O explorador João Canijo propõe-nos, com o seu filme Noite Escura (2004), mais uma arrojada incursão no continente interminável do coração humano. Desta feita, o talentoso cineasta português enveredou pelo género trágico e foi buscar inspiração a um grandioso drama do grego Eurípides: Ifigénia em Áulis. Os fãs sempre tiveram uma admiração especial por esta tragédia do rei Agamémnon que, instigado pelos deuses, pela Grécia e pelos seus soldados, sacrifica a vida da sua própria filha. A pintura de sentimentos das diversas personagens é extraordinária: o amor à vida e heroísmo de Ifigénia, as hesitações dolorosas de Agamémnon, a dedicação feminina e maternal de Clitemnestra logo seguida do ódio ameaçador ao marido quando se sabe traída e a nobre altivez de Aquiles fizeram deste drama a maior obra-prima de Eurípides.
É muito significativo que tenha sido escolhida a tragédia grega. Trata-se, afinal, do «mais nobre e humano» dos géneros literários: nobre, porque fala de protagonistas que se precipitam na infelicidade em virtude não de uma culpa moral, mas de um erro; humano, porque humaniza e melhora os seus espectadores através do efeito trágico por excelência, que é o temor e compaixão por alguém que sofre. Canijo é, também ele, um notável tragediógrafo, pois tanto é o cineasta dos sentimentos mais elevados e nobres, como é o realizador do suor, do mofo, do sangue ressequido, dos escarros e doutros perfumes.
É também expressivo que o Autor escolhido tenha sido o grande Eurípides. O «poeta filósofo» foi, como todos os artistas inconformados, um homem profundamente incompreendido e injustiçado no seu tempo. A sua vida andou, infelizmente, envolta em ditos e anedotas que adulteraram a verdadeira fisionomia do poeta: a imagem cruel que dele nos dá Aristófanes é a de um homem de letras orgulhoso, solitário e confinado à sua gruta onde sonha e medita ao longo do dia «com os pés para o ar». A razão de tanta crispação estava sobretudo no seu desprezo pela tradição e pela mitologia nacional. Mas se esta sua ética fez de Eurípides um motivo de escárnio dos seus contemporâneos, foi também ela que assegurou a sua longevidade através dos séculos. Hoje, o fascínio pelo teatro euripidiano está mais actual que nunca e o realizador de Noite Escura sabe-o muito bem.
As afinidades entre as obras deste Eurípides e de João Canijo são tantas e tão flagrantes, que bem podemos afirmar, sem risco de exagero, que estamos perante uma das adaptações modernas mais rigorosas e verdadeiras de uma tragédia grega. Ambos os Autores são cronistas admiráveis das suas épocas, pois tal como Eurípides não ficou indiferente a coisa alguma do seu século e do seu meio, também Canijo é um excelente retratista do Portugal dos nossos dias. Ambos concedem primazia ao feminino, pois se Eurípides (que nada tinha de misógino e até nos faz simpatizar com as suas protagonistas mais controversas, como Fedra e Medeia) entregou à mulher o trono da sua tragédia, também o português nos deu Ana Bustorff (inesquecível em Sapatos Pretos!), Rita Blanco e Beatriz Batarda. Ambos são, enfim, artistas profundamente inovadores: o «filósofo do teatro» modificou os mitos mais do que qualquer outro tragediógrafo e transmutou notavelmente a concepção íntima do drama, enquanto que João Canijo engavetou gostosamente muitas das regras da gramática visual que aprendemos nas escolas de cinema.
O que parece afastar um pouco estes dois gigantes é o pessimismo incorrigível de João Canijo. Já Eurípides não é pessimista e a sua concepção da morte é prevalentemente optimista. Ifigénia, compreendendo a necessidade de sacrificar a sua vida para auxiliar a armada grega, consente em ser imolada à deusa Ártemis: com a sua morte, aplacará a deusa e conseguirá ventos favoráveis à frota dos Helenos. Mas enquanto que a vida da heroína euripidiana é salva no último instante, não há deus ex machina que valha à nova Ifigénia de Canijo: o seu sacrifício não só é completamente inútil, como deixará o mundo entregue à solidão mais desesperada e irremediável – a tal noite escura que dá o nome ao filme.
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