2006-01-04

Um Violino no Telhado


Segundo Um Violino no Telhado (1971), o segredo da longevidade do povo judaico está nas suas tradições. A tese do filme é enunciada logo na sua memorável sequência de abertura: «Um violinista no telhado. Parece uma loucura, não é? Mas aqui, na nossa pequena aldeia de Anatevka, pode dizer-se que cada um de nós é um violinista no telhado. A tentar arranhar uma melodia agradável e simples sem partir o pescoço. Não é fácil. Talvez perguntem porque é que ficamos lá em cima se é tão perigoso? Bem, ficamos porque Anatevka é a nossa casa. E como mantemos o equilíbrio? Isso, posso dizer-vos numa palavra: tradição». As tradições sempre foram a «pátria portátil» dos judeus e uma fonte de força nos momentos mais difíceis da sua História. Porém, o mundo não pára e a evolução dos tempos vai pôr em questão o sentido e a viabilidade de muitos desses costumes.

O primeiro teste às convicções do protagonista surge com o noivado da sua filha mais velha. Seguindo a tradição, o pai escolheu o noivo e decidiu-se pelo velho talhante da aldeia. Para uma família pobre como é a do nosso herói, é difícil casar uma filha e qualquer pretendente que tenha duas pernas e um coração ainda a bater não é coisa que se despreze. Mais: o talhante é rico, trabalhador e honesto, ainda que seja idoso e lhe falte a erudição (kuppah). Porém, a jovem está apaixonada por outro homem e não quer casar com os restos velhos de ninguém. Um grande problema, sobretudo porque os dois jovens já se tinham comprometido em segredo. O pai tem de decidir e acede às pretensões da filha: mesmo que o futuro genro seja uma migalha de homem, os filhos são o bem mais precioso de um judeu e a sua felicidade é um verdadeiro mandamento (mitzvá).

A sequência do casamento é notável pela sua riqueza de pormenores. O realizador detém-se longamente sobre os rituais e pequenos gestos, que são plenos de significado espiritual: a cerimónia decorre ao ar livre, como um prenúncio de que o casamento será abençoado com tantas crianças quantas sejam as estrelas do céu; os nubentes estão sob uma tenda (chupá), que simboliza o novo lar que está a ser criado; e o rabi administra as bênções sobre a taça de vinho, símbolo da alegria e contentamento. A cerimónia termina com um costume estranho, quando o noivo quebra um copo de vidro com o pé: isto recorda que a alegria deve ser moderada pela memória das catástrofes do povo e que a felicidade dos judeus nunca estará completa enquanto o Templo de Jerusalém permanecer destruído.

A quebra do copo revela-se tristemente premonitória quando o casamento é interrompido pela investida dos militares russos sobre a aldeia. É um pogrom que não poupa ninguém e reduz Anatevka a um amontoado de escombros. O plano picado que conclui a sequência é memorável: por entre a destruição, o protagonista questiona o céu sobre o sentido de toda aquela violência. Isto suscita duas observações. A primeira reporta-se à relação dialéctica que os judeus mantêm com a sua divindade. Questionar faz parte da condição judaica e, como se vê, nem Deus escapa ao interrogatório: o nosso protagonista não só conversa com o Senhor, como chega a argumentar com Ele, seguindo o exemplo de Abraão. A segunda observação respeita ao dilema moral da injustiça no mundo. Afinal, se o Deus judaico é amoroso e Todo-Poderoso, como é que se justifica que aconteçam coisas más como estas às pessoas inocentes? Esta é a mais fundamental dificuldade humana com Deus e a Bíblia não a esquece. O Livro de Job, que descreve o percurso de um justo que passa da felicidade à miséria, ensina que os desígnios divinos estão para lá da nossa compreensão. Mais tarde, os filósofos judeus resumiram esta ideia: «se eu pudesse compreender Deus, eu seria Deus».

Até a destruição da aldeia parece insignificante aos olhos do protagonista, quando descobre que a filha mais nova casou secretamente com um gentio. Novamente, o leitmotiv da tradição: o casamento com alguém exterior à fé é inaceitável e o último dos tabus, pois «um pássaro pode amar um peixe, mas onde construiriam uma casa juntos?» As palavras do protagonista recordam-nos o milagre de Chanuká (Festa da Dedicação do Templo) ou Festa das Luzes: tal como o óleo que alimentou a lâmpada do Templo nunca se mistura com os outros líquidos, também os judeus sempre recusaram a assimilação. Num dos momentos mais emocionantes do filme, o protagonista terá de reunir toda a sua força para aceitar a filha de volta e proferir aquelas palavras decisivas: «que Deus te acompanhe».

A maior provação de todas está reservada para o final, quando a população de Anatevka é expulsa por decreto do czar. A triste procissão de judeus errantes representa, por sinédoque, o sofrimento e desenraizamento de todo um povo e sublinha a completa ausência de sentido do anti-semitismo. Nada justifica o degredo desta comunidade pacífica, trabalhadora e estabelecida há mais de três séculos, tal como nada justifica a perseguição milenar aos judeus. Mas esta gente tem o hábito de sobreviver. Os judeus escorraçados de Anatevka são, na verdade, os mais afortunados: muitos deles escaparão com vida e alguns conseguirão até realizar o sonho de «fazer a América». O violinista, agora com os pés bem assentes no chão, estará sempre a zelar por eles e, enquanto a sua música continuar a ser ouvida, nada terão a temer.

5 comentários:

Milan disse...

Os teus textos... maravilhosos como sempre... Vou roubá-los todos para ir lendo no laptop sempre que puder :) Um abraço e um Ano Novo Feliz para ti e para os teus.
Milan

Flávio disse...

Bem, obrigado pelos votos e pelas palavras amigas, Milan. Podes levar os textos todos, em troca levo-te as imagens do teu blogue, sobretudo a dos caminhos de ferro, que está magnífica. Bom ano!

Anónimo disse...

Cool blog, interesting information... Keep it UP »

Carol Vieira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Duquesa disse...

Revi este sensacional filme ontem e achei seu texto espetacular.

Gostaria que vc. desenvolvesse mais sobre o papel dos judeus na Revolução Comunista, alí representado pelo professor das meninas, que está preso na Sibéria.

Parabéns.