2006-02-26

Tubarão


Os filmes de Steven Spielberg deixam-nos com o coração dividido ao meio. É verdade que Spielberg não é o cineasta mais profundo que existe e que a sua visão do mundo é muitas vezes pueril, simplista e ingénua. Em contrapartida, o realizador da Lista de Schindler sempre revelou uma energia notável e um grande conhecimento das técnicas dramáticas e dos princípios fundamentais da psicologia da percepção e da compreensão que as regem. Foram estas qualidades que fizeram de Spielberg o cineasta mais famoso da actualidade e um ícone da cultura popular, que ombreia com nomes como Mark Twain, Walt Disney, Norman Rockwell, Ernest Hemingway ou Aaron Copland.

O extraordinário filme Tubarão (1975) é, ainda hoje, a melhor coisa que Steven Spielberg fez em cinema. Curiosamente e talvez por causa das filmagens longas e conturbadas, o cineasta nunca gostou muito do resultado final: «quando revejo o filme, tenho a sensação que foi outra pessoa que o realizou». A afirmação é surpreendente, pois Tubarão é um verdadeiro filme de autor, naquele sentido particular que foi formulado pelos críticos da Nouvelle Vague. O projecto dos produtores Richard Zanuck e David Brown começou por ser o de um típico filme de aventuras, cuja raison d’être consistia exclusivamente no sucesso comercial; porém, o jovem realizador depressa se impôs e deixou indeléveis as marcas do seu génio criativo. Por exemplo, o ritmo. O filme move-se a um ritmo prodigioso e não há um único fotograma que seja inútil, redundante ou aborrecido.

Vale a pena determo-nos um pouco sobre esta questão do ritmo. Se toda a história é uma metáfora da vida, então um filme deverá seguir o ritmo particular dessa mesma vida. Ora, o andamento do nosso quotidiano não é uniforme, pois os momentos de maior agitação alternam geralmente com os de algum sossego: o frenesim do trabalho no escritório, uma visita mais tranquila ao café da esquina para retemperar energias e o regresso à confusão quando se conduz o automóvel de volta a casa. Algo de semelhante acontece com os filmes: uma sequência lenta talvez pareça aborrecida se vier após outra sequência igualmente lenta; mas se preceder uma sequência mais dinâmica, poderá já ser bem acolhida. É tudo uma questão de contexto.

Um excelente exemplo da mestria de Spielberg é a sequência em que o embarcadouro é destruído pelo monstro marinho. É um momento pleno de ritmo, precisamente porque junta com eficácia o terror e o humor. Os dois pescadores escapam ao ataque do tubarão por uma unha negra e um deles desabafa: «Já podemos ir para casa?!» É uma réplica divertidíssima e no tempo certo, que permite que o espectador dê uma saudável gargalhada e liberte a tensão acumulada. Mais uma vez, é uma questão de contexto.

A primeira aparição do tubarão branco também conjuga esses dois elementos, mas agora na ordem inversa: primeiro o humor e depois o terror. Já no barco de pesca, o protagonista lança isco ao mar e resmunga que não tem muita vontade de estar ali «a atirar aquela merda»; nesse preciso instante, o tubarão irrompe das águas e exibe as suas temíveis mandíbulas. Uma entrada em grande! Até então, o monstro marinho nunca nos havia sido mostrado, mas apenas sugerido por uma série de sinais indiciadores da sua presença: a música de John Williams, os gritos de terror dos banhistas ou a barbatana dorsal à superfície da água. Esta estratégia (que já se tornou num cliché do cinema do terror) seria repetida noutros filmes de Spielberg: por exemplo, a aproximação do T-Rex no Parque Jurássico é sinalizada pela agitação nas copas das árvores ou pelas vibrações da água.

O momento mais encantador do filme é aquele em que o protagonista e o filho brincam à mesa de jantar, que contrasta com o ritmo implacável do resto da história. Spielberg sempre teve um enorme afecto pelas crianças e a sua qualidade de pai de família exemplar emerge nessa magnífica sequência, a mais comovente e reveladora de toda a sua filmografia. Isto introduz a noção de verdade do cinema. Os filmes poderão ser obras ficcionais, mas são também profundamente verdadeiros, porque desvelam o universo interior dos cineastas e deixam registadas a sua personalidade e psicologia. É essa genuinidade de sentimentos que faz de Tubarão um filme com o valor de documento humano.

2006-02-13

George Carlin

«Pessoalmente, acho que há tantas provas da existência de OVNIS como da existência de Deus. Talvez até haja mais. Pelo menos, no caso dos OVNIS, há inúmeros avistamentos filmados (e inexplicáveis) em todo o mundo, juntamente com indícios captados por radar e examinados por operadores de radar civis e militares com anos de experiência.»

«Os adoradores de crianças profissionais dizem que devíamos pôr as necessidades das crianças em primeiro lugar. Porquê? Então e as necessidades dos adultos? Ficam para segundo? É uma estupidez. Se pusermos as necessidades das crianças primeiro, vamos ficar com fraldas e chupa-chupas a mais e com charros e preservativos a menos.»

«Sabem o que nunca se vê? Um coreano com sardas e nariz grande.»

«'Gourmet': cá está mais uma palavra que os filhos da mãe da publicidade nos impingiram. Hoje, tudo é 'gourmet': comida 'gourmet' enlatada, refeição 'gourmet' pronta a comer. Olhem lá, tentem não ser estúpidos demais, está bem? O café não pode ser 'gourmet'. Nem os bolos e nem a pizza. 'Gourmet' só quer dizer uma coisa: 'vamos cobrar-lhe mais dinheiro'. O mesmo é válido para a palavra culinária. A diferença entre comida e culinária é sessenta dólares. Mais nada. Estão a roubar-vos. Sabem o que é comida 'gourmet' a sério? Pénis de caracol tostado. Filete de rabo de panda em calda de açúcar. Entranhas de pato na cataplana. Isto é que é culinária.»

«Entre duas pessoas, o amor é incrivelmente poderoso. É uma coisa linda. Mas, se o amor tivesse algum poder para mudar o mundo, já devia ter conseguido. O amor não pode mudar o mundo. É bom. É agradável. É melhor que o ódio. Mas não tem poder especial nenhum sobre as coisas. Sabe bem. Ama-te a ti próprio, procura outra pessoa para amar e aproveita.»

«Aqui ficam as dicas de cozinha para hoje do Restaurante Familiar do Piorio: carne picada que foi deixada à temperatura ambiente por mais de nove dias e endureceu ligeiramente pode ser amaciada através da infusão numa mistura de gasolina e acetona. Deixe a carne de molho de um dia para o outro e seque-a ao sol durante vários dias. Certifique-se de que o tempero será bem condimentado para disfarçar o sabor a gasolina. Tente usar a carne logo após concluído o processo. Já agora, carne preparada desta maneira não deverá ser cozinhada ao lume.»

«Beethoven era discípulo de Haydn e Schubert morava perto dos dois. Supostamente, frequentavam todos os mesmos cafés. Gostava de saber se alguma vez se juntaram e fizeram uma orgia com uma pianista. Lembrei-me disto.»

«E sabem que mais? Na semana passada, atropelei uma ovelha. Ou, se calhar, atropelei um anão com um casaco de pele de ovelha. Não tenho a certeza porque não parei. É outra regra minha: nunca paro quando tenho acidentes. Vocês param? Não. Não podem. Quem é que tem tempo? Eu não.»

«Bush chama cobardes às pessoas da al-Qaeda e diz 'eles gostam de se esconder'. Ora bem, não foi precisamente isso que o Exército Continental americano fez durante a revolução? Os nossos estimados patriotas? Esconderam-se. Esconderam-se atrás das árvores. Saíam do esconderijo, matavam uns soldados britânicos e fugiam. Tal e qual como a al-Qaeda. É isso que se faz quando se está em desvantagem numérica e se tem menos poder de fogo do que o inimigo. Chama-se a isso 'tentar vencer'. Não é cobardia.»

«No Estado de Nova Iorque, a lei diz que os ingredientes dos cachorros quentes podem incluir uma determinada quantidade ou percentagem de partes de insectos ou excrementos de rato. A lei permite isto. Portanto, quando comem um cachorro quente em Nova Iorque, têm a esperança de que o cachorro que estão a comer contenha apenas as partes mais nutritivas dos insectos (não apenas as patas e as antenas) e que os ratos cujos excrementos estão a comer tivessem dietas saudáveis.»

«Não é por não terem muito dinheiro que não podem gastar o pouco que têm.»


(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, 2005)

2006-02-06

Canções do Tiago

O magnífico blogue do guionista que escreveu o parto mais poético e surpreendente da história do cinema: as Canções do Tiago.

2006-02-02

George W. Bush

Quando foi questionado sobre Brokeback Mountain, o nosso imperador George W. Bush limitou-se a dizer que não viu o filme. Muito prudente da parte dele, mas o sorriso de escárnio não enganou ninguém.