2004-12-27
Suspeita
Parece que Alfred Hitchcock nunca gostou muito do final feliz do seu filme Suspeita (1941), com Cary Grant e Joan Fontaine. O romance original Before the Fact, do inglês Anthony Berkeley Cox (sob o pseudónimo de Francis Iles), era bem mais pessimista e contava a história bizarra de uma mulher tão fanaticamente apaixonada pelo marido, que vivia com ele mesmo sabendo que era um burlão, um engatatão e um homicida. Ao descobrir não só que está grávida dele mas também que ele planeia matá-la, a protagonista resolve suicidar-se e bebe o copo de leite envenenado que o marido lhe tinha deixado. Hitchcock apreciou sobretudo a abordagem psicológica da obsessão e da morte e queria, em conformidade com o texto original, revelar no final do filme que o seu protagonista era na realidade um assassino.
Os produtores, menos ousados, levaram as mãos à cabeça e disseram logo que não a esse final, entre outras razões porque era impensável que o simpático Cary Grant interpretasse um homicida. A reputação de Grant era a de um galanteador alto, divertido e sofisticado e não a de um intérprete particularmente dotado ou profundo. Como a grande Pauline Kael escreveria a seu respeito, «não queremos que ele seja intenso, apenas lhe pedimos que seja subtil, elegante e nos faça rir». O próprio Grant, lúcido até à medula, estava plenamente consciente dessas suas limitações e sabia que jamais seria credível na pele do assassino que Hitch pretendia.
O processo de selecção de um final mais apropriado viria a ser um parto longo e doloroso. Quando as filmagens começaram em 10 de Fevereiro de 1941, ninguém fazia ainda ideia de como é que seria o desenlace do filme. Isto não só era completamente estranho ao método de trabalho de Hitch, como também lançou os actores na confusão mais absoluta, pois nenhuma cena ou fala tinha um propósito certo. Pela primeira vez em muitos anos, Hitchcock adoeceu e a rodagem teve que ser suspensa durante várias semanas. O realizador regressava sempre exausto e deprimido ao estúdio e os seus colaboradores queixavam-se do seu desinteresse. O azedume foi tal que a 18 de Abril chegou-se mesmo a falar do cancelamento do filme.
Durante todo este tempo, Joan Fontaine e Alma Reville trabalharam fervorosamente em vários finais. Uma das possibilidades era que Cary Grant, num gesto de inusitado heroísmo, ingressasse na Royal Air Force e assim se redimisse dos seus crimes. De acordo com esta versão, felizmente abandonada a tempo, Grant deveria morrer num acto de sacrifício e patriotismo, o que contornava o problema do homicídio e suicídio no final. Em início de Maio, os produtores chegaram à conclusão que para compensar os custos substanciais e inesperados acarretados pelo atraso das filmagens, a RKO deveria distribuir o filme o mais rápida e amplamente possível – preferentemente, ainda antes do Verão.
Hitchcock exigia, porém, mais tempo – e ainda bem que o fez, pois em meados de Julho ainda não tinha sido encontrado um final para o seu filme. A dada altura, houve a ideia de fazer da protagonista uma mulher adúltera e assim conseguir ultrapassar as objecções dos censores relativamente ao seu suicídio. Porém, quando esta versão foi projectada numa sneak preview, o público desfez-se em risos e Hitchcock teve de retomar as filmagens. Alma e Joan arranjaram um novo final, mas as variantes eram tantas que já ninguém sabia que tipo de história é que estavam para ali a contar.
A decisão final foi revelar que as suspeitas de Joan Fontaine eram infundadas e que tudo não passou de um equívoco terrível. A história de uma mulher que descobre que o marido é um assassino transformou-se assim na história de um mulher que julga que o marido é um assassino. Cary Grant está, todavia, inocente e é mais um desses falsos culpados que Hitchcock tanto aprecia. A grande novidade é que, desta feita, tudo nos é mostrado não da perspectiva de quem é imerecidamente acusado (Grant), mas sim de quem acusa injustamente (Fontaine): por isso, quando a protagonista suspeita do marido, o mundo surge mergulhado nas sombras; quando ela acredita nele, predominam os ambientes claros e luminosos, que no final sairão prevalecentes com a absolvição definitiva e surpreendente de Grant. Assim foi o desenlace mais controvertido da filmografia de Alfred Hitchcock, que acabaria por ser também o mais inesperado, absurdo e hitchcockiano de todos eles – apesar da oposição declarada do próprio Hitchcock.
O taxista português
Nunca compreendi muito bem o porquê da péssima reputação dos taxistas portugueses. Para mim, uma viagem de táxi é sempre lamentavelmente curta. Os nossos táxis são eficientíssimos e conduzidos por homens extraordinários. Em cada taxista que conheci, encontrei sempre um amigo, um filósofo, um confidente instantâneo e sobretudo um contador de histórias notável que conhece como ninguém os caminhos do comportamento humano. A todos os taxistas da nossa terra deixo por isso os votos de excelentes festas e viagens seguras.
2004-12-22
Um sítio alquímico
Graças ao Bernardo Motta e ao seu excelente blogue Espectadores, descobri esta maravilha de sítio sobre o tema eterno da alquimia: The Alchemy Website.
2004-12-20
Arizona Dream
«O elenco de Arizona Dream é, de certo modo, uma revisitação pós-moderna da história do cinema. Pelos vistos, há muito tempo que ninguém queria contratar uma antiguidade como Jerry Lewis para um filme. Por causa da sua presença forte (ainda que já fora de moda) no ecrã, Lewis tinha estado mais ou menos condenado a interpretar a sua própria pessoa nos anos precedentes. Ele tinha sido incluido, sempre em conformidade com essa sua imagem, nos elencos de The King Of Comedy, que precedeu Arizona Dream, onde lhe coube o papel 'sério' de um apresentador de talk shows, e de Funny Bones, que veio a seguir, no qual interpretou um papel semelhante, um ex-humorista gabarolas. Algo de semelhante aconteceu com Faye Dunaway. Durante os seis anos entre Barfly e Arizona Dream ela não teve um único filme de sucesso ou interpretação notável. Ambos os actores estavam afastados das luzes da ribalta até à sua ressurreição por Kusturica em Arizona Dream, e Lewis (apesar da ambiguidade sério-cómica de Leo, a sua personagem no filme) teve mesmo direito a um cantinho para as palhaçadas dos bons velhos tempos. O seu papel no filme de Kusturica conseguiu trazer ao de cima algum do seu 'verdadeiro' lado humano, ao mesmo tempo que recordava a sua carreira passada.
Arizona Dream também contou com as participações de Johnny Depp e Lili Taylor, actores populares e reputados, que começaram as suas carreiras 'no tempo certo' e com presença assídua em grandes produções. A sua imagem neste filme seria premonitória: Johnny Depp continuou a interpretar sonhadores urbanos, falhados e depressivos depois deste papel. Imediatamente após o filme de Kusturica, Depp participou em What's Eating Gilbert Grape?, um filme independente com uma concepção semelhante, sobre a doença e a debilidade na América profunda. Finalmente, em Arizona Dream, Kusturica contou também com a modelo Paulina Porizkova e a participação de supermodelos no cinema comercial tornar-se-ia frequente nos anos seguintes. A carreira do subaproveitado Vincent Gallo, que interpreta Paul, é igualmente comentada através da sua personagem: o actor é um arruaceiro, tal como o aspirante a vedeta de Arizona Dream, talentoso mas incompreendido. Em Arizona Dream, o próprio elenco representa o passado, o presente e o futuro do cinema.»
(in Goran Gocic: Notes from the Underground: the cinema of Emir Kusturica, Directors' Cuts, Wallflower Press, Londres, 2001, págs. 124 e 125; tradução do inglês de Flávio Sousa)
Solidariedade de Natal
Nesta época de boa vontade natalícia, gostaria de propor um voto de solidariedade para com todos aqueles que, nas ruas, nas lojas e nos centros comerciais, se vêem forçados a vestir roupas de Pai Natal e a fazer uma figura perfeitamente ridícula para poderem vender as suas coisinhas.
2004-12-16
O dragão ataca
Vale bem a pena assistir ao combate grandioso entre o Dragão e a nossa querida Zazie no excelente blogue Dragoscópio, a respeito do Vasco Pulido Valente.
Prova irrefutável da existência de Deus
O próximo álbum do extraordinário Beck estará à venda em Fevereiro.
Pi
«Um: a matemática é a linguagem da Natureza. Dois: tudo à nossa volta pode ser representado e compreendido através dos números. Três: se se representar graficamente os números de qualquer sistema, começam a surgir padrões. Por conseguinte, há padrões em todo o lado na Natureza. Provas: os ciclos das epidemias, o aumento e decréscimo das populações de caribus, o ciclo das manchas solares, o nível das águas do Nilo. E que dizer então do mercado bolsista? O universo de números que representa a economia global. Milhões de pessoas envolvidas, biliões de mentes, uma vasta rede pulsante de vida: um organismo, um organismo natural. A minha hipótese: dentro do mercado bolsista, também existe um padrão. Mesmo à nossa frente. Oculto por detrás dos números. Sempre existiu.»
2004-12-10
Bruce Lee
O facto mais misterioso e controvertido na vida do grande Bruce Lee continua a ser… a sua morte. As circunstâncias que rodearam o falecimento prematuro do maior mestre de artes marciais do séc. XX foram estranhas e permanecem até hoje inexplicadas. Conta-se que Bruce reagiu tragicamente mal a um comprimido para dores de cabeça, mas não parece que essa explicação oficial e politicamente correcta convença muita gente: designadamente, fica por esclarecer porque é que durante a rodagem do seu último filme Bruce afirmou que não viveria o suficiente para ver o seu final. Muitos fãs inconformados têm por isso procurado outras explicações. Uns falam da possibilidade de suicídio. Outros, mais optimistas, acreditam que o seu ídolo não morreu, mas vive em reclusão num templo de Shaolin, longe dos olhares do mundo. Outros ainda, julgam que Bruce terá sido vítima da máfia chinesa, à qual sempre recusou prestar vassalagem.
Antes de morrer, porém, Bruce Lee fez vários filmes e o primeiro deles foi The Big Boss (1971). Precisamente por ter sido o primeiro, este não foi o seu melhor filme: o controlo de Bruce sobre o produto final esteve consideravelmente limitado e, infelizmente, nem todas as sequências de luta foram da sua autoria. Mesmo assim, as marcas do seu talento estão lá quase todas e o excelente argumento combina a ficção mais espectacular com alguns elementos retirados da biografia da sua vedeta principal. Tal como o protagonista Cheng Chau-an aporta numa terra estrangeira à procura de trabalho, também Bruce regressou em 1959 à sua cidade natal de São Francisco com apenas 115 dólares (15 do pai e 100 da mãe) nos bolsos em busca de uma nova vida. E tal como Bruce jurou aos seus pais evitar os sarilhos, também Cheng traz ao pescoço um amuleto de jade que representa idêntica promessa feita à sua mãe. Num dos pormenores mais memoráveis do filme, o amuleto é quebrado em dois, pelo que, liberto do peso simbólico desse compromisso, Bruce poderá então começar a fazer justiça pelos seus próprios meios.
O seu filme seguinte foi Fist Of Fury (1972), uma história de resistência ao imperialismo japonês que é também um testemunho eloquente do universalismo da mensagem de Lee. Numa das melhores cenas, Bruce desafia sozinho toda uma escola japonesa de karate, cujos membros haviam insultado a sua escola e apelidado o povo chinês de «homens doentes da Ásia». Bruce consegue derrotar todos os seus membros graças às suas superiores técnicas de combate – que são uma mistura de artes marciais de diversas regiões – demonstrando deste modo que o mais importante não é o país de origem das artes, mas sim o indivíduo e as suas convicções. Ao longo da sua vida, Bruce manteve-se leal a estes princípios e nas suas escolas compartilhou os seus ensinamentos e princípios de auto-defesa com todas as pessoas de todas as raças. Entre os seus alunos mais célebres, estiveram Roman Polanski, James Coburn e Steve McQueen.
Tanta generosidade e espírito de abertura não caíram no goto de muita gente, sobretudo da fraternidade chinesa da Califórnia, cujos membros não aceitavam de bom grado que os segredos das artes marciais fossem revelados a estrangeiros. Bruce começou então a ser o destinatário de um sem número de ameaças e desafios, o mais célebre dos quais por Wong Jack Man, um mestre de kung-fu recém-chegado à América: quem dos dois perdesse o combate, seria forçado a fechar a sua escola de artes marciais. Bruce saiu ganhador em poucos minutos, mas mesmo assim não ficou suficientemente satisfeito com a vitória, pelo que considerou que era altura de reavaliar a sua condição física e repensar a sua técnica: nascia assim o seu jeet kune do, que acabaria por se tornar no mais eficiente sistema de combate corporal alguma vez concebido.
Alguns dos princípios desta nova arte seriam expressamente enunciados em Way Of The Dragon (1972), o filme que se seguiu: «o método não é importante, desde que se utilize o corpo na sua máxima potencialidade», «mesmo por entre movimentos violentos podemos atingir os nossos objectivos e exprimirmo-nos» ou «qualquer que seja a arte, faltar-nos-ão sempre as forças se não aprendermos as coisas correctamente». A designação jeet kune do foi adoptada em 1967, mas anos mais tarde Bruce arrependeu-se de ter dado um nome à sua arte, pois os dois tornaram-se indissociáveis. Um nome junta-se sempre ao seu referente de uma forma rígida. Ora, a rigidez é exactamente o oposto do «método sem método» sobre o qual assenta esta nova arte, que é essencialmente um processo de crescimento contínuo, melhoramento e adaptação. Bruce chegou, a este respeito, a afirmar: «o que quero mostrar é a necessidade de nos adaptarmos a circunstâncias que mudam. A incapacidade de adaptação traz consigo a destruição».
Este princípio de adaptação encontrou a sua expressão máxima naquela que viria a ser a maior sequência de combate alguma vez filmada: o célebre confronto final entre Bruce Lee e Chuck Norris no Coliseu de Roma. No início do combate, Bruce é atingido diversas vezes pelo oponente porque adopta uma atitude demasiado rígida. Norris também adopta uma atitude rígida e os dois adversários vão trocando um número mais ou menos idêntico de golpes. Porém, Chuck Norris começa a levar a melhor graças ao seu peso e estatura. Bruce decide então mudar a sua estratégia e adopta um «método sem método», variando constantemente o ritmo e a intensidade dos seus ataques, muito para irritação de Norris. Anos mais tarde, perguntaram ao actor americano qual dos dois ganharia se o confronto fosse mesmo real e Norris, que foi oito vezes campeão mundial de karate, confessou que o vencedor seria sem dúvida Bruce!
As reflexões filosóficas continuaram com o filme seguinte, Enter The Dragon (1973): o título de maior sucesso na carreira de Bruce é também a sua obra mais sábia e o compêndio de algumas das suas lições mais profundas. Uma delas está contida numa frase célebre que dirigiu a um jovem estudante do templo de Shaolin: «não penses, sente. É como um dedo apontado à lua». Quando o estudante olha especado para o dedo, apanha uma bofetada e Bruce prossegue: «não olhes para o dedo senão perderás toda a beleza divina». O mestre fala aqui da necessidade dos homens se expressarem honestamente e abrirem o seu espírito a tudo aquilo que os rodeia; concentrar-se no dedo implicaria limitar a visão do mundo. O filósofo Bruce Lee sempre foi, aliás, avesso a sistemas fechados e acolheu influências das mais diversas proveniências, como o budismo, o taoísmo e o confucionismo. O próximo filme deveria ser a enunciação mais completa desta sua doutrina, mas infelizmente Bruce nunca chegaria a realizar esse sonho.
Lembram-se do uniforme amarelo com a risca preta que Uma Thurman usou em Kill Bill? Pois bem, o traje é uma homenagem explícita a Game Of Death, o quinto e último filme de Bruce Lee, no qual o protagonista utilizou um uniforme rigorosamente idêntico. A escolha do guarda-roupa não foi, aliás, casual: o fato representava a singularidade do estilo de Lee e a sua não filiação em nenhuma das artes marciais existentes. Lamentavelmente, a morte inesperada de Bruce não permitiu que o filme fosse concluído e a versão póstuma surgida em 1978 pouco ou nada tem que ver com o projecto original: por isso, esse celebérrimo fato amarelo mais o verdadeiro Bruce Lee surgem apenas no último terço do filme e durante 15 minutos, já que tudo o resto foi representado por duplos e sósias do mestre. Mesmo assim, pelo menos esses 15 minutos sobreviventes estão lá: três extraordinárias sequências de luta fluidas, dinâmicas e ricas em simbolismo, as melhores que Bruce alguma vez concebeu.
2004-12-06
Mais blogues amigos
Vale sempre a pena dar um pulinho ao simpático Associação de Ideias do João Paulo Cotrim e ao cosmopolita Memórias do Tempo Que Passa.
2004-12-02
Santana Lopes
Repararam como Santana Lopes se engasgou quando afirmou aos jornalistas que só tinha a dizer bem do ex-Ministro Henrique Chaves?
I.
Concebido nos banhos e nascido no ar, tornado verdadeiramente vermelho, ele avança sobre as águas. O Enxofre (o Sol dos Sábios) fecunda a Lua Mercuriana através da imersão. O Mercúrio (a Lua dos Sábios) tem a característica de absorver a Tintura que o Enxofre liberta durante a imersão (ou Banho do Rei). É esta analogia com o coito que inspirou na alquimia o uso das imagens sensuais.
Os tomates
Um dos melhores sítios internacionais sobre cinema é o popularíssimo Rotten Tomatoes, com os seus fóruns, as notícias frescas e o grande Roger Ebert.
Um conselho a José Sócrates
Os astrólogos conhecem bem a chamada lei da repercussão, segundo a qual as energias (positivas ou negativas) que projectamos no exterior são as mesmas que o mundo nos devolve. Trata-se de uma lei implacável e universal, que se aplica a todos os domínios da vida, inclusive a política. Por isso mesmo, espero que o nosso José Sócrates não se esqueça dela e que, na campanha eleitoral que se aproxima, se preocupe mais com as suas qualidades pessoais e menos com os eventuais vícios dos oponentes. O mundo (neste caso, o eleitorado) saberá certamente responder de forma generosa.
2004-11-29
É preciso escrever mais
Para aqueles que, como eu, foram mordidos pelo bichinho da escrita, estes dois sítios são indispensáveis: o Escreva! e o Escrita Criativa.
Ivo Canelas e Gonçalo Waddington
Para mim, estudante de cinema alimentado a Cahiers e folhas da cinemateca, as grandes vedetas dos filmes foram sempre os realizadores e não os actores. Quem protagonizava verdadeiramente as obras cinematográficas e lhes dava alma era quem as dirigia, enquanto que os actores não passavam de intervenientes vaidosos, secundários e um pouco pervertidos ou, na tristemente célebre expressão de Hitchcock, eram «gado». Com os anos, a descoberta dos talentos fulgurantes de Klaus Kinski, Marlon Brando e Bette Davies fez mudar a minha opinião. Ainda para mais, pude recentemente produzir um pequeno filme chamado O Porteiro e trabalhar com um elenco excepcional que erradicou quaisquer sobras de preconceito que eu ainda guardasse. Todos os nossos actores e actrizes (todos, sem excepção!) foram excelentes e comprovaram uma velha teoria: a de que os grandes artistas são também seres humanos íntegros e generosos.
Dois desses actores que colaboraram connosco foram o Gonçalo Waddington e o Ivo Canelas e devemos a este dueto de gigantes o melhor momento de O Porteiro. Trata-se, obviamente, da cena 5, exterior, noite. Após uma troca de palavras azeda, a nossa querida Verinha Fontes entra no bar Dedalus e deixa sozinhos e sossegados os dois amigos. O tom de voz entre os rapazes suaviza-se então quase até ao sussurro, pois ambos querem trocar desabafos cúmplices e convém que ninguém ouça. De súbito, o nosso Ivo sai-se com um excelente «Tu andas com ela porquê?». O Ivo é rápido, mas o Gonçalo não lhe fica atrás. «Não sei, a minha mãe pergunta-me sempre a mesma coisa». Tudo isto é improvisado: a troca de palavras não consta em lado nenhum do guião e são os dois intérpretes que, num passe de mágica, a vão buscar ao reservatório inesgotável da sua criatividade.
A conversa prossegue e flui como um rio: as falas são claras, concisas e ditas (ou melhor, vividas) com toda a expressividade. Afinal, vai ou não haver casamento? Pelos vistos não vai, mas apenas porque o Ivo tem medo de abraçar um compromisso tão grande. Por isso, ele reage com todo aquele nervosismo (o gaguejar improvisado é mais um toque excelente!) quando é confrontado com os factos pelo amigo. Enfim, o que é preciso é calma, tudo se remedeia. Ao lermos o guião, o Gonçalo deveria agora simplesmente voltar ao bar e ir ter com a namorada, mas nem por isso acabam os improvisos. «Obrigado!», suspira ainda o Ivo com alguma ironia, enquanto o amigo prossegue com um passo gingão e as suas risadas jocosas em direcção ao bar. É como se os dois actores quisessem prolongar ao máximo o gozo evidente que sentem quando interpretam a cena na companhia um do outro. Tudo termina com aquele espantoso close up do rosto do Ivo Canelas, mais a Lisboa adormecida em segundo plano.
Dois desses actores que colaboraram connosco foram o Gonçalo Waddington e o Ivo Canelas e devemos a este dueto de gigantes o melhor momento de O Porteiro. Trata-se, obviamente, da cena 5, exterior, noite. Após uma troca de palavras azeda, a nossa querida Verinha Fontes entra no bar Dedalus e deixa sozinhos e sossegados os dois amigos. O tom de voz entre os rapazes suaviza-se então quase até ao sussurro, pois ambos querem trocar desabafos cúmplices e convém que ninguém ouça. De súbito, o nosso Ivo sai-se com um excelente «Tu andas com ela porquê?». O Ivo é rápido, mas o Gonçalo não lhe fica atrás. «Não sei, a minha mãe pergunta-me sempre a mesma coisa». Tudo isto é improvisado: a troca de palavras não consta em lado nenhum do guião e são os dois intérpretes que, num passe de mágica, a vão buscar ao reservatório inesgotável da sua criatividade.
A conversa prossegue e flui como um rio: as falas são claras, concisas e ditas (ou melhor, vividas) com toda a expressividade. Afinal, vai ou não haver casamento? Pelos vistos não vai, mas apenas porque o Ivo tem medo de abraçar um compromisso tão grande. Por isso, ele reage com todo aquele nervosismo (o gaguejar improvisado é mais um toque excelente!) quando é confrontado com os factos pelo amigo. Enfim, o que é preciso é calma, tudo se remedeia. Ao lermos o guião, o Gonçalo deveria agora simplesmente voltar ao bar e ir ter com a namorada, mas nem por isso acabam os improvisos. «Obrigado!», suspira ainda o Ivo com alguma ironia, enquanto o amigo prossegue com um passo gingão e as suas risadas jocosas em direcção ao bar. É como se os dois actores quisessem prolongar ao máximo o gozo evidente que sentem quando interpretam a cena na companhia um do outro. Tudo termina com aquele espantoso close up do rosto do Ivo Canelas, mais a Lisboa adormecida em segundo plano.
2004-11-22
É o fim do mundo!
A simpática Coelhinha Zazie deixou definitivamente de blogar após a extinção da Janela Indiscreta. É pena. Ainda para mais, o nosso Stephen King tenciona seguir-lhe o exemplo. Que será feito desta blogosfera?!
Para Além do Tejo
O público lisboeta tem andado a encher a alma com Para Além do Tejo, uma excelente peça do Teatro Meridional que é protagonizada por uma região inteira: o nosso querido Alentejo. O espectáculo, de poucas falas mas lindamente musicado por Fernando Mota, conta com as fabulosas actuações do Gonçalo Waddington (que também interpretou o Joel do nosso filme O Porteiro) e do Nuno Lopes, descalços e tudo. Apressem-se, porque esta maravilha está em exibição no Espaço Teatro da Garagem (Poço do Bispo, em Lisboa) só até 28 de Novembro. (Reservas: 218688550 / 217111562)
Lenny
«O que é obsceno? E o que é decente? Se eu tivesse que fazer uma escolha, eu preferia que o meu filho visse um filme pornográfico do que um filme normal, como o Rei dos Reis. Porquê? Porque o Rei dos Reis está cheio de mortes e eu não quero que o meu filho mate Cristo quando Ele voltar. Que é o que acontece em Rei dos Reis. Não há um único filme pornográfico em que alguém leve murros ou seja morto. Com sorte, vê-se alguém a ser amarrado ou a levar pancadinhas com um cinto, mas a maior parte das vezes aquilo que se vê durante hora e meia são abraços e beijinhos e suspiros... E depois, no fim do filme, quando aquele instrumento potencial de morte é revelado... a almofada! A almofada com a qual o gajo parece que vai sufocar a miúda, como num filme de terror! Mas ele agarra na almofada e coloca-a devagarinho debaixo do rabo da rapariga. E eles adormecem e ninguém se magoa ou morre. E é bonito. E assim acaba o filme.»
2004-11-17
Os degenerados
Esta semana, os ouvintes da Antena 2 puderam usufruir de uma hora inteira de grandes obras musicais censuradas pelo governo nazi no período compreendido entre 1933 e 1945: era a chamada música degenerada. O programa, chamado Acordar a Dois, foi exemplarmente conduzido pelo grande António Cartaxo e incluiu trechos de Korngold, Kurt Weil, Brecht e outros degenerados. Mais uma vez, Cartaxo não deixou os seus créditos de Erzähler por mãos alheias e presenteou os fãs com algumas histórias curiosas. Uma delas respeitou ao compositor Berthold Goldschmidt, autor de A Majestosa Capoeira, que acabaria por ser um dos pouquíssimos judeus que fugiram da Alemanha mediante o consentimento do próprio regime nazi. «Você foi à Rússia e quem vai à Rússia é comunista», afirmou-lhe em 1935 um oficial da Gestapo. O compositor negou, obviamente, a acusação. Para sua sorte, o inquiridor era, também ele, um apreciador de música e ambos trocaram comentários apaixonados sobre Schubert e Schumann. Comovido com a conversa, o oficial aconselhou-o então a sair imediatamente da Alemanha. No dia seguinte, Goldschmidt partiu para a Inglaterra, onde prosseguiu uma carreira brilhante e viveu até à linda idade de 97 anos.
2004-11-15
Aqui vou ser feliz!
Hoje, queria sugerir três excelentes blogues que farão a felicidade dos blogonautas cinéfilos: o Cinema Existencial, o Royale With Cheese e o belíssimo O Zombie Comeu O Meu Blogue.
Os sete filmes da minha vida
1. Metropolis
Prod.: Alemanha, 1927
Real.: Fritz Lang
Arg.: Fritz Lang e Thea von Harbou
Género: Ficção científica
2. O Padrinho I
Prod.: EUA, 1972
Real.: Francis Ford Coppola
Arg.: Mario Puzo e Francis Ford Coppola
Género: Drama
3. Oedipus Rex
Prod.: Itália, 1967
Real.: Pier Paolo Pasolini
Arg.: Luigi Scaccianoce (segundo o drama homónimo de Sófocles)
Género: Drama
4. O Homem da Câmara de Filmar
Prod.: URSS, 1929
Real.: Dziga Vertov
Arg.: Dziga Vertov
Género: Documentário
5. Les Diaboliques
Prod.: França, 1955
Real.: Henri-Georges Clouzot
Arg.: Henri-Georges Clouzot (segundo o romance Celle qui n'était plus, de Pierre Boileau e Thomas Narcejac)
Género: Thriller
6. A Laranja Mecânica
Prod.: Reino Unido, 1971
Real.: Stanley Kubrick
Arg.: Stanley Kubrick (segundo o romance homónimo de Anthony Burgess)
Género: Drama, ficção científica
7. Noite Escura
Prod.: Portugal, 2004
Real.: João Canijo
Arg.: João Canijo, Pierre Hodgson e Mayanna von Ledebur
Género: Drama
Prod.: Alemanha, 1927
Real.: Fritz Lang
Arg.: Fritz Lang e Thea von Harbou
Género: Ficção científica
2. O Padrinho I
Prod.: EUA, 1972
Real.: Francis Ford Coppola
Arg.: Mario Puzo e Francis Ford Coppola
Género: Drama
3. Oedipus Rex
Prod.: Itália, 1967
Real.: Pier Paolo Pasolini
Arg.: Luigi Scaccianoce (segundo o drama homónimo de Sófocles)
Género: Drama
4. O Homem da Câmara de Filmar
Prod.: URSS, 1929
Real.: Dziga Vertov
Arg.: Dziga Vertov
Género: Documentário
5. Les Diaboliques
Prod.: França, 1955
Real.: Henri-Georges Clouzot
Arg.: Henri-Georges Clouzot (segundo o romance Celle qui n'était plus, de Pierre Boileau e Thomas Narcejac)
Género: Thriller
6. A Laranja Mecânica
Prod.: Reino Unido, 1971
Real.: Stanley Kubrick
Arg.: Stanley Kubrick (segundo o romance homónimo de Anthony Burgess)
Género: Drama, ficção científica
7. Noite Escura
Prod.: Portugal, 2004
Real.: João Canijo
Arg.: João Canijo, Pierre Hodgson e Mayanna von Ledebur
Género: Drama
2004-11-12
Metropolis (iii)
Metropolis é não apenas uma síntese da obra de Fritz Lang, mas também de toda a Ufa e por arrastamento do cinema mudo alemão. O filme sumariou os vícios e virtudes da Ufa (e, coerentemente, diz-se que terá contribuído em grande medida para a sua queda) de uma forma que não pode ter sido mero fruto do acaso. Metropolis não foi apenas uma criação do génio de Lang; é também produto das políticas empresariais, técnicas de produção e estratégias de marketing que caracterizaram a maior produtora alemã de sempre.
O mais importante dos acontecimentos para a História do cinema alemão do pós-guerra teve lugar ainda durante o desenrolar do conflito mundial e consistiu na criação da empresa de produção Ufa (Universum Film Aktiengesellschaft) em 18 de Dezembro de 1917. Receando que a indústria cinematográfica alemã não estava fazendo a sua parte no sentido de conquistar os corações e mentes do povo alemão para o esforço de guerra, o comandante-em-chefe do Exército, Erich Ludendorff, reuniu banqueiros, empresários e representantes do Exército para formar uma grande produtora cinematográfica nacional. O poderio económico da Ufa era enorme e a empresa logrou expandir-se de uma forma voraz, quer vertical (comprando empresas distribuidoras e cinemas) quer horizontalmente (adquirindo o controlo das maiores produtoras, com a excepção assinalável da Decla de Erich Pommer, excluída até 1921).
Por entre o caos do após guerra, a Ufa fortaleceu-se continuamente. Apesar de se ter estruturado como uma organização militar, os banqueiros e industriais envolvidos estavam mais interessados no sucesso comercial, o que limitava qualquer simples agenda propagandística que Ludendorff pudesse ter em mente. Eram aqueles quem abriam os cordões à bolsa e no início dos anos 20, quando finalmente se fundiu com a Decla, a Ufa era na verdade um sucesso financeiro e poderia mesmo chegar a competir com o studio system de Hollywood no qual se havia modelado. Através do seu programa de fusões, uma série infindável de talentos foram convidados a ingressar nas suas fileiras: grandes vedetas como Asta Nielsen, Pola Negri e Emil Jannings, juntamente com realizadores como Lubitsch, Lang, Robert Wiene, F. W. Murnau e G. W. Pabst. Mas a Ufa não se limitava a copiar a organização de Hollywood: graças às vastas somas de dinheiro ao seu dispor, as suas estrelas puderam também começar a auferir salários equivalentes aos dos americanos, possibilitando, por algum tempo, a sua permanência na Alemanha.
O célebre Erich Pommer, produtor e director da Ufa, desempenhou um papel fundamental. Como dirigente da Decla, Pommer havia lançado as fundações do que ficaria conhecido como o expressionismo alemão, ao produzir Das Cabinet des Dr Caligari (1919); depois da fusão da Ufa com a Decla-Bioscop em 1921, Pommer assumiu o controlo da nova empresa antes de se tornar oficialmente o seu chefe de produção de 1923 a 1925. A missão de Pommer representava um duplo desafio. O seu primeiro objectivo consistia em produzir obras com potencial para exportação, uma vez que os filmes alemães posteriores a 1918 eram em boa medida um meio de restabelecer o prestígio da Alemanha, manchado com a guerra, através de títulos que granjeassem respeito no exterior. Ademais, em meados da década de 1920, os estúdios americanos tinham logrado penetrar nos mercados europeus através do aproveitamento dos seus recursos financeiros enormes, infraestruturas modernas, progressos tecnológicos, um star system populista e agressivas políticas expansionistas de distribuição. O público europeu delirava com as obras hollywoodescas da altura: filmes ligeiros, inconsequentes e divertidos, recheados de suspense, humor, aventura e o inevitável final feliz. Consequentemente, a indústria alemã via-se na contingência de produzir filmes maiores, melhores e ainda mais espectaculares.
Com vista a compensar esta concorrência interna e também a assegurar o sucesso no estrangeiro, Pommer adoptou um discurso fílmico alemão diverso, que já havia delineado nas suas produções Caligari e Genuine (1920), Destiny (1921) de Lang e Schloss Vogelöd (1921). Enquanto que os americanos abordavam temáticas predominantemente realistas, Pommer enveredou pela direcção oposta: o filme de arte estilizado. Aquilo que é geralmente referido como o discurso expressionista dos filmes alemães de meados da década de 1920, nunca representou pois um esteticismo ars gratia artis; Pommer antes encarava arte e apelo comercial como estando directamente relacionados na sua estratégia de produção. A sua convicção era a de que um filme artisticamente conseguido pode ser economicamente lucrativo; consequentemente, o objectivo da sua política de produção era desenvolver os mais elevados padrões artísticos de forma a obter ganhos comparáveis aos que outros conseguiam através da fabricação de sensações básicas para as massas. O leque de obras ia desde os exóticos filmes de aventuras como Die Spinnen (1919) de Fritz Lang, aos grandes dramas históricos como Madame Dubarry (1919) de Ernst Lubitsch (um dos primeiros filmes a fazer evidenciar o cinema alemão junto dos americanos). Na mesma altura, alguns argumentistas e realizadores preconizam um retorno ao realismo; esta experiência, foi teorizada por Carl Mayer sob a designação de Kammerspiel (literalmente, teatro de câmara) e incluiu filmes como Sylvester (1923) de Lupu Pick ou Der letzte Mann (1924) de Murnau. Finalmente, surgem os filmes expressionistas e até 1927 eram estes a grande bandeira do cinema alemão no estrangeiro (é todavia importante notar que não eram eles que dominavam o mercado interno).
O desenvolvimento desta filosofia de cinema simultaneamente artístico e comercial radicava na extraordinária habilidade de Pommer em descobrir e apoiar os realizadores mais adequados à concretização da sua visão. Oferecendo orçamentos massivos e prazos de produção quase ilimitados, Pommer possibilitou que realizadores como Wiene, Murnau, Lang, Dupont e von Gerlach desenvolvessem o seu estilo visual e introduzissem inovações estéticas e técnicas, uma política que se repercutiu no vasto leque e brilhantismo técnico das suas produções. O design marcante de Caligari, a composição pictórica de Die Nibelungen, os extraordinários cenários de Zur Chronik von Grieshuus (1925) de von Gerlach, a câmara móvel de Der letzte Mann (1924) de Murnau e os planos inovadores e ângulos expressivos de Varieté (1925) de Dupont nunca teriam sido possíveis sem o apoio financeiro, cumplicidade artística e paciência beneditina de Pommer.
Expressivamente, os próprios realizadores de Pommer estavam bem cientes que os filmes de arte que produziam eram uma reacção directa à ameaça representada pelo cinema de entretenimento americano, como Lang notava já em 1924:
«A Alemanha nunca teve e nunca terá acesso aos gigantescos recursos financeiros e humanos de que a indústria cinematográfica americana pode dispor. E esta é a nossa sorte. Precisamente porque é isto que nos obriga a responder a esta superioridade puramente material com a nossa superioridade espiritual [geistiges Übergewicht].»
Não obstante, Pommer era suficientemente profissional para reconhecer que nos anos 20, os padrões técnicos da indústria cinematográfica eram estabelecidos por Hollywood. Nesta medida, a ida de Pommer e Lang aos E.U.A. em 1924 tinha por intenção ser uma visita de estudo que daria a Lang a oportunidade de visitar os maiores estúdios norte-americanos e recolher impressões que poderia incorporar no seu próximo projecto fílmico. Nos estúdios da Universal, Warner Brothers e United Artists, Lang testemunhou em primeira mão os seus métodos de produção e recursos técnicos. Assistiu às filmagens de O Fantasma da Ópera da Universal e ficou impressionado com o gigantesco cenário no qual, conforme relatou mais tarde, a grande ópera de Paris havia sido reconstruída; em The Lost World, pôde estudar o uso inovador dos efeitos stop motion por Willis O'Brien. O que lhe desagradou, todavia, foi a temática dos argumentos da maioria dos filmes americanos, que na sua opinião eram caracterizados pela monotonia dos enredos e ignorância dos processos históricos.
É certo que no início da década de 1920, a Alemanha podia competir com os Estados Unidos da América e era particularmente influente na Europa. Mas isto não significa que Hollywood não representasse também uma potência importante. Primeiro, o sistema de Hollywood era o modelo que a Ufa até certa medida imitava, culminando com a visita de Pommer e Lang aos Estados Unidos para aprenderem com os mestres e estabelecerem contactos. À medida que a década avançava, tornava-se todavia progressivamente mais difícil para Weimar competir com os Estados Unidos. Cada vez mais estrelas eram atraídas para Hollywood à medida que as condições de trabalho na América começavam a superar as existentes na Alemanha. Ademais, uma percentagem crescente da indústria alemã era financiada pelas grandes companhias norte-americanas. A situação precipitou-se em meados dos anos 20 pois a Ufa quase chegou à bancarrota devido em parte aos custos de produção de Metropolis. Com a economia estabilizada, as dívidas contraídas tinham de ser pagas com dinheiro vivo que a Ufa não tinha. A Paramount interveio e a empresa foi salva. Mas o destino estava traçado para a produtora alemã, que entrou em lento declínio até ser finalmente tomada pelos nazis em 1933, ganhando então notoriedade com filmes de propaganda política, como Kolberg (1945) de Veit Harlan. A empresa viria a ser desmantelada em 1945, refundada na década de 1950 e posteriormente controlada por Bertelsmann.
Metropolis (ii)
A existência de Metropolis foi, desde o início, muito conturbada. Já desde a década de 1920, o filme foi sendo sujeito a sucessivas truncagens e adaptações e só por muito pouco é que não foi completamente destruído. Longe de assegurar uma maior potencialidade comercial, como era seu propósito, os cortes efectuados vieram apenas destruir a coesão narrativa no filme e aumentar a confusão. Actualmente, já não restam cópias do original estreado em 1927. A recuperação de Metropolis tem por isso constituído uma espécie de Santo Graal de arquivistas e restauradores em todo o mundo.
As metamorfoses do filme de Lang ao longo dos tempos foram tão radicais, que melhor seria falarmos de Metropolis como não um, mas vários filmes de diferentes autores. Com efeito, a que obra nos referimos quando falamos de Metropolis? O original filmado por Fritz Lang em Berlim no ano de 1926 e só aí exibido no início de 1927? A versão americana encurtada, remontada e com novos títulos, da responsabilidade de Channing Pollock? A segunda versão alemã, à imagem do modelo americano, que podia ser vista na Alemanha em finais de 1927? Esta mesma versão, novamente encurtada e com diferentes inter-títulos ingleses, que o Museu de Arte Moderna em Nova Iorque tornou acessível aos cinéfilos de muitos países desde antes da Segunda Grande Guerra? A versão sonora alemã dos anos 60, que remonta à anterior? A tentativa de reconstrução feita nesta altura pelo Museu do Cinema da então República Democrática Alemã? A interpretação pós-moderna de Giorgio Moroder colorida e musicada de 1984? A versão de Munique disponível em vídeo? O videoclip de Madonna Express Yourself?
A história das mutações de Metropolis remonta a Dezembro de 1925, quando produtores americanos mostravam grande interesse na Ufa: isto porque os problemas financeiros desta empresa ofereciam uma excelente oportunidade de enfraquecer o grande rival. Representantes da MGM e Paramount deslocaram-se a Berlim e negociaram um acordo no qual a Ufa obtinha um empréstimo de 4 milhões de dólares. Em contrapartida, a Ufa reservava uma quota de 75% do seu cinema para produções americanas e era obrigada a distribuir vinte filmes de cada contraparte por ano, para o que foi fundada a distribuidora Parufamet. Acresce que a Universal garantia à Ufa um empréstimo de 275 mil dólares, para o que a empresa tinha de aceitar cinquenta filmes da Universal por ano. Apesar de a Ufa ver reconhecido o acesso ao mercado americano como moeda de troca, não havia dúvida que estes contratos da Parufamet e Universal representavam a rendição incondicional da Ufa aos seus competidores americanos.
Ora, quando Metropolis foi distribuído em 1927, o contrato Parufamet assegurava que a Paramount e a MGM teriam um controlo considerável sobre a versão que seria exibida nos ecrãs americanos. Porque Pommer havia abandonado a Ufa no início de 1927 por entre acusações de negligência financeira, não havia nenhum dirigente criativo que impedisse a adulteração da produção. Os distribuidores americanos tinham portanto plena liberdade para «adaptar» o filme de forma a torná-lo mais apetecível ao gosto do seu público. A Parufamet comissionou o escritor Channing Pollock (juntamente com a sua equipa Julian Johnson e Edward Adams) para remodelar o filme, e o distribuidor não fez segredo das revisões. Também as alterações de Pollock suscitaram reacções ambíguas. A 13 de Março de 1927, o New York Times publicava mesmo um artigo descrevendo os grandes cortes efectuados de forma a tornar o filme mais apelativo; estas «revisões» foram mesmo «tidas como necessárias» e os produtores alemães acusados de revelarem uma «falta de interesse na verosimilhança dramática ou uma inacreditável ineptitude». Enquanto que a Variety de 16 de Março de 1927 elogiava os novos títulos de Pollock como tendo «uma dignidade de linguagem que em muito contribui para a espectacularidade do conjunto», outros comentadores viram as alterações como uma grande desvantagem, uma vez que os títulos eram vistos apenas como razoáveis e para o fim bastante estúpidos pelo seu reiterado sentimentalismo.
As mudanças de Pollock resultaram numa diminuição das 17 bobinas originais para apenas 10, reduzindo a sua dimensão original de 4.189 metros para apenas 2.841 metros, o que corresponde a 107 minutos de tempo de exibição. Ao americano é devida a remoção de todas as cenas do Clube Yoshiwara, onde o robot surge como uma vamp sedutora; quem sabe, talvez por julgar que as festas regadas a álcool aí celebradas não se compadeciam com o espírito dos tempos do proibicionismo americano. Foram também cortadas as cenas no Estádio Olímpico. Os cortes inflingidos eram tão consideráveis, que foi mesmo necessário criar novos inter-títulos, prontamente fornecidos por Pollock, do que resultaram mudanças a nível do enredo: não só um abafamento das questões sociais abordadas no filme, como também a mudança dos nomes das personagens e com isso a perda do seu simbolismo religioso (Joh / Jeová, Freder / pai e irmão, Maria / mãe e santa).
As alterações mais decisivas verificaram-se a respeito de um episódio fundamental do romance e filme original: a relação entre Rotwang, o inventor, e Fredersen, o líder da cidade. Na versão americana, Rotwang é uma caricatura do típico cientista louco com um ódio inexplicável por Fredersen e uma natureza intrinsecamente maligna e viciosa, uma caracterização que esbarra com a interpretação de Klein-Rogge, que frequentemente sugere uma alma atormentada, indecisa e remoída pelo desgosto. As formas femininas do robot não se justificam por nenhuma razão especial e Fredersen pede-lhe que tenha o rosto de Maria devido à iminente revolta dos operários. No romance e filme original, o líder da Cidade pretende incitar os trabalhadores à revolta (apesar de as suas verdadeiras motivações para tanto permanecerem ainda hoje mais ou menos inexplicadas); na versão americana revista, esta Maria artificial é utilizada para semear a discórdia entre os operários, mas por qualquer razão ignota, vira-se contra os seus criadores e prega a destruição, tornando por isso as suas acções perfeitamente arbitrárias. Na versão original, um dos planos cortados mostrava um belo busto feminino com o nome Hel, que em inglês se confunde com Hell (inferno); donde, a remoção da cena para evitar ambiguidades.
Estas modificações perturbaram gravemente a fluidez da narrativa. A misteriosa Hel desempenhava um papel fulcral: ela era a falecida mulher de Fredersen e mãe de Freder e havia tido uma relação amorosa com Rotwang; Fredersen fê-la abandoná-lo e tiveram um filho juntos, Freder. Contudo, Hel acabaria por falecer durante o parto. Rotwang sentiu-se traído e alimentou um ódio por Fredersen que resvalava para a insanidade; tornou-se igualmente obcecado em recriar Hel para si, ainda que apenas como uma escultura mantida no seu laboratório ou como um ser humano artificial - o robot que havia concebido. Na rebelião incitada pelo robot a sua vingança parece estar consumada: recriou Hel, que destrói a cidade de Fredersen; mas também tem pleno controlo sobre a mulher que julga tê-lo traído. Finalmente, ao dotar o robot do aspecto de Maria, ele poderá exercer a sua vingança não apenas sobre Fredersen mas também sobre o filho nascido de Hel e outro homem. A obra ganha assim novos contornos de uma história de ódio, crime e vingança, um tema central em toda a filmografia de Lang.
À época, Metropolis gerou igualmente uma série de diversas versões internacionais. Jornais ingleses da altura escrevem que o filme teria uma extensão de 3048 metros (ou 111 minutos), o que indica que uma outra versão estaria sendo preparada para o mercado britânico. Já o filme estreado em Portugal no ano de 1928 durava apenas 80 minutos. Estas mudanças profundas nas várias versões internacionais estavam longe de ser únicas; pelo contrário, espelham apenas as agressivas políticas de distribuição toleradas ou mesmo fomentadas pela Ufa e outras produtoras. De modo a aumentar as possibilidades de um filme no mercado internacional, as mudanças de títulos, nomes, inter-títulos e mesmo profundas revisões nas narrativas sem qualquer consideração pela coerência artística eram mais a regra que a excepção na década de 1920.
Quando veio o sonoro, Metropolis, como os outros filmes mudos, foi arrumado numa prateleira e só devido a alguns não foi pura e simplesmente queimado. Mas quando Hitler subiu ao poder e Lang se recusou a colaborar com o regime, as cópias deste e de outros filmes do autor foram destruídas. Quando no final dos anos 30, as cinematecas procuraram salvar o que restava do filme, não tinham mais que a versão truncada de Pollock; a partir dela se fizeram as cópias que circularam entre os anos 40 e os anos 80. Só que as obras-primas resistem a tudo e graças aos avanços tecnológicos e ao trabalho de homens como Enno Patalas, director da Cinemateca de Munique, inúmeros progressos foram feitos.
Não obstante, uma parte substancial de Metropolis parece estar irremediavelmente perdida: cerca de mil metros de película, aproximadamente mais de meia hora de filme, serão porventura irrecuperáveis. É o caso da sequência descrita por Balthasar no Blaues Heft de Fevereiro de 1927: «O operário [Nº 11711, depois de ter trocado de roupas com Freder] entra no carro. Uma jovem coquette passando num carro próximo - figura tremendamente sugestiva e maravilhosamente filmada - o anúncio de Yoshiwara, em suma um centro de prazer, fazem-lhe ferver o sangue.» Dois planos são descritos no cartão de censura do trailer promocional do filme: «Um jovem cobre-se de uma chuva de papéis» - folhetos publicitários de Yoshiwara - «em primeiro plano, um sem número de balões sobem nos ares e formam cabeças humanas; teclas de piano, casais de dançarinos, uma roleta, abraços, uma bailarina». Balthasar: «nos filmes 'absolutos' de Léger e Picabia, vimos já algo de semelhante aos efeitos especiais destes planos assombrosos, mas nada de tão brilhante, tão sintético, tão singular na sua caracterização reluzente e artificial.»
2004-11-10
Noite Escura
O explorador João Canijo propõe-nos, com o seu filme Noite Escura (2004), mais uma arrojada incursão no continente interminável do coração humano. Desta feita, o talentoso cineasta português enveredou pelo género trágico e foi buscar inspiração a um grandioso drama do grego Eurípides: Ifigénia em Áulis. Os fãs sempre tiveram uma admiração especial por esta tragédia do rei Agamémnon que, instigado pelos deuses, pela Grécia e pelos seus soldados, sacrifica a vida da sua própria filha. A pintura de sentimentos das diversas personagens é extraordinária: o amor à vida e heroísmo de Ifigénia, as hesitações dolorosas de Agamémnon, a dedicação feminina e maternal de Clitemnestra logo seguida do ódio ameaçador ao marido quando se sabe traída e a nobre altivez de Aquiles fizeram deste drama a maior obra-prima de Eurípides.
É muito significativo que tenha sido escolhida a tragédia grega. Trata-se, afinal, do «mais nobre e humano» dos géneros literários: nobre, porque fala de protagonistas que se precipitam na infelicidade em virtude não de uma culpa moral, mas de um erro; humano, porque humaniza e melhora os seus espectadores através do efeito trágico por excelência, que é o temor e compaixão por alguém que sofre. Canijo é, também ele, um notável tragediógrafo, pois tanto é o cineasta dos sentimentos mais elevados e nobres, como é o realizador do suor, do mofo, do sangue ressequido, dos escarros e doutros perfumes.
É também expressivo que o Autor escolhido tenha sido o grande Eurípides. O «poeta filósofo» foi, como todos os artistas inconformados, um homem profundamente incompreendido e injustiçado no seu tempo. A sua vida andou, infelizmente, envolta em ditos e anedotas que adulteraram a verdadeira fisionomia do poeta: a imagem cruel que dele nos dá Aristófanes é a de um homem de letras orgulhoso, solitário e confinado à sua gruta onde sonha e medita ao longo do dia «com os pés para o ar». A razão de tanta crispação estava sobretudo no seu desprezo pela tradição e pela mitologia nacional. Mas se esta sua ética fez de Eurípides um motivo de escárnio dos seus contemporâneos, foi também ela que assegurou a sua longevidade através dos séculos. Hoje, o fascínio pelo teatro euripidiano está mais actual que nunca e o realizador de Noite Escura sabe-o muito bem.
As afinidades entre as obras deste Eurípides e de João Canijo são tantas e tão flagrantes, que bem podemos afirmar, sem risco de exagero, que estamos perante uma das adaptações modernas mais rigorosas e verdadeiras de uma tragédia grega. Ambos os Autores são cronistas admiráveis das suas épocas, pois tal como Eurípides não ficou indiferente a coisa alguma do seu século e do seu meio, também Canijo é um excelente retratista do Portugal dos nossos dias. Ambos concedem primazia ao feminino, pois se Eurípides (que nada tinha de misógino e até nos faz simpatizar com as suas protagonistas mais controversas, como Fedra e Medeia) entregou à mulher o trono da sua tragédia, também o português nos deu Ana Bustorff (inesquecível em Sapatos Pretos!), Rita Blanco e Beatriz Batarda. Ambos são, enfim, artistas profundamente inovadores: o «filósofo do teatro» modificou os mitos mais do que qualquer outro tragediógrafo e transmutou notavelmente a concepção íntima do drama, enquanto que João Canijo engavetou gostosamente muitas das regras da gramática visual que aprendemos nas escolas de cinema.
O que parece afastar um pouco estes dois gigantes é o pessimismo incorrigível de João Canijo. Já Eurípides não é pessimista e a sua concepção da morte é prevalentemente optimista. Ifigénia, compreendendo a necessidade de sacrificar a sua vida para auxiliar a armada grega, consente em ser imolada à deusa Ártemis: com a sua morte, aplacará a deusa e conseguirá ventos favoráveis à frota dos Helenos. Mas enquanto que a vida da heroína euripidiana é salva no último instante, não há deus ex machina que valha à nova Ifigénia de Canijo: o seu sacrifício não só é completamente inútil, como deixará o mundo entregue à solidão mais desesperada e irremediável – a tal noite escura que dá o nome ao filme.
É muito significativo que tenha sido escolhida a tragédia grega. Trata-se, afinal, do «mais nobre e humano» dos géneros literários: nobre, porque fala de protagonistas que se precipitam na infelicidade em virtude não de uma culpa moral, mas de um erro; humano, porque humaniza e melhora os seus espectadores através do efeito trágico por excelência, que é o temor e compaixão por alguém que sofre. Canijo é, também ele, um notável tragediógrafo, pois tanto é o cineasta dos sentimentos mais elevados e nobres, como é o realizador do suor, do mofo, do sangue ressequido, dos escarros e doutros perfumes.
É também expressivo que o Autor escolhido tenha sido o grande Eurípides. O «poeta filósofo» foi, como todos os artistas inconformados, um homem profundamente incompreendido e injustiçado no seu tempo. A sua vida andou, infelizmente, envolta em ditos e anedotas que adulteraram a verdadeira fisionomia do poeta: a imagem cruel que dele nos dá Aristófanes é a de um homem de letras orgulhoso, solitário e confinado à sua gruta onde sonha e medita ao longo do dia «com os pés para o ar». A razão de tanta crispação estava sobretudo no seu desprezo pela tradição e pela mitologia nacional. Mas se esta sua ética fez de Eurípides um motivo de escárnio dos seus contemporâneos, foi também ela que assegurou a sua longevidade através dos séculos. Hoje, o fascínio pelo teatro euripidiano está mais actual que nunca e o realizador de Noite Escura sabe-o muito bem.
As afinidades entre as obras deste Eurípides e de João Canijo são tantas e tão flagrantes, que bem podemos afirmar, sem risco de exagero, que estamos perante uma das adaptações modernas mais rigorosas e verdadeiras de uma tragédia grega. Ambos os Autores são cronistas admiráveis das suas épocas, pois tal como Eurípides não ficou indiferente a coisa alguma do seu século e do seu meio, também Canijo é um excelente retratista do Portugal dos nossos dias. Ambos concedem primazia ao feminino, pois se Eurípides (que nada tinha de misógino e até nos faz simpatizar com as suas protagonistas mais controversas, como Fedra e Medeia) entregou à mulher o trono da sua tragédia, também o português nos deu Ana Bustorff (inesquecível em Sapatos Pretos!), Rita Blanco e Beatriz Batarda. Ambos são, enfim, artistas profundamente inovadores: o «filósofo do teatro» modificou os mitos mais do que qualquer outro tragediógrafo e transmutou notavelmente a concepção íntima do drama, enquanto que João Canijo engavetou gostosamente muitas das regras da gramática visual que aprendemos nas escolas de cinema.
O que parece afastar um pouco estes dois gigantes é o pessimismo incorrigível de João Canijo. Já Eurípides não é pessimista e a sua concepção da morte é prevalentemente optimista. Ifigénia, compreendendo a necessidade de sacrificar a sua vida para auxiliar a armada grega, consente em ser imolada à deusa Ártemis: com a sua morte, aplacará a deusa e conseguirá ventos favoráveis à frota dos Helenos. Mas enquanto que a vida da heroína euripidiana é salva no último instante, não há deus ex machina que valha à nova Ifigénia de Canijo: o seu sacrifício não só é completamente inútil, como deixará o mundo entregue à solidão mais desesperada e irremediável – a tal noite escura que dá o nome ao filme.
2004-11-06
O senhor da Mundiporta
Esta semana, um senhor da empresa Mundiporta consertou-me em alguns minutos o controlo remoto da entrada da garagem e fê-lo (pasme-se!) sem cobrar um cêntimo que fosse. Gostaria por isso de deixar aqui ao generoso técnico um muito obrigado pela sua eficiência e por ter restaurado a minha esperança na espécie humana.
2004-11-05
Kiss Me
Ai, ai, a Marisa Cruz! Vejam só que fresca vai ela, esvoaçando como uma brisa mais os seus olhos azuis, tailleurs cereja e vestidos de noiva. Como se colam à moça os nossos olhares de espanto sempre que passa ligeira na rua! O seu primeiro filme foi realizado por António da Cunha Telles, com diálogos soberbamente escritos pelo nosso Possidónio Cachapa (e outros) e intitula-se, algo redundantemente, Kiss Me.
2004-11-02
Alquimia
A alquimia é uma fonte inesgotável de fascínio e encantamento. Nenhum tema intrigou tanto e tão profundamente os sábios de todas as épocas e latitudes como a transmutação dos metais. Grandes pensadores como São Tomás de Aquino ou Isaac Newton dedicaram-lhe todo o seu talento e sabedoria. A literatura e as artes abraçaram-na desde sempre. A ciência moderna tem vindo, enfim, a demonstrar que muitos dos seus antigos ensinamentos são afinal verdadeiros e rigorosos. Tudo isto não significa, porém, que a arte de Hermes seja hoje um saber generalizado e facilmente acessível a todos ou que a Pedra Filosofal se tenha convertido numa espécie de bem do domínio público. Bem pelo contrário, a alquimia continua tão obscura e enigmática como nos tempos remotos de Hermes Trismegisto ou Maria a Profetisa.
A alquimia é uma arte divina, a mais valiosa das dádivas de Deus, e só deve ser praticada pelos adeptos sinceros e de coração puro. A sua Pedra Filosofal é a verdadeira quinta-essência universal, capaz de transmutar todos os metais em ouro; é também designada Medicina Universal ou Panaceia, pois remove as causas últimas das doenças, e Fonte da Juventude, pois ela é o bálsamo da Natureza que rejuvenesce o corpo e prolonga a vida para além da sua duração normal – é aliás curioso sublinhar que todos os verdadeiros alquimistas tiveram vidas invulgarmente longas para as suas épocas. Ora, é facilmente compreensível que um bem dessa grandeza não deva cair nas mãos erradas e que a alquimia seja por isso cuidadosa na ocultação dos seus segredos. «Tenho o mundo nas minhas mãos» é uma afirmação recorrentemente ouvida na boca dos poucos que conseguiram aceder ao milagre da transmutação. Conta-se que já em Junho de 1937, o escritor francês Jacques Bergier foi visitado por um estranho alquimista que, antes de ter desaparecido tão misteriosamente como surgiu, o alertou para os perigos da energia nuclear. Aliás, a desintegração do átomo e a investigação atómica foram já consideradas como uma «anti-alquimia» e a bomba atómica como «o oposto à Pedra Filosofal».
A arte alquímica inspirou numerosos livros, mas nenhum deles fala com clareza. Porque os adeptos sempre recearam as acusações de heresia ou os raptos por homens poderosos que os forçassem a produzir ouro, a simbologia desempenha um papel central nos seus escritos e imagens. Diz-se que estes textos «ocultam segredos abertamente», pois enquanto que os versados conseguem discernir o seu significado com clareza, todas as outras pessoas não vêem senão amontoados desconexos de palavras: para além dos símbolos caracteristicamente alquímicos, como o Leão Verde ou o Ouroboros, abundam os enigmas, os trocadilhos e assonâncias. É a chamada Linguagem dos Pássaros ou Linguagem Verde.
Vários filósofos herméticos têm sugerido um método que o estudioso sério pode utilizar como um fio de Ariane para encontrar um caminho através desta obscuridade labiríntica da linguagem alquímica: seleccionar os melhores livros; lê-los e relê-los, comparando os trechos onde eles concordam, pois aí há verdade para ser encontrada. Comparar também onde diferem e como diferem, pois mais descobertas serão feitas. Suspeitar sempre que eles pareçam falar com mais clareza e simplicidade; e meditar nas passagens em que são mais obscuros. Deste modo, o padrão da verdade emergirá gradualmente, tal como a marca de água de um papel colocado defronte da luz.
Só os livros, porém, não chegam. A teoria deve preceder a prática, mas a prática deve, por sua vez, testar a teoria. Apesar de alguns entendimentos em sentido contrário, como os de Jung ou Mary Ann Atwood, a verdade é que não pode haver alquimia sem operações físicas, tal como não pode haver peixes sem água. O laboratório é o local onde o alquimista realiza essas operações e dele devem constar os aparelhos essenciais à realização da Grande Obra, designadamente o forno, designado atanor, o ovo filosófico e a tigela; e como o fogo do forno deverá estar permanentemente aceso, é também indispensável um tubo de evacuação e uma chaminé, sendo pois necessário que a divisão utilizada, que tanto pode ser a cozinha, a cave ou outra qualquer, possua tais equipamentos. A esta divisão deve acrescer o oratório, lugar reservado às preces e à meditação – ainda que, por razões de espaço, nem sempre seja fácil instalá-lo. Note-se, aliás, que a palavra laboratorium é composta precisamente de labor e oratorium, pois o laboratório do alquimista é destinado em igual medida ao trabalho e à oração.
Um laboratório que acabou por se tornar célebre foi o do alquimista inglês John Kellerman, que Sir Richard Phillips descreveu no seu livro A Personal Tour Through the United Kingdom (1928). Phillips fala de uma casa isolada e extremamente desarrumada, repleta com os instrumentos e recipientes habituais. Apenas uma divisão era ocupada por Kellerman; todas as outras estavam fechadas a cadeado e tinham as janelas barricadas. John Kellerman contou que tinha conseguido produzir ouro e que se tinha oferecido para pagar a dívida externa do país: uma oferta que o Lorde Liverpool recusou em nome do rei. Idêntica oferta tinha sido feita ao governo francês, que também recusou. Afirmou ainda que todos os governos europeus sabiam da sua descoberta e que já tinha sido alvo de várias tentativas de assassinato, pelo que tinha todas aquelas preocupações com a segurança pessoal e andava sempre armado. Pouco tempo após a visita de Phillips, Kellerman desapareceu misteriosamente e nunca mais foi visto.
John Kellerman não é um caso único. Os alquimistas são seres forçosamente tímidos, esquivos e discretos – o que, nos nossos dias de mediatismo desenfreado, pode parecer particularmente excêntrico. Muitos Autores formularam listas dessas e doutras qualidades que devem possuir os verdadeiros alquimistas e que os distinguem dos intrujões comummente chamados de assopradores – uma referência aos foles que eram utilizados para manter aceso o fogo nos laboratórios. Um daqueles Autores foi Alberto o Grande, que resumiu no seu tratado De Alchimia as virtudes dos verdadeiros adeptos: ele deve ser discreto, calado e não revelar a ninguém o resultado do seu trabalho; ele deve morar sozinho numa casa isolada; ele deve escolher os dias e horas que lhe permitam trabalhar com discrição; ele deve possuir paciência, diligência e perseverança; ele deve realizar a obra segundo as regras previamente estabelecidas; ele deve usar apenas recipientes de vidro ou de barro envernizado; ele deve ser suficientemente rico para suportar as despesas da sua arte; ele deve evitar quaisquer contactos com príncipes e nobres. Este último preceito é particularmente importante, pois a relação entre alquimistas e poder político foi sempre conturbada. Já em 144 a.C., o Imperador chinês emitia um decreto proibindo expressamente a produção de ouro, no que foi mais tarde seguido pelo Imperador Diocleciano de Roma em 296 d.C., pelo Papa João XXII na sua bula de 1317 ou por Henrique IV de Inglaterra no ano de 1403.
Esta perseguição secular aos alquimistas esteve também na origem das suas viagens constantes e Portugal, país místico por excelência, foi um ponto de paragem preferencial. O grande Paracelso, que aos 14 anos deixou a casa paterna e começou uma série interminável de viagens para conquistar os seus graus na «Universidade Universal», também por cá passou, talvez em 1518. Outros alquimistas insignes como Arnaldo de Vilanova, Nicolau Flamel, Bernardo-o-Trevisano ou Raimundo Lúlio também deixaram a sua marca junto dos adeptos portugueses. O mais célebre destes será o «Rei Alphonso de Portugal», que surge referido como autor de dois tratados sobre alquimia e que se julga ser Afonso V: um rei culto, místico, cavaleiro e perdulário, que ficou a dever o seu cognome de O Africano às suas incursões contra os muçulmanos em África. Num desses textos, o rei sublinha o carácter cifrado e misterioso da linguagem alquímica e apela à discrição de todos quantos a consigam compreender.
Será então que todos estes escolhos devem demover os iniciantes da grande viagem alquímica? Sir Francis Bacon gostava de contar a este propósito a fábula do pai que deixou uma propriedade aos seus filhos dizendo que nela se encontrava um tesouro. Os filhos cavaram por todo o lado durante largas semanas sem nada encontrar, mas o campo assim trabalhado tornou-se muito mais fértil porque… era esse o tesouro! Ora, segundo este Autor, o mesmo sucede com a alquimia. A Pedra Filosofal está em toda a parte e ao alcance de todos, ricos ou pobres. Aceder-lhe é mais simples do que parece, mas exige do viajante perseverança, humildade e um espírito aberto ao maravilhoso por detrás das coisas do quotidiano. Sujeitemo-nos por isso com paciência a esta provação, que é na realidade uma iniciação: «apressa-te lentamente, pois a precipitação é obra do Diabo».
2004-10-27
Toque de classe
O melhor blogue que existe sobre cinema é o excelente Touch Of Evil e o seu criador chama-se Rui Silva.
2004-10-25
Morais Sarmento
O Ministro Morais Sarmento é, para os antropólogos e estudiosos da cultura, um objecto de estudo fascinante, pois reúne todos os defeitos do chamado homem moderno. Sarmento é seco, seguro de si, arrogante, presunçoso, convencido da sua boa fé e da sua inocência, regrado, agressivo, autoritário, egoísta, incapaz de compreender os outros, sedento de sucesso e um pouco megalómano. No debate parlamentar sobre a televisão, foi o que se viu, quando o Ministro alertou para as «perversidades» da «independência excessiva» da RTP e defendeu que deve ser o Governo a definir o modelo da sua programação, uma vez que é o Executivo que responde pelas decisões adoptadas na estação pública. Incoerências e inconstitucionalidades à parte, que competências ou legitimidade tem ele para vir agora falar de serviço público e interesse cultural? É que, excepção feita ao consumo de drogas confesso e à carreira de pugilista, não se lhe reconhece grande currículo na matéria.
Uma viagem com João Barrento
O Professor João Barrento é um senhor de barbas cinzentas, cordato e afável, a quem devemos as melhores traduções portuguesas que por aí andam da boa literatura alemã. Esta semana, tivemos o prazer, a sorte e a honra de poder ouvi-lo na Expolíngua Portugal, no Fórum Picoas de Lisboa. A conferência que aí proferiu, intitulada Viagem à memória de viagens - Imagens de Portugal em autores alemães contemporâneos, inscreveu-se na chamada imagologia: o estudo das imagens que os outros fazem de nós e nós deles. Durante uma hora cheia, Barrento foi um guia seguro num percurso pela obra e pensamento de alguns dos escritores alemães que o nosso País inspirou: Schneider, Fichte, Jünger, Weiss, Eich, Meyer-Clason, Helga Novak, o incontornável Grass, entre outros.
2004-10-15
Mais Marcelo
Ainda a propósito do caso Marcelo, há agora uma tendência extraordinária de opinião entre alguns blogues segundo a qual a vítima é o Ministro censor e não o comentador censurado. O raciocínio destas cabeças é pouco claro, mas parece resumir-se ao seguinte: que é perfeitamente aceitável que seja afastado um comentador, ouvido e respeitado por milhões de pessoas, apenas porque incomodou um Ministro; que é também normal que o mesmo Ministro, a ter razões de queixa, tenha recorrido a semelhante expediente e não aos tribunais; que Marcelo não pode comentar nada desacompanhado de um contraditor (coisa que, aliás, esses blogonautas não têm, tal como Santana Lopes não tinha nos seus tempos de opinador); e que incidentes como a censura de Marcelo, o bloqueio às activistas holandesas pró-aborto e o exílio dos bonecos da Contra-Informação da RTP para horários indecentes são apenas uma sucessão de coincidências inocentes. Bom senso para quê? Qualquer dia, pode ser que estes mesmos blogonautas se manifestem em solidariedade com os fascistas pela invasão da Etiópia ou com a Bruxa Má pelo envenenamento da Branca de Neve.
2004-10-12
Alberto João Jardim
Hoje, gostaria de aproveitar esta crónica (detesto o termo post, é tão impessoal!) para contar uma história pequena e rigorosamente verdadeira a propósito do nosso Alberto João Jardim. A ideia foi-me instigada por alguns comentários maldosos e injustos que se podem ler na blogosfera a respeito do Presidente madeirense, que pelos vistos muitos só conhecem das parangonas – nem sempre verdadeiras – dos nossos tablóides. Jornalistas, opinadores e intelectualidade do Continente gostam de falar, sempre em tom de altivez desdenhosa e cheios de superioridade moral, de um pequenito tirano malcriado, prepotente e beberrão e tal, mas será que as coisas são mesmo assim como dizem?
Tudo começou há um punhado de anos atrás, quando eu ainda era um advogado estagiário tímido, inexperiente e sobretudo jovem. Eu era o defensor de turno no Tribunal de Comarca do Funchal, quando me chegou subitamente às mãos um processo judicial curioso: o meu cliente (cujo nome não revelarei, por razões óbvias) era um homem humilde e de poucas posses e estava nessa tarde de tal modo nervoso que não dizia coisa com coisa. Não faz mal, esperamos pela audiência para que se esclareça tudo. Entra o juiz, começam os trabalhos e a surpresa é espantosa: do outro lado do litígio, estão nada mais nada menos que Alberto João Jardim e um seu colaborador (cujo nome também não revelarei, por razões igualmente óbvias)!
Na manhã seguinte, a minha estratégia é conseguir que os dois ilustres proponentes desistam da acção. Mas será possível fazê-lo num prazo exíguo de algumas horas? Telefono para a residência oficial do Governo e imaginem o espanto da voz do outro lado quando digo: «olhe, faz favor, queria falar com o Dr. Alberto João Jardim». Como eu nem sequer dispunha de um faxe, lá fui a correr para expor pessoalmente o caso aos chefes de gabinete, todos com cara de espanto face à audácia do jovem causídico. Durante a tarde, o suspense é insuportável. Felizmente, tudo acabará em bem: os queixosos acedem aos meus pedidos, o cliente é absolvido e o processo é resolvido da forma mais civilizada possível, como sempre sucede entre pessoas de bem. Surpreendidos? Afinal, talvez Jardim não seja o filho da mãe arrogante que alguns julgam…
Tudo começou há um punhado de anos atrás, quando eu ainda era um advogado estagiário tímido, inexperiente e sobretudo jovem. Eu era o defensor de turno no Tribunal de Comarca do Funchal, quando me chegou subitamente às mãos um processo judicial curioso: o meu cliente (cujo nome não revelarei, por razões óbvias) era um homem humilde e de poucas posses e estava nessa tarde de tal modo nervoso que não dizia coisa com coisa. Não faz mal, esperamos pela audiência para que se esclareça tudo. Entra o juiz, começam os trabalhos e a surpresa é espantosa: do outro lado do litígio, estão nada mais nada menos que Alberto João Jardim e um seu colaborador (cujo nome também não revelarei, por razões igualmente óbvias)!
Na manhã seguinte, a minha estratégia é conseguir que os dois ilustres proponentes desistam da acção. Mas será possível fazê-lo num prazo exíguo de algumas horas? Telefono para a residência oficial do Governo e imaginem o espanto da voz do outro lado quando digo: «olhe, faz favor, queria falar com o Dr. Alberto João Jardim». Como eu nem sequer dispunha de um faxe, lá fui a correr para expor pessoalmente o caso aos chefes de gabinete, todos com cara de espanto face à audácia do jovem causídico. Durante a tarde, o suspense é insuportável. Felizmente, tudo acabará em bem: os queixosos acedem aos meus pedidos, o cliente é absolvido e o processo é resolvido da forma mais civilizada possível, como sempre sucede entre pessoas de bem. Surpreendidos? Afinal, talvez Jardim não seja o filho da mãe arrogante que alguns julgam…
Bem-vinda, Catherine Breillat!
Hoje, a cineasta Catherine Breillat visitou Lisboa e trouxe consigo mais um filme controverso: Anatomie de l'enfer, com Amira Casar e o ex-actor porno Rocco Siffredi. Goste-se ou não, todos temos de saudar as imagens audaciosas desta realizadora, para quem «a pornografia não existe» e com quem, no final da sessão, pudemos trocar algumas palavras bem simpáticas. Numa terra cada vez mais intolerante como é a nossa, a vinda de Breillat foi uma lufada de ar fresco.
2004-10-10
Algumas banalidades a propósito do caso Marcelo
Conheci pessoalmente Marcelo Rebelo de Sousa aquando da minha passagem pela Faculdade de Direito de Lisboa e guardo impressões ambíguas a respeito do multifacetado professor. Aqui, há que fazer distinções. O Marcelo-pessoa é um ser cordato, afável, educado e generoso, que se dá bem com toda a gente. O Marcelo-docente, sábio e íntegro, é unanimemente adorado por todos: não é por acaso que os alunos enchem todo o amplo Anfiteatro 1 da Faculdade durante as suas aulas teóricas. Já o Marcelo-comentador, apesar da extensão do seu saber, é demasiado comprometido para o meu gosto e até falho de algum bom senso: por exemplo, a respeito do escândalo da Casa Pia, foi sempre um apoiante declarado de Souto Moura (excepção feita ao escândalo das cassetes) e demasiado brando na apreciação dos dislates do juiz Rui Teixeira. Mesmo assim, sou daqueles que lamentam o seu afastamento da tribuna do Jornal Nacional da TVI.
E que se pode dizer a respeito deste caso Marcelo? Algumas conclusões foram tão óbvias e regurgitadas tantas vezes que já se converteram em banalidades: que não estamos apenas perante uma inocente questão interna na vida de uma empresa privada; que Santana Lopes deve um pedido de desculpas ao país; e que, ao contrário do que afirmou Luís Filipe Menezes, não houve nenhum exagero da parte de Marcelo, pois nenhuma outra saída restava a uma pessoa digna e livre. Se algum mérito tudo isto teve, terá sido apenas o de inspirar algumas das palavras mais eloquentes dos nossos melhores comentadores. Pacheco Pereira escreveu que «calar Marcelo seria um atentado efectivo à liberdade de expressão no seu conjunto e um péssimo sinal para a saúde da nossa democracia». Eduardo Prado Coelho afirmou que «não basta ser-se do partido do Governo, é preciso aparecer como porta-voz do pensamento do Governo. O que a médio prazo pode levar à esquizofrenia, dado que o Governo tem em si pensamentos diversos, e o próprio Santana Lopes pensa coisas diferentes no mesmo dia (o que mostra como é um espaço de liberdade e pluralismo)». Na blogosfera, podemos ler outras opiniões acertadas aqui, aqui e aqui.
E que se pode dizer a respeito deste caso Marcelo? Algumas conclusões foram tão óbvias e regurgitadas tantas vezes que já se converteram em banalidades: que não estamos apenas perante uma inocente questão interna na vida de uma empresa privada; que Santana Lopes deve um pedido de desculpas ao país; e que, ao contrário do que afirmou Luís Filipe Menezes, não houve nenhum exagero da parte de Marcelo, pois nenhuma outra saída restava a uma pessoa digna e livre. Se algum mérito tudo isto teve, terá sido apenas o de inspirar algumas das palavras mais eloquentes dos nossos melhores comentadores. Pacheco Pereira escreveu que «calar Marcelo seria um atentado efectivo à liberdade de expressão no seu conjunto e um péssimo sinal para a saúde da nossa democracia». Eduardo Prado Coelho afirmou que «não basta ser-se do partido do Governo, é preciso aparecer como porta-voz do pensamento do Governo. O que a médio prazo pode levar à esquizofrenia, dado que o Governo tem em si pensamentos diversos, e o próprio Santana Lopes pensa coisas diferentes no mesmo dia (o que mostra como é um espaço de liberdade e pluralismo)». Na blogosfera, podemos ler outras opiniões acertadas aqui, aqui e aqui.
2004-10-08
O excesso de poderes do Ministério Público
Uma das coisas mais irritantes no actual Procurador-Geral da República, Souto Moura, é a sua mania de falar por enigmas. Souto Moura, a Esfinge, gosta de falar à Imprensa e de aparecer, mas sempre que o faz, usa uma linguagem tão rebuscada e inacessível que faria empalidecer de espanto o mais hermético dos alquimistas. Talvez porque se não fosse assim, ficaria à vista de toda a gente o indivíduo arrogante, prepotente e vaidoso que ele na realidade é. Foi o que sucedeu aquando da sessão comemorativa (?) dos 25 anos do estatuto do Ministério Público, a propósito das críticas movidas pelo Presidente Jorge Sampaio.
As declarações de Sampaio reavivaram a velha polémica do excesso de poderes do Ministério Público em Portugal: após criticar o corporativismo dos agentes da justiça (todos, sem excepção), que «esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover», o Presidente acrescentou que «o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura de direitos fundamentais». E que teve Souto Moura a dizer a este respeito? Como é do seu timbre, a Esfinge mostrou-se avessa a tudo o que seja mudança, pois «devemos preservar esta estrutura de que fomos pioneiros». Acrescentou mesmo que as «democracias inteligentes do centro da Europa procuram o nosso modelo», pelo que devemos concluir que as democracias que não seguem o dito modelo, como as anglo-saxónicas, são estúpidas!
Na sua concepção tradicional, o Ministério Público era um mero departamento do poder executivo, hierarquicamente subordinado ao governo; os seus membros não eram por isso considerados como magistrados equiparados aos juízes ou magistrados judiciais, mas sim como agentes administrativos equiparados no essencial aos funcionários públicos; não ocupava um lugar destacado no organograma do sistema judicial; não havia uma carreira privativa dos seus agentes; o seu dirigente máximo, o Procurador-Geral da República, não possuía um estatuto especial ou notoriedade pública, pois era apenas um dos altos funcionários do Ministério da Justiça; enfim, não gozava de autonomia face ao governo e os seus agentes formavam uma hierarquia administrativa dirigida pelo Procurador-Geral, que por sua vez dependia do Ministro da Justiça.
Com a Constituição de 1976, o legislador reagiu contra os excessos de centralização e concentração de poderes praticados pela Ditadura e, com isso, o Ministério Público veio a conquistar um conjunto de novos poderes. A expansão desses poderes foi, porém, desmesurada. No essencial, a Constituição consagrou-lhe um capítulo próprio; equiparou-o à magistratura judicial, atribuindo-lhe estatuto próprio e chamando aos seus agentes «magistrados»; estabeleceu que a nomeação, promoção e colocação destes magistrados, bem como a acção disciplinar sobre eles, deixou de pertencer ao governo e passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da República, num claro regime de auto-governo profissional. A legislação ordinária foi ainda mais longe e conferiu-lhe um regime de autonomia em relação aos órgãos de poder central, regional e local; desvinculou-o da obediência hierárquica ao governo; construiu uma carreira de magistrados paralela à magistratura judicial e dela independente; e permitiu-lhe exercer funções próprias do poder judicial, bem como passar a controlar, em substituição do Ministro da Justiça, a Polícia Judiciária.
Estas alterações suscitam um número infindável de problemas, interrogações e perplexidades, sobretudo no campo jurídico-penal – que não é o domínio exclusivo da actuação do Ministério Público, mas é a sua face mais visível. Serão referidos dois pontos em particular: a invasão da esfera das atribuições dos tribunais; e a assunção de poderes de investigação criminal.
Quanto à invasão de atribuições dos tribunais, a inconstitucionalidade é flagrante: porque viola o princípio da separação de poderes; porque origina grandes promiscuidades entre juízes e procuradores, que na prática discutem e decidem entre si os processos, no segredo dos respectivos gabinetes e sem a presença dos advogados («uma mão lava a outra»); porque gera desigualdades tremendas entre acusação e defesa, num processo penal que deveria ser pautado pela igualdade de armas e lealdade. Tão flagrante é essa ingerência, que a lei chega a mesmo a conceder ao Ministério Público a possibilidade de decidir na determinação da medida concreta das penas, que deveria ser o último reduto dos poderes cometidos aos juízes: o Código de Processo Penal atribui-lhe a possibilidade de remeter determinados processos-crimes para julgamento por um tribunal singular, se entender que não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.
Este estado de coisas tem produzido resultados graves ao nível da tutela dos direitos fundamentais, como salientou Sampaio na sua intervenção. A presunção de inocência cai por terra e na prática inverte-se o ónus da prova: uma acusação equivale a uma condenação e, em vez de caber ao Estado a incumbência de provar culpas, passa a ser o arguido quem deve demonstrar a sua inocência. E ai daquele que não consiga comprovar, com assinaturas reconhecidas notarialmente e tudo, todos os passos que deu em todos os dias do ano, pois bastará um procurador sem escrúpulos e um punhado de depoimentos acusadores para encarcerá-lo durante mais de um ano e sem direito a julgamento – lembram-se de Carlos Cruz?
A assunção pelo Ministério Público de poderes de investigação criminal e a colocação da Polícia Judiciária sob o seu controlo e fiscalização têm também gerado inúmeros problemas: ineficiência na perseguição dos criminosos, confusão orgânica, sobreposição funcional e conflitos permanentes. No processo da Casa Pia, a descoordenação foi evidente. Antes da escandalosa detenção de Carlos Cruz, a Procuradoria foi avisada pela Polícia Judiciária da fragilidade das provas acusatórias. Um relatório de Artur Pereira, director da Directoria de Lisboa da PJ, referiu então a exiguidade de provas e ausência de elementos básicos em qualquer investigação, nomeadamente «as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos, a falta de realização […] de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e a análise dos próprios telemóveis» (in Jornal de Notícias de 27.06.2004, pág. 8). Não obstante, o procurador João Guerra afastou qualquer intervenção da Judiciária, no que foi apoiado por Souto Moura.
As declarações de Sampaio reavivaram a velha polémica do excesso de poderes do Ministério Público em Portugal: após criticar o corporativismo dos agentes da justiça (todos, sem excepção), que «esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover», o Presidente acrescentou que «o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura de direitos fundamentais». E que teve Souto Moura a dizer a este respeito? Como é do seu timbre, a Esfinge mostrou-se avessa a tudo o que seja mudança, pois «devemos preservar esta estrutura de que fomos pioneiros». Acrescentou mesmo que as «democracias inteligentes do centro da Europa procuram o nosso modelo», pelo que devemos concluir que as democracias que não seguem o dito modelo, como as anglo-saxónicas, são estúpidas!
Na sua concepção tradicional, o Ministério Público era um mero departamento do poder executivo, hierarquicamente subordinado ao governo; os seus membros não eram por isso considerados como magistrados equiparados aos juízes ou magistrados judiciais, mas sim como agentes administrativos equiparados no essencial aos funcionários públicos; não ocupava um lugar destacado no organograma do sistema judicial; não havia uma carreira privativa dos seus agentes; o seu dirigente máximo, o Procurador-Geral da República, não possuía um estatuto especial ou notoriedade pública, pois era apenas um dos altos funcionários do Ministério da Justiça; enfim, não gozava de autonomia face ao governo e os seus agentes formavam uma hierarquia administrativa dirigida pelo Procurador-Geral, que por sua vez dependia do Ministro da Justiça.
Com a Constituição de 1976, o legislador reagiu contra os excessos de centralização e concentração de poderes praticados pela Ditadura e, com isso, o Ministério Público veio a conquistar um conjunto de novos poderes. A expansão desses poderes foi, porém, desmesurada. No essencial, a Constituição consagrou-lhe um capítulo próprio; equiparou-o à magistratura judicial, atribuindo-lhe estatuto próprio e chamando aos seus agentes «magistrados»; estabeleceu que a nomeação, promoção e colocação destes magistrados, bem como a acção disciplinar sobre eles, deixou de pertencer ao governo e passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da República, num claro regime de auto-governo profissional. A legislação ordinária foi ainda mais longe e conferiu-lhe um regime de autonomia em relação aos órgãos de poder central, regional e local; desvinculou-o da obediência hierárquica ao governo; construiu uma carreira de magistrados paralela à magistratura judicial e dela independente; e permitiu-lhe exercer funções próprias do poder judicial, bem como passar a controlar, em substituição do Ministro da Justiça, a Polícia Judiciária.
Estas alterações suscitam um número infindável de problemas, interrogações e perplexidades, sobretudo no campo jurídico-penal – que não é o domínio exclusivo da actuação do Ministério Público, mas é a sua face mais visível. Serão referidos dois pontos em particular: a invasão da esfera das atribuições dos tribunais; e a assunção de poderes de investigação criminal.
Quanto à invasão de atribuições dos tribunais, a inconstitucionalidade é flagrante: porque viola o princípio da separação de poderes; porque origina grandes promiscuidades entre juízes e procuradores, que na prática discutem e decidem entre si os processos, no segredo dos respectivos gabinetes e sem a presença dos advogados («uma mão lava a outra»); porque gera desigualdades tremendas entre acusação e defesa, num processo penal que deveria ser pautado pela igualdade de armas e lealdade. Tão flagrante é essa ingerência, que a lei chega a mesmo a conceder ao Ministério Público a possibilidade de decidir na determinação da medida concreta das penas, que deveria ser o último reduto dos poderes cometidos aos juízes: o Código de Processo Penal atribui-lhe a possibilidade de remeter determinados processos-crimes para julgamento por um tribunal singular, se entender que não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.
Este estado de coisas tem produzido resultados graves ao nível da tutela dos direitos fundamentais, como salientou Sampaio na sua intervenção. A presunção de inocência cai por terra e na prática inverte-se o ónus da prova: uma acusação equivale a uma condenação e, em vez de caber ao Estado a incumbência de provar culpas, passa a ser o arguido quem deve demonstrar a sua inocência. E ai daquele que não consiga comprovar, com assinaturas reconhecidas notarialmente e tudo, todos os passos que deu em todos os dias do ano, pois bastará um procurador sem escrúpulos e um punhado de depoimentos acusadores para encarcerá-lo durante mais de um ano e sem direito a julgamento – lembram-se de Carlos Cruz?
A assunção pelo Ministério Público de poderes de investigação criminal e a colocação da Polícia Judiciária sob o seu controlo e fiscalização têm também gerado inúmeros problemas: ineficiência na perseguição dos criminosos, confusão orgânica, sobreposição funcional e conflitos permanentes. No processo da Casa Pia, a descoordenação foi evidente. Antes da escandalosa detenção de Carlos Cruz, a Procuradoria foi avisada pela Polícia Judiciária da fragilidade das provas acusatórias. Um relatório de Artur Pereira, director da Directoria de Lisboa da PJ, referiu então a exiguidade de provas e ausência de elementos básicos em qualquer investigação, nomeadamente «as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos, a falta de realização […] de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e a análise dos próprios telemóveis» (in Jornal de Notícias de 27.06.2004, pág. 8). Não obstante, o procurador João Guerra afastou qualquer intervenção da Judiciária, no que foi apoiado por Souto Moura.
2004-10-05
Werther
O realizador Max Ophuls é uma das personalidades mais reverenciadas pelos cinéfilos. Todos reconhecem a forma generosa como o criador de Lola Montès enriqueceu o cinema com a sua sabedoria, inteligência viva e sensibilidade cosmopolita. Porém, nem sempre foi um cineasta consensual: apesar da admiração entusiástica que desde cedo granjeou junto dos cinéfilos dos Cahiers, Ophuls é o exemplo acabado de criador cujo merecido reconhecimento só adveio após a sua morte. Falou-se demasiadas vezes de um cinema pretensamente antiquado e pueril, sem que se tivesse compreendido que a sua obra não abordava senão temas essenciais e intemporais: o amor, o prazer, o desejo. Ophuls lamentou muito particularmente a impaciência estética do grande público consumidor de cinema, o mesmo que visiona filmes como quem traz um cigarro à boca, «sem saber já se o fumam ou guardam enquanto falam».
O seu percurso biográfico foi igualmente atribulado: eterno judeu errante, Max Ophuls foi vítima da intolerância e viu-se muitas vezes constrangido a partir, tendo por isso repartido a sua vida pelos destinos mais diversos, como a Alemanha, a França ou os Estados Unidos. Os anos foram todavia generosos com Ophuls e o mundo parece finalmente ter redescoberto a obra e talento deste cineasta do movimento. A seu respeito, é frequentemente reaproveitada uma afirmação de Goethe referente a Mozart: «existe em todas as suas composições uma força criativa que tem atravessado sucessivas gerações e que não parece dever ficar esgotada num futuro próximo».
Um dos Autores por quem Ophuls sempre nutriu uma admiração profunda foi precisamente Johann Wolfgang Goethe, pelo que a decisão de filmar a sua obra-prima A Paixão do jovem Werther (Die Leiden des jungen Werther, 1774) é pouco surpreendente, mas nem por isso menos arrojada. Com efeito, este Werther assinala o nascimento do romance moderno na Alemanha e é, juntamente com Fausto, a obra mais lida de Goethe. O efeito que produziu no seu tempo foi inimaginável: se os leitores anónimos acolheram Werther com um entusiasmo febril, já muitos intelectuais e teólogos ortodoxos difamaram a obra por causa do seu pretenso enaltecimento do suicídio como «engodo de Satanás» e gritaram pelo censor. Seguiu-se uma série infindável de imitações, contrafacções e paródias.
A publicação do livro extravasou mesmo a esfera do estritamente literário para originar o que se designou como wertherismo, para uns uma moda e para outros uma verdadeira praga: copiava-se a indumentária de Werther, bebia-se por chávenas de porcelana decoradas com cenas idílicas retiradas do romance ou (pasme-se!) cometia-se suicídio à imagem do desafortunado protagonista. De facto, deu-se um considerável número de suicídios entre os leitores do romance, o que levou Goethe, aquando da segunda edição (1775), a antepor ao livro a advertência admoestadora: «Sê um homem, e não me sigas!». A influência do romance não se circunscreveu ao século XVIII e Werther perdurou como um desafio para as gerações vindouras, tendo a sua forma e conteúdo inspirado muitos autores dos séculos XIX e XX.
Werther foi também várias vezes adaptado ao cinema. A versão de Ophuls data de 1938 e é um prodígio de sensibilidade e inteligência: Goethe teria seguramente apreciado esta magnífica obra, que enverga com orgulho as marcas do talento do seu realizador! Um dos momentos mais inesquecíveis é a célebre sequência em que Lotte descobre e lê os versos apaixonados de Werther. O cauteloso travelling é um dos mais belos e expressivos de sempre e sublinha o carácter contido, não sensual da relação dos dois protagonistas, que nasce e existe através de um poema de amor. A subsequente recusa de Werther em beijar a mulher que diz amar sublinha esta singularidade do relacionamento entre ambos, assim como a ambivalência do comportamento do protagonista: se por um lado, Werther sabe argumentar racionalmente como na discussão sobre suicídio, por outro lado é muitas vezes emocional, excessivo e sentimental, e bem menos sereno que a sua Lotte, que pensa em termos de planeamento lógico mais do que ele e que faz a escolha mais racional para casar. É esta natureza mista do seu carácter que faz de Werther um protagonista tão fascinante, intrigante e invulgar.
O seu percurso biográfico foi igualmente atribulado: eterno judeu errante, Max Ophuls foi vítima da intolerância e viu-se muitas vezes constrangido a partir, tendo por isso repartido a sua vida pelos destinos mais diversos, como a Alemanha, a França ou os Estados Unidos. Os anos foram todavia generosos com Ophuls e o mundo parece finalmente ter redescoberto a obra e talento deste cineasta do movimento. A seu respeito, é frequentemente reaproveitada uma afirmação de Goethe referente a Mozart: «existe em todas as suas composições uma força criativa que tem atravessado sucessivas gerações e que não parece dever ficar esgotada num futuro próximo».
Um dos Autores por quem Ophuls sempre nutriu uma admiração profunda foi precisamente Johann Wolfgang Goethe, pelo que a decisão de filmar a sua obra-prima A Paixão do jovem Werther (Die Leiden des jungen Werther, 1774) é pouco surpreendente, mas nem por isso menos arrojada. Com efeito, este Werther assinala o nascimento do romance moderno na Alemanha e é, juntamente com Fausto, a obra mais lida de Goethe. O efeito que produziu no seu tempo foi inimaginável: se os leitores anónimos acolheram Werther com um entusiasmo febril, já muitos intelectuais e teólogos ortodoxos difamaram a obra por causa do seu pretenso enaltecimento do suicídio como «engodo de Satanás» e gritaram pelo censor. Seguiu-se uma série infindável de imitações, contrafacções e paródias.
A publicação do livro extravasou mesmo a esfera do estritamente literário para originar o que se designou como wertherismo, para uns uma moda e para outros uma verdadeira praga: copiava-se a indumentária de Werther, bebia-se por chávenas de porcelana decoradas com cenas idílicas retiradas do romance ou (pasme-se!) cometia-se suicídio à imagem do desafortunado protagonista. De facto, deu-se um considerável número de suicídios entre os leitores do romance, o que levou Goethe, aquando da segunda edição (1775), a antepor ao livro a advertência admoestadora: «Sê um homem, e não me sigas!». A influência do romance não se circunscreveu ao século XVIII e Werther perdurou como um desafio para as gerações vindouras, tendo a sua forma e conteúdo inspirado muitos autores dos séculos XIX e XX.
Werther foi também várias vezes adaptado ao cinema. A versão de Ophuls data de 1938 e é um prodígio de sensibilidade e inteligência: Goethe teria seguramente apreciado esta magnífica obra, que enverga com orgulho as marcas do talento do seu realizador! Um dos momentos mais inesquecíveis é a célebre sequência em que Lotte descobre e lê os versos apaixonados de Werther. O cauteloso travelling é um dos mais belos e expressivos de sempre e sublinha o carácter contido, não sensual da relação dos dois protagonistas, que nasce e existe através de um poema de amor. A subsequente recusa de Werther em beijar a mulher que diz amar sublinha esta singularidade do relacionamento entre ambos, assim como a ambivalência do comportamento do protagonista: se por um lado, Werther sabe argumentar racionalmente como na discussão sobre suicídio, por outro lado é muitas vezes emocional, excessivo e sentimental, e bem menos sereno que a sua Lotte, que pensa em termos de planeamento lógico mais do que ele e que faz a escolha mais racional para casar. É esta natureza mista do seu carácter que faz de Werther um protagonista tão fascinante, intrigante e invulgar.
Avelino Ferreira Torres
Um dos maiores atractivos da deliciosamente decadente Quinta das Celebridades da TVI é a presença de Avelino Ferreira Torres. Gosto muito do Presidente do Marco pela sua frontalidade, pela sua genuinidade e pelos serviços que prestou ao Povo da terra que o elegeu e acarinha. Mais: a sua aceitação do convite da TVI, ao arrepio de todos os «parece mal», demonstra sentido de humor e este revela inteligência. Quanto às tropelias e problemas judiciais mais recentes de Avelino, não fizeram nada para beliscar esta minha admiração, bem pelo contrário. Aliás, uma das suas afirmações mais argutas foi proferida precisamente à porta do tribunal: questionado por um jornalista sobre onde estava à data dos alegados crimes, o autarca respondeu a semelhante atrevimento da forma mais diplomática possível ao afirmar «olhe, estive na casa de banho».
2004-10-04
I'll See You In My Dreams
Os dicionários definem zombie como um cadáver ao qual se atribui a aparência de vida através de feitiçaria. A origem destes zombies está no culto haitiano do vodu, que mistura ritos e crenças africanas com práticas rituais católicas: a esmagadora maioria da população do Haiti pratica ainda hoje as duas religiões sem que encontre nisso qualquer oposição. Humfu é o templo vodu, sede de todas as cerimónias. Os sacerdotes são Hungan (homem) e Mambo (mulher), Hunsi são as esposas de deus, auxiliares sagradas dos Loa (deuses e espíritos). Os Hungenikon (rainha do coro) encarregam-se dos cantos litúrgicos. La-place é o mestre de cerimónias, la confiance é confidente e mão direita de Hungan. Os fiéis são pititt-feuilles (folhinhas), pessoas tratadas no Humfu, e pittit-caye (folhas de casa). Poder-se-iam acrescentar ainda os Zombi e Bocor (curandeiro e feiticeiro).
A finalidade primacial das cerimónias de vodu é a possessão de uma pessoa por um Loa, bom ou mau: «Loa monta a cavalo» (é a expressão habitual para designar este fenómeno) e faz o que quer da pessoa que encarne. Ao começar a cerimónia, o sacerdote pinta o seu rosto de branco utilizando uma mistura de terra de cemitério e cinzas de ossos humanos. O seu propósito é enviar os mortos contra um qualquer inimigo. Espalhar o pó à porta da casa da vítima ou num caminho que costume atravessar será suficiente para provocar a sua paralisia ou morte. Já a criação de um zombie exige a deslocação da alma. A alma, segundo a religião vodu é composta de duas entidades: o gross bon-ange e o ti bon-ange (o grande e o pequeno anjos bons). O primeiro é a alma essencial de uma pessoa que forma o seu carácter, enquanto que o segundo forma a sua consciência. Durante a possessão, a alma é deslocada. Numa possessão normal, o gross bon-ange será restaurado pelo sacerdote, mas se não o for, a alma deslocada poderá cair em mãos malignas e daí resultar a criação de um zombie.
As populações haitianas levam o seu vodu e a criação de zombies muito a sério. A derrota do exército napoleónico pelos escravos africanos em 1801 é explicada por muitos pelas práticas do vodu e todas as tentativas da Igreja Católica para erradicar o «perigo sincretista» fracassaram. Ainda hoje, o artigo 246º do Código Penal Haitiano dispõe que «é também considerado intenção de matar o uso de substâncias mediante as quais a pessoa não é morta mas reduzida a um estado de letargia, mais ou menos prolongada, independentemente do modo como as substâncias foram administradas ou quais foram os seus resultados posteriores. Se após o estado de letargia, a pessoa for enterrada então as tentativas serão consideradas homicídio». Ainda mais explícito é o artigo 249º que determina que «será também considerada tentativa de homicídio o uso de drogas, hipnose ou qualquer outra prática oculta que produza coma letárgico ou sono sem vida; e se essa pessoa tiver sido enterrada será considerado homicídio, qualquer que seja o resultado que advenha posteriormente».
A prática do vodu tem fascinado os ocidentais e suscitou um número incontável de estudos. Uma obra particularmente influente foi o livro The Magic Island, de William Seabrook, que inspirou os irmãos Halperin mais o seu filme White Zombie (1932). A figura de Seabrook é quase tão misteriosa e fascinante quanto as cerimónias de vodu que foram objecto das suas investigações: diz-se mesmo que participou nessas cerimónias e que terá comido carne humana, mas qualquer que seja a verdade, levou-a consigo para o túmulo após o seu suicídio em 1945. Mais recentemente, uma reportagem de Geraldo Rivera pôde mostrar ao mundo os segredos dos rituais vodu na selva haitiana. As vítimas eram esfregadas com uma poção derivada de um peixe tropical, que as colocava num transe de quase-morte. O médico do programa descobriu que a poção continha uma droga que era também empregue para descontrair o corpo durante intervenções cirúrgicas. As vítimas eram enterradas vivas durante várias horas ou mesmo um dia e depois desenterradas. Muitas estavam ainda vivas, mas padeciam de graves lesões cerebrais devido à falta de oxigénio na sepultura. É aqui que encontramos a origem do característico olhar vazio dos zombies e a sua estupidez.
Este fascínio mórbido chegou rapidamente ao cinema. Os filmes White Zombie e I Walked With a Zombie (1943), do grande Jacques Tourneur, são considerados os pioneiros deste sub-género, mas é ao americano George A. Romero mais a sua grandiosa trilogia dos mortos que devemos o moderno filme de zombies. Tudo começou em 1968, com um pequeno filme a preto e branco chamado A Noite dos Mortos Vivos. A violência gráfica das suas imagens era algo de nunca visto e mudaria para sempre a feição do cinema de terror: pela primeira vez, o público confrontava-se com monstros que devoravam vítimas humanas, crianças que cometiam matricídio, pessoas que eram incendiadas vivas e ninguém saía dali com vida. O terror continuou com A Maldição dos Mortos Vivos (1979) e a sua guerra declarada ao consumismo desenfreado: a acção tem lugar num grande centro comercial cercado por zombies que buscam aí a vacuidade e o conforto das suas vidas passadas. O filme Day Of The Dead (1985) fala-nos de uma humanidade já inteiramente subjugada ao domínio dos zombies e concluiu brilhantemente a série.
O impacto dos filmes de Romero foi tremendo e o entusiasmo pelos zombies alastrou como uma epidemia pelo mundo inteiro. A Maldição dos Mortos Vivos, co-produzido por Dario Argento, foi um filme particularmente influente em Itália e aí inspirou grandes cineastas como Lucio Fulchi, que soube aproveitar admiravelmente o lado grotesco de Romero. Em Espanha, Amando de Ossorio, com os seus cavaleiros templários, e Jesus Franco são nomes incontornáveis, mas o grande filme zombie de referência é ainda e sempre No Profanar El Sueno De Los Muertos (1974), de Jorge Grau. O cinema francês deu-nos Jean Rollin e os neozelandeses o filme Death Warmed Up (1985) de David Blyth. Os cineastas asiáticos têm sido, em contrapartida, pouco receptivos ao cinema zombie, excepção feita ao célebre A Chinese Ghost Story (1987), de Ching Sju Tung. Mais recentemente, os ingleses fizeram Shaun Of The Dead (2004), unanimemente aplaudido pela crítica internacional.
Graças ao excelente filme I’ll See You In My Dreams (2003), escrito e produzido por Filipe Melo, o cinema português pode agora juntar-se a esta lista prestigiosa. A história é simples e muito bem contada. Numa aldeia inexplicavelmente assolada pela praga dos zombies, o pobre e honesto Lúcio (Adelino Tavares) parece ser a única pessoa capaz de lhes fazer frente. Mas os problemas de Lúcio não acabam aqui: na cave da sua casa, esconde Ana (Sofia Aparício), sua adorada mulher, agora transformada num demónio violento e disforme. O desafortunado protagonista vai afogando estas mágoas no bar local, onde os estranhos habitantes da povoação buscam refúgio. É aqui que um padre zarolho (o sempre excelente Rui Unas) vem a ser abatido sem misericórdia, após o seu contágio pelos zombies. E é também aí que, numa noite, Lúcio redescobre o amor junto de Nancy (São José Correia). Porém, a relação de ambos é ameaçada pelas medonhas criaturas e pelos ciúmes mortais da sua mulher. Quando Lúcio se vê forçado a confrontar os zombies por uma última vez, tudo terminará da forma mais trágica e surpreendente possível!
As originalidades deste argumento de Filipe Melo, Ivan Vivas e Miguel Angél Vivas começam com a estrutura. Os filmes de terror dividem-se normalmente em três actos que documentam a queda e reorganização de uma determinada ordem social. O primeiro acto fornece um retrato da ordem cessante e descreve-nos uma comunidade ainda em paz, que tanto pode ser uma cidade normal (Halloween, Gremlins) como um grupo isolado (Veio do Outro Mundo, Sexta-Feira 13, Deliverance), ou mesmo uma pessoa singular (Carrie, The Vanishing). O segundo acto testemunha a chegada de um monstro que traz consigo o caos, a violência e a destruição da ordem vigente. O terceiro e último acto ocupa-se da resolução dos conflitos e da instauração de uma nova ordem, que pode ser idêntica ou não à que existia no início do filme; claro que a nova ordem também não tem de ser necessariamente melhor que a precedente, pois é o seu processo de alteração e reconstrução que define e caracteriza o género de terror. No caso de I’ll See You In My Dreams, as coisas começam pelo meio, pois os monstros já existem e estão embrenhados nos hábitos e na cultura dos aldeões: na sua primeira fala em off, o protagonista queixa-se do isolamento, do quotidiano entediante e da «merda dos zombies».
Todo o filme de terror necessita de um monstro e quanto mais medonho, melhor. No caso de I’ll See You In My Dreams, os zombies de Filipe Melo são particularmente assustadores: porque o autor sabe bem que o medo mais poderoso é o do desconhecido, em nenhum momento nos é revelada a origem dos bichos. Inteligentemente, o argumentista soube manter a boca calada e poupar o espectador às enfadonhas explicações da praxe, que são geralmente de quatro ordens: naturais, sobrenaturais, psicológicas ou científicas.
As causas naturais põem em relevo a pequenez e a insignificância do ser humano perante as forças da Natureza: a erupção vulcânica de Volcano, o tubarão assassino de Jaws ou o terramoto de Earthquake. Os monstros sobrenaturais, como os Cenobitas de Clive Barker, têm um apelo normalmente limitado, pois requerem do espectador um certo grau de imaginação e uma capacidade de alheamento da vida e são relativamente poucos os que estão suficientemente livres da anestesia da rotina diária para poder responder aos subtis chamamentos do exterior. As causas psicológicas são geralmente as mais assustadoras de todas, pois radicam inteiramente no mundo real: os assassinos psicopatas de Psycho ou O Massacre do Texas. As causas científicas surgem da própria actuação humana: Dr Jekyll, Dr X, Fu Manchu ou Professor Quatermass encarnam os perigos da ciência sem ética. Nada disto surge em I’ll See You In My Dreams, que conserva assim intocado todo o seu mistério e fascínio.
O primeiro filme de terror português é já um fulgurante sucesso internacional e veio desenterrar novas perspectivas de evolução para um sub-género actualmente em crise. Enquanto que muitos dos novos realizadores optaram, sem grande sucesso, por uma abordagem mais sisuda e têm feito dos seus filmes de zombies o retrato de uma sociedade decadente e corrupta, Filipe Melo prefere o humor desbragado de obras como O Soro Maléfico (1985), O Regresso dos Mortos Vivos (1985) ou A Morte Chega de Madrugada (1987). O seu I’ll See You In My Dreams é uma pequena maravilha que aterroriza e diverte como poucos, apesar das limitações financeiras que atormentaram a sua produção. Agora, imaginem só o filme que Filipe Melo faria se tivesse ao seu dispor um orçamento decente!
António Cartaxo
Era só para dizer que o nosso António Cartaxo é um dos comunicadores mais notáveis que temos. A extensão do seu saber sobre música, a sua capacidade de síntese e o seu sentido de humor fazem dele uma das personalidades da rádio que mais admiro. Agora, os apreciadores de música podem ouvir as suas crónicas e deliciar-se com as suas magníficas histórias todos os dias na Antena 2. Obrigado, António Cartaxo!
2004-09-24
O Código Da Vinci
O best seller mundial O Código Da Vinci, de Dan Brown, continua bem vivo e a suscitar polémicas furiosas. Desta feita, a revista Visão de 23.09.2004 publica a seu respeito um texto crítico bombasticamente intitulado As mentiras de Dan Brown e O Código da Vinci desmascarado. Mais valia, porém, que tivesse ficado calada: o libelo acusatório de uma tal de Marie-France Etchegoin é tudo menos objectivo e fica-se por um amontoado invejoso de meias verdades e incompleitudes. Metade do texto de Etchegoin é uma mera síntese do enredo delineado por Brown, entremeada com as apreciações biliosas que demonstram bem a parcialidade e falta de seriedade intelectual da autora: «Jesus dormia, então, com Maria Madalena e tiveram muitos pequenos merovíngios». A outra metade ocupa-se da diabolização da pessoa de Pierre Plantard, já falecido, e do seu Priorado do Sião (que são, aliás, figuras relativamente secundárias nesta obra ficcional) e nisso – apenas nisso! – municia o ataque à credibilidade de Dan Brown. Claro que, como tudo o que é humano, este Código Da Vinci não é perfeito; não obstante, o Autor precedeu o seu texto de um trabalho de pesquisa notável, cujas conclusões tiveram o condão de suscitar em todo o mundo controvérsias apaixonantes – sem necessidade de, ao contrário de Etchegoin, recorrer ao estardalhaço e às calúnias.
Kafka e a sua cidade
Kafka, o escritor que influenciou como nenhum outro as literaturas de todo o mundo, quase nunca saiu de Praga. Faltam à sua biografia as grandes deslocações, as viagens memoráveis ou o contacto com culturas exóticas: à semelhança de Stifter ou Yeats, a sua existência foi provinciana e local. A relação do escritor com a sua cidade natal foi, todavia, sempre ambígua: Praga, essa «mãezinha com garras afiadas», era um local que o sufocava e no qual sabia que a pureza e a felicidade não eram possíveis. Mesmo assim, foi aí onde optou por passar a quase totalidade da sua curta vida (1883-1924). Exceptuam-se diversas viagens de serviço, algumas viagens culturais, muitas estadas em casas de repouso, meio ano em Berlim, alguns meses no campo na Boémia e nada mais. «Praga não me larga», escrevia Franz Kafka já aos dezanove anos.
A cidade que Kafka transformou numa metrópole no mapa da literatura nunca é expressamente nomeada na sua obra; aliás, os locais das suas histórias são raramente identificados. Mesmo assim, Praga está inequivocamente presente em obras como A Grande Muralha da China, que é muito claramente baseada num célebre monumento de Praga, a Muralha da Fome, no Alto de São Lourenço: uma muralha que foi construída, sem qualquer finalidade, por desempregados, a quem se devia dar ocupação. A casa de Gregor Samsa em A Metamorfose reproduz fielmente o apartamento da Niklasstrasse que Kafka compartilhava com os seus pais: o guarda-fatos, a secretária e o divã, o hospital que se via da janela, as luzes da rua que se reflectiam no tecto do quarto, as portas, a disposição das outras divisões do apartamento – tudo correspondia. O seu mais antigo fragmento de um conto, Descrição de uma Luta, tem por assunto um passeio nocturno pela cidade.
Quando Kafka nasceu em 1883, Praga ainda fazia parte do Império dos Habsburgos da Boémia. A cidade era um ponto de cruzamento de culturas: numerosas nacionalidades, línguas e orientações políticas e sociais misturavam-se e coexistiam para o melhor e para o pior. Um forte afluxo de habitantes checos tinha transformado esta cidade, outrora predominantemente alemã, numa urbe quase puramente checa onde se mantinha uma minoria de habitantes de língua alemã, dos quais mais de metade eram judeus: a Praga alemã foi também uma Praga judia.
Se no centro da cidade ainda se falava predominantemente alemão, na restante cidade a comunicação era feita quase inteiramente em checo. Esta situação específica explica a linguagem sucinta, fria, indiferente e lacónica de Kafka, que contrastava com o estilo artificioso e emproado dos seus contemporâneos. O alemão de Praga estava consideravelmente afastado do alto alemão não só pela pronúncia, mas também pela construção e sobretudo pelo vocabulário: sob a pressão do isolamento, o alemão em Praga tornava-se cada vez mais um idioma de dias de festa subvencionado pelo Estado e, com isso, era significativa a perda de vocabulário. Inversamente, a estranheza de Kafka perante as coisas tem também causas linguísticas: esse alemão seco, de papel, era incapaz de intimidade com o mundo.
A situação política e social era periclitante e Kafka conheceu Praga como uma cidade profundamente dividida: a classe superior (alemã) – nobreza, militares, indústria – conservadora ou mesmo reaccionária; a classe inferior (checa) nacional-democrata ou nacionalista; pelo meio, a classe média liberal, mais desamparada do que outra coisa (alemã, judia e também checa numa pequena parte). O nacionalismo checo estava a erguer-se contra a predominância alemã e o símbolo mais visível deste movimento de libertação foi a Exposição Regional da Boémia de 1891, no parque do Jardim das Árvores, para a qual foi também construído o mirante no Alto de S. Lourenço, assim como dois funiculares; no mesmo ano, desapareceram das ruas as últimas placas bilingues. Nem as crianças escapavam à disputa entre nacionalidades e um colega de escola de Kafka contou como a pancadaria entre alunos checos e alemães estava na ordem do dia.
Para a família judia de Kafka, apanhada no meio deste fogo cruzado, a vida era um acto de delicado equilíbrio. É aliás muito significativo que Franz tenha nascido na Casa da Torre, como que a documentar a diversidade de proveniências dos seus pais: o pai Herrmann Kafka, oriundo do proletariado provinciano judeo-checo, morava nas ruelas sórdidas do gueto, já há muito abandonado e que, duas dezenas de anos mais tarde, seria definitivamente demolido; e a mãe Julie Löwy, oriunda da abastada e instruída burguesia judeo-alemã, morava numa das mais belas casas no Ring da parte antiga da cidade, na casa de Smetana. Kafka nasceu precisamente na fronteira entre estas duas partes da cidade. Nos seus primeiros tempos, a família viveu modestamente, morou em casas muito pequenas e mudou-se com frequência. Depois, veio a escola primária, o liceu e o estudo do Direito na Universidade Carlos de Praga, que converteu o jovem Franz em «Herr Doktor Kafka». Em Julho de 1908, entra como funcionário ajudante no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho do Reino da Boémia em Praga.
Trabalhar de dia significava escrever à noite no apertado apartamento onde ainda vivia com os pais e as três irmãs. Isso dificilmente permitia a concentração: «Quero escrever e há um tremor constante na minha testa. Estou sentado no meu quarto, que é o quartel-general de todo o barulho do apartamento. Há portas a bater por toda a parte… o pai deita abaixo a porta do meu quarto e atravessa-o com a ponta do roupão de banho a arrastar atrás dele. A Valli grita do vestíbulo como se fosse de um lado para o outro de uma rua de Paris a perguntar se o chapéu do pai foi escovado. A porta da frente faz um barulho como o de uma garganta inflamada. Finalmente, o pai foi embora, e tudo o que resta é o pipilar mais terno e desesperado dos dois canários.» A única solução era uma espécie de auto-hipnose ou emigração interior que simultaneamente o desligava do mundo e lhe permitia assimilar tudo aquilo.
Esta necessidade de silêncio e isolamento, mais um sintoma da angústia perante o mundo exterior, explica a extraordinária inconstância da sua produtividade. No período entre Fevereiro de 1913 e Julho de 1914, não surgiu uma única obra importante. «Quase não há palavras que eu escreva que estejam de harmonia com as outras; as consoantes chocam entre si com um barulho de latas e as vogais acompanham-nas cantadas, como o cantar dos pretos na exposição. As minhas dúvidas dispõem-se em círculo em volta de cada palavra e vejo-as antes de ver a palavra».
O ano de 1912 foi, em contrapartida, o mais prolífico da carreira de Kafka. Nas semanas compreendidas entre 22 de Setembro e 6 de Dezembro (portanto, em setenta e quatro dias), foram produzidas mais de quatrocentas páginas manuscritas. No mesmo espaço de tempo, Kafka escreveu à noiva mais de sessenta cartas, muitas vezes com mais de dez páginas. Além de A Metamorfose, foi também o ano de O Desaparecido e A Sentença.
A data de 22 de Setembro de 1912 foi particularmente gloriosa. Tinha passado a tarde num aborrecido compromisso familiar: os parentes do cunhado tinham vindo visitá-lo pela primeira vez; nunca abriu a boca durante a visita e apetecia-lhe gritar de náusea e desespero. Depois do jantar, por volta das dez, sentou-se à secretária. Tinha a intenção de descrever uma guerra; um jovem devia ver da janela a multidão aproximar-se, quando a caneta, quase sem dar por isso, começou a escrever A Sentença, uma história de pais e filhos onde transparecia pela primeira vez o seu complexo edipiano. Teve logo a impressão de que já não se tratava, como nos primeiros tempos, de um jogo «com a ponta dos dedos». Aquele conto estava escrito com todas as suas energias, com o espírito, a alma e o corpo. Era um autêntico parto, coberto de sangue e muco. As forças do seu inconsciente, que até então tinha contido e reprimido, vinham subitamente à luz, derrubando as barreiras que o entravavam.
Kafka escreveu A Sentença toda a noite sem se interromper, com as pernas firmes e rígidas. Se tivesse parado por um instante, aberto um livro, levantado ou tivesse distraído, teria bloqueado o acesso às verdades silenciosas. Escrever era um fluxo imparável: agarrado à secretária como a uma rocha ou a um sepulcro, não podia levantar a mão do papel, porque de outro modo o conto perderia a fuga, o ímpeto, o andamento natural e contínuo, a mágica fluidez da respiração que tanto havia desejado. Às seis da manhã, quando a criada atravessava pela primeira vez o vestíbulo, escrevia já o último período. Naquelas oito horas, Kafka estabeleceu para sempre a sua concepção da literatura e a sua ideia de inspiração poética: «Só assim se pode escrever, numa entrega total, com uma completa abertura de corpo e de alma».
O sono tornava-se para Kafka um privilégio inacessível. Sabia que, de noite, os homens bons dormem, fechados no sono como crianças e protegidos por mão celestial contra os assaltos dos incubos. Os homens que não dormem são culpados porque não conhecem a paz da alma e são torturados pela obsessão. Kafka, como todos os culpados, não dormia. Esta insónia era, porém, também a sua força. Quem mergulhava em sonos tão inquietos e agitados estava em relação com os demónios da noite e os poderes que se escondem na escuridão, com as forças que enchiam o seu inconsciente; e ele tinha que evocá-las, como na noite extraordinária em que escreveu A Sentença.
Só a noite, porém, não lhe bastava. Era como se todo aquele silêncio não fosse suficiente e que «a noite fosse ainda pouco noite». Kafka teria desejado cancelar o dia e o Verão, a madrugada e o crepúsculo, prolongar as trevas para além dos seus curtos limites, transformando-as num único e interminável Inverno. Imaginou então o seu local ideal de trabalho, isolado do mundo: uma cave hermeticamente fechada em que a comida lhe seria trazida e deixada atrás da porta mais distante. Só teria de percorrer uma curta distância para a recolher e comer antes de retomar a sua criatividade sem ser estorvado pelo contacto humano. Assim é o eu de O Covil, uma das poucas obras de Kafka na primeira pessoa. A criatura (talvez um texugo, uma toupeira ou uma doninha) construiu para si própria um covil com túneis interligados, montes de carne armazenada e a tranquilidade de uma fortaleza. Este refúgio é todavia ameaçado por inimigos que vêm não só do exterior, mas também das próprias entranhas da terra. Eles nunca foram vistos mas estão lá e um deles parece ter dado pela sua presença. O eu sabe que tem os dias contados e acabará por morrer retalhado, já sem forças para resistir.
Esta busca do isolamento perseguiu-o pelos anos. Depois dos fracassos da casa de esquina da Bílkova e do apartamento da casa do Lúcio Dourado, Kafka acabou por se mudar para uma minúscula casinha medieval no nº 22 da Ruela dos Alquimistas, junto ao Castelo de Praga. «Um dia de Verão, fui com Ottla procurar casa; embora já não acreditasse na possibilidade dum sossego verdadeiro, pelo menos fui à procura dele… E nada, a bem dizer, não encontrámos nada. Mas depois, mais para nosso divertimento, perguntámos naquela minúscula ruela. E responderam-nos que sim, que haveria uma casa para alugar a partir de Novembro. Ottla, que também busca o sossego, mesmo que seja à maneira dela, apaixonou-se pela ideia de alugar a casa…» Nesta casinha ganharam vida, desde o fim de Novembro de 1916, muitos dos mais belos textos de Kafka: Um médico de aldeia, Na galeria, O caçador Graco, Um relatório para uma academia, A preocupação do pai de família e também Uma mensagem imperial.
Seguiu-se em Março de 1917 o palácio Schönborn, onde Kafka sofreu, na noite de 12 para 13 de Agosto, aquela hemoptise que prenunciava a tuberculose que o fulminaria sete anos mais tarde. Depois vieram as estadas cada vez mais frequentes nos sanatórios, o regresso a Praga, a escrita de O Castelo e, a 3 de Junho de 1924, a sua última morada no cemitério judeu de Straschnitz.
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