, que também busca o sossego, mesmo que seja à maneira dela, apaixonou-se pela ideia de alugar a casa…» Nesta casinha ganharam vida, desde o fim de Novembro de 1916, muitos dos mais belos textos de Kafka: Um médico de aldeia, Na galeria, O caçador Graco, Um relatório para uma academia, A preocupação do pai de família e também Uma mensagem imperial.

Seguiu-se em Março de 1917 o palácio Schönborn, onde Kafka sofreu, na noite de 12 para 13 de Agosto, aquela hemoptise que prenunciava a tuberculose que o fulminaria sete anos mais tarde. Depois vieram as estadas cada vez mais frequentes nos sanatórios, o regresso a Praga, a escrita de O Castelo e, a 3 de Junho de 1924, a sua última morada no cemitério judeu de Straschnitz.

2004-09-21

André Valente

Depois de André Valente (2004), é rigorosamente proibido voltar a dizer mal do cinema português! O filme de Catarina Ruivo, que conta a história encantadora de um menino forçado a crescer e a assumir o papel de homem da casa, é um pequeno prodígio de inteligência, sensibilidade e sentimento – sem que isso signifique qualquer concessão ao sentimentalismo gratuito ou à lamechice. André Valente conta ainda com a participação da linda Carla Chambel, que também interpretou o papel de Adriana no nosso O Porteiro.

2004-09-20

Hugo

A melhor poesia da Internet está toda no blogue Ford Mustang, que agora regressa em força depois de uma ausência misteriosa. Obrigado, Hugo!

2004-09-16

Marluce e Carlos Cruz

A prisão preventiva do Senhor Carlos Cruz no âmbito do processo Casa Pia apanhou desprevenido todo um país. Então como hoje, sempre acreditei na inocência do popular apresentador: os sinais de prepotência judicial e incompetência eram evidentes e só não os via quem não quisesse. O que seguiu a essa madrugada atribulada de 1 de Fevereiro só serviu para cimentar a minha convicção inicial: os depoimentos insidiosos, o silêncio ensurdecedor das autoridades judiciárias e a verdadeira campanha mediática movida contra o Senhor Carlos Cruz. A voz mais estridente desse coro de Eríneas foi e é ainda a do Correio da Manhã – o tablóide que se auto-intitulou de grande defensor das criancinhas, mas que nem por isso se coíbe de fomentar a prostituição através dos anúncios amorosos que preenchem as suas páginas centrais. Por estas e por outras, recebi como uma lufada de ar fresco a notícia de que o livro Carlos Cruz: As Grades do Sofrimento tinha chegado finalmente às bancas. O livro de Marluce e Carlos Tomás é um tónico de dignidade e um daqueles livros que picam e mordem.

Um dos maiores méritos deste As Grades do Sofrimento é o facto de conseguir ser um relato simultaneamente sereno e comovido do processo judicial português mais controverso de sempre. A serenidade coube ao seu co-autor Carlos Tomás, um dos nomes mais isentos e respeitados do nosso jornalismo e que foi, desde a primeira hora, um crítico assumido da condução deste processo-crime. A comoção está a cargo dos familiares do Senhor Carlos Cruz, que desvelam o drama humano por detrás dos autos e denunciam corajosamente a mentira, a calúnia e a hipocrisia. É bom que não esqueçamos que no meio de todo o carnaval mediático está uma família que sofre e que, contrariamente às outras famílias de pessoas presas, não teve direito à discrição e ao recato: Raquel, a mulher que foi ao limite das suas forças para defender o marido; Marta, uma jovem bonita e inteligente que no espaço de um ano se viu forçada a deixar a sua adolescência e a crescer para ajudar a família; e a pequenita Mariana, demasiado jovem para perceber o que se passa, mas que um dia saberá que o pai esteve preso porque alguém disse que fazia mal a meninos.

Um dos factos que mais ocupou a reflexão dos autores foi o do célebre incidente de recusa do juiz Rui Teixeira. Apesar das críticas indignadas que se abateram sobre os advogados, a verdade é que foi a actuação conjunta destes defensores que permitiu que a vergonha e a transparência na administração da Justiça fossem repostas. Sem estar na posse das acusações feitas pelos jovens e sem conhecer os indícios existentes no inquérito, a audição para memória futura não teria passado de uma simples recolha de depoimentos dos denunciantes, que impossibilitaria a sua contradição por parte dos arguidos e um possível confronto em julgamento.

Os propósitos do Ministério Público eram óbvios: validar os novos depoimentos dos jovens, ocultar todas as ilegalidades processuais até então cometidas e erradicar do processo os nomes de todas as pessoas acusadas pelos denunciantes. O incidente de recusa de juiz, apesar de ter sido julgado improcedente, impediu mesmo assim que o procurador João Guerra destruísse o que quer que fosse do processo e blindasse a acusação aos arguidos. Curiosamente, as mesmas Eríneas que então clamaram por conspiração contra Rui Teixeira e ataque ao poder judicial nada disseram agora a propósito de idêntico incidente de recusa apresentado por António Pinto Pereira, advogado dos denunciantes, a respeito do juiz desembargador Varges Gomes…

Marluce / Carlos Tomás, Carlos Cruz: As Grades do Sofrimento, Editorial Notícias, Julho de 2004.

2004-09-12

Ah, Leão!


O nosso Manoel de Oliveira recebeu no passado dia 10 de Setembro o Leão de Ouro de Carreira. O Festival de Veneza vem reconhecer desta forma a obra e o talento de um Mestre que fez da sua longa carreira um combate tenaz contra a mediocridade e a inveja. A atribuição deste prestigioso galardão é por isso um motivo de alegria não só para o próprio cineasta, mas também para todos os que, como nós, sempre apreciámos os seus filmes - mesmo quando era politicamente incorrecto fazê-lo. Mil parabéns, Manoel de Oliveira!

2004-09-08

Saudades da Zazie

A extraordinária Zazie (beijinhos!) pode agora ser encontrada em A Janela Indiscreta, um blogue simpático, elegante e altamente filosófico.

The Matrix

O século XXI é um tempo de mudança e de abertura crescente da humanidade aos valores espirituais. O século XX aprendeu muito sobre muitas coisas, mas perdeu o sentido da unidade: foi a época do separatismo, do materialismo desenfreado e do grande mito da razão. Agora, estamos a entrar na Idade de Aquarius, o carregador de água, cujos ideais afirmam que o Homem aprenderá a verdade e será capaz de pensar por si mesmo. A nossa querida Maria Flávia de Monsaraz fala a este respeito de uma verdadeira revolução, que é primeiro mental e depois espiritual, pois não basta revolucionar a mente, é preciso sentir com a alma a verdade da informação.

Esta revigorada apetência por tudo quanto seja espiritual já chegou ao cinema. Para comprová-lo, basta que refiramos os fulgurantes sucessos mundiais de filmes tão diversos como Matrix (1999), Pi (1998) ou O Sexto Sentido (1999). O caso de Matrix é particularmente expressivo, pois a grandiosa trilogia dos Irmãos Wachowski sobre um mundo tiranizado pelas máquinas é, em matéria de esoterismo e simbologia, um verdadeiro filão.

O gnosticismo foi seguramente uma fonte de inspiração generosa para os Wachowski. Aliás, a existência de uma nave chamada Gnosis em The Matrix Reloaded demonstra que esta referência é deliberada e plenamente consciente. O termo gnosticismo é utilizado para aludir a um sistema de crença bíblica dominante no século II a.C. Não se trata propriamente de uma corrente cristã, mas sim de um grupo de seitas contemporâneas do cristianismo, muitas das quais não faziam qualquer referência a Cristo. O que essas seitas tinham em comum era a crença de que existe um Deus verdadeiro e bom, mas que este mundo e a matéria que o compõe eram uma ilusão criada por um deus menor e maléfico, o Demiurgo – cujo papel é análogo ao do Arquitecto em The Matrix Reloaded.

Outro exemplo de referências esotéricas pode ser encontrado na figura das chaves. Para poder aceder ao coração da Matrix, Neo deve primeiro encontrar o Fazedor de Chaves. Na simbologia esotérica, as chaves representam a iniciação e, consequentemente, a habilidade que o iniciado possui para abrir e se deslocar por entre diferentes níveis da realidade. É por esse motivo que figuras como o São Pedro cristão ou o Jano da mitologia romana são representados como portadores de chaves. Entre os ciganos, acredita-se que sonhar com um molho de chaves é sinal de que várias oportunidades surgirão para o sonhador, que deve escolher com cuidado: de igual forma, Neo, ao encontrar o Arquitecto graças à ajuda do Fazedor de Chaves, é colocado diante da necessidade de escolher entre duas portas.

Para aceder a este Fazedor de Chaves, Neo terá todavia de defrontar o Merovíngio, um homem perigoso e com poder, que quer aquilo que todos os homens com poder querem: mais poder. Esta é uma das referências mais obscuras e enigmáticas, que fará seguramente as delícias de todos os apreciadores das teorias da conspiração. Os Merovíngios eram a família reinante num território que abrangia as regiões da moderna França e Alemanha, desde cerca de 447 até 750 d.C. A dinastia foi buscar o seu nome a Merovech (latinizado como Meroveus), o qual era um chefe tribal dos Francos, um de entre um grupo de tribos germânicas que penetrara no Império Romano e começara a estabelecer o seu domínio.

A publicação do controverso livro Holy Blood, Holy Grail, em 1982, veio suscitar um interesse acrescido em torno destes reis Merovíngios de França. Os seus Autores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln escrevem que quando a lenda diz que José de Arimateia fugiu de Jerusalém com o Santo Graal, o que se quer dizer é que levou consigo um segredo capaz de mudar a História do mundo: o de que Jesus era casado e teve um filho, do qual descenderia a dinastia dos Merovíngios. Crê-se que a história que surge na Bíblia sobre o casamento de Canaã, onde Jesus executa o milagre da transformação da água em vinho, pode na verdade ser um recontar distorcido do próprio casamento de Jesus. A isto, acresce o facto de que se esperaria que Jesus, sendo judeu na altura, se casasse.

Esta possibilidade da linhagem de Cristo até nem é nova, mas mais surpreendente ainda é a teoria de que foi Maria Madalena a mulher de Jesus e mãe do Seu filho. A hipótese colocada é que após a crucificação, Maria Madalena partiu para França com o filho de ambos e que dos casamentos com membros de tribos francas resultaram os Merovíngios, perpetuadores da uma linhagem de Cristo que continuaria ainda hoje. Não existe, porém, nenhuma prova directa nos textos actualmente conhecidos, nem nos Evangelhos que corrobore esta ideia. Até os Evangelhos encontrados em Nag Hammadi em 1945 são omissos quanto a provas deste facto, exceptuando uma referência em Filipe de uma possível consorte. Podemos, mesmo assim, tomar algumas conclusões como certas: a crença longamente mantida de que Maria Madalena era uma prostituta arrependida é falsa, sendo que ela representa muito mais o papel de um dos discípulos – o que, aliás, suscitou o desagrado dos Apóstolos masculinos, entre os quais Pedro; a relação de Jesus com Maria Madalena poderá ser muito mais próxima do que se pensou originalmente; ela esteve com Jesus em momentos cruciais, nomeadamente durante a sua morte, enterro e Ressurreição de Cristo.

2004-09-01

O livro do Rui Unas

O nosso Rui Unas é hoje uma das figuras mais carismáticas da TV. Tive oportunidade de conhecer pessoalmente o talentoso apresentador e humorista aquando da pré-produção e rodagem da curta-metragem O Porteiro e guardo dele a imagem de um profissional íntegro, generoso e (felizmente para ele e para nós!) rigorosíssimo no cumprimento dos seus horários. Em O Porteiro, Unas interpretou excelentemente o papel de um toureiro priápico que rivaliza com o Ivo Canelas pelo afecto da linda Carla Chambel. A sua participação plena de energia e largamente improvisada foi, aliás, das melhores coisas que o malfadado filme teve.

Pois bem, este mesmo Rui Unas veio agora juntar o seu nome ao extenso rol de vedetas televisivas que, por uma razão ou outra, resolvem escrever livros. A diferença fundamental é que Unas tem efectivamente algo para dizer e sabe dizê-lo de forma sedutora. Com o seu novíssimo A minha vida é um cabaret, o Autor propõe-nos um livro polémico e mais ou menos autobiográfico, no qual privilegia a utilização da crónica – figura literária particularmente vocacionada para a pedagogia e diálogo fácil com o grande público. E de que fala Unas? Da anatomia do peido à morfologia do escarro, com trânsito pelo racismo, sexismo, tauismo (assim mesmo, com ‘u’) e mulheres de bigode, os temas mais extraordinários são abordados com uma argúcia e capacidade de observação notáveis. Tudo isto surge ricamente ornamentado com a linguagem desbragada e as expressões coloridas do costume: «pita», «abocanhar o nabo», «mariquinhas pé de salsa» ou «é isso e couves».

Rui Unas, A minha vida é um cabaret, Texto Editora, Lisboa, 2004.

Casa Pia (iii)

O processo da Casa Pia regressou aos jornais e, mais uma vez, pelas piores razões. Desta feita, uma juíza chamada Filipa Macedo resolveu emitir mandados de captura para colocar em prisão preventiva seis dos arguidos do processo da Casa Pia – Carlos Cruz, Gertrudes Nunes, Ferreira Dinis, Hugo Marçal, Jorge Ritto e Manuel Abrantes – num despacho formulado enquanto estava de turno nas Varas Criminais de Lisboa. A decisão deparou com a oposição do Ministério Público e seria contrariada por outro juiz de turno, Jorge Raposo, que a revogou. Os mandados não chegaram por isso a produzir os seus efeitos e ficaram mantidas as medidas de coacção determinadas há cerca de três meses pela juíza de instrução criminal Ana Teixeira e Silva. Quanto a essa Filipa Macedo, perdeu uma oportunidade de ficar calada e cometeu o pior erro em que pode incorrer um magistrado: a falta de serenidade.

A decisão de Filipa Macedo começa por ser leviana. Por um lado, porque a magistrada tomou uma decisão desta gravidade sem ter sequer assistido à produção de qualquer prova (por exemplo, não inquiriu quaisquer testemunhas nem interrogou nenhum dos arguidos), além do que nos seus três dias de turno não teve, nem poderia ter tido, um conhecimento suficientemente sério e aprofundado de um processo de milhares de páginas e com esta complexidade. Por outro lado, porque revelou uma tremenda falta de cortesia e mesmo de respeito para com as decisões dos seus colegas juízes, que Filipa Macedo apelidou de autistas, incompetentes e encobridores de pedófilos.

O despacho da infeliz juíza é também manifestamente ilegal: porque extravasa as competências de um mero juiz de turno, que se devia limitar neste caso a praticar actos urgentes; porque contraria decisões de tribunais superiores; porque inexistem factos novos que justifiquem as alterações pretendidas das medidas de coação, ficando assim abalada a imprescindível estabilidade das decisões jurisdicionais (hoje vai preso, amanhã é solto, depois volta a ser preso, ao gosto do magistrado que calhe no processo); porque está pendente um recurso do Ministério Público junto da Relação de Lisboa sobre esta mesma matéria.

É também incompreensível que semelhante decisão tenha sido tomada à revelia dos restantes sujeitos processuais, inclusive do Ministério Público. A magistrada escreveu a este respeito que «na área criminal, o juiz tem de ser interventivo, não podendo estar manietado por requerimentos dos sujeitos processuais e deve tomar iniciativas, quando constate que no processo alguma situação não está adequada». Filipa Macedo parece assim julgar-se uma espécie de anjo vingador, que reúne em si as qualidades de polícia, julgador e executor de delinquentes. O processo de estrutura acusatória exige, porém, a passividade do juiz: os tribunais servem apenas o direito e são garantes da sua realização, não lhes cabendo a responsabilidade directa pelo combate à criminalidade, caso em que poderiam ser eventualmente motivados a tomar decisões úteis para uma mais eficaz realização dessa missão, mas potencialmente desconformes com a lei.

Tudo isto seria apenas particularmente grave, se a lamentável decisão de Filipa Macedo não tivesse sido também acompanhada de uma fundamentação a tal ponto estúpida que chega a ser escandalosa. A juíza sabia dos vícios em que incorria, mas nem por isso se coibiu de colocar as suas convicções em matéria de pedofilia à frente da legalidade. A sujeição à lei é, porém, a essência da função jurisdicional. A aplicação das normas legais não pode ser afastada pelo julgador, mesmo em razão da preocupação de alcançar outros valores jurídica e socialmente relevantes, nomeadamente uma certa concepção pessoal ou social de justiça. Por exemplo, um juiz que discorde da actual criminalização do aborto nem por isso se pode negar a aplicar esse normativo legal, mesmo que isso contrarie as suas convicções nessa matéria.

A rematar o longo rol de imbecilidades, Filipa Macedo chega a fundar a sua decisão (imagine-se só!) nos penteados, bronzeados e indumentárias dos jovens dos nossos dias e a considerar que cada adolescente é um prostituto em potência. Eis o que afirmou a magistrada: «os adolescentes vivem uma liberdade desmedida, passando os dias sozinhos e saindo à noite até altas horas da madrugada. Podem ser considerados muito apelativos nas suas indumentárias, pela descontracção com que actuam, pelo bronze e penteados que exibem, por indivíduos viciosos e podem ser considerados presas fáceis porque normalmente têm posses insuficientes para as solicitações da sociedade de consumo em que se integram e que os seduz».