2004-11-12

Metropolis (ii)


A existência de Metropolis foi, desde o início, muito conturbada. Já desde a década de 1920, o filme foi sendo sujeito a sucessivas truncagens e adaptações e só por muito pouco é que não foi completamente destruído. Longe de assegurar uma maior potencialidade comercial, como era seu propósito, os cortes efectuados vieram apenas destruir a coesão narrativa no filme e aumentar a confusão. Actualmente, já não restam cópias do original estreado em 1927. A recuperação de Metropolis tem por isso constituído uma espécie de Santo Graal de arquivistas e restauradores em todo o mundo.

As metamorfoses do filme de Lang ao longo dos tempos foram tão radicais, que melhor seria falarmos de Metropolis como não um, mas vários filmes de diferentes autores. Com efeito, a que obra nos referimos quando falamos de Metropolis? O original filmado por Fritz Lang em Berlim no ano de 1926 e só aí exibido no início de 1927? A versão americana encurtada, remontada e com novos títulos, da responsabilidade de Channing Pollock? A segunda versão alemã, à imagem do modelo americano, que podia ser vista na Alemanha em finais de 1927? Esta mesma versão, novamente encurtada e com diferentes inter-títulos ingleses, que o Museu de Arte Moderna em Nova Iorque tornou acessível aos cinéfilos de muitos países desde antes da Segunda Grande Guerra? A versão sonora alemã dos anos 60, que remonta à anterior? A tentativa de reconstrução feita nesta altura pelo Museu do Cinema da então República Democrática Alemã? A interpretação pós-moderna de Giorgio Moroder colorida e musicada de 1984? A versão de Munique disponível em vídeo? O videoclip de Madonna Express Yourself?

A história das mutações de Metropolis remonta a Dezembro de 1925, quando produtores americanos mostravam grande interesse na Ufa: isto porque os problemas financeiros desta empresa ofereciam uma excelente oportunidade de enfraquecer o grande rival. Representantes da MGM e Paramount deslocaram-se a Berlim e negociaram um acordo no qual a Ufa obtinha um empréstimo de 4 milhões de dólares. Em contrapartida, a Ufa reservava uma quota de 75% do seu cinema para produções americanas e era obrigada a distribuir vinte filmes de cada contraparte por ano, para o que foi fundada a distribuidora Parufamet. Acresce que a Universal garantia à Ufa um empréstimo de 275 mil dólares, para o que a empresa tinha de aceitar cinquenta filmes da Universal por ano. Apesar de a Ufa ver reconhecido o acesso ao mercado americano como moeda de troca, não havia dúvida que estes contratos da Parufamet e Universal representavam a rendição incondicional da Ufa aos seus competidores americanos.

Ora, quando Metropolis foi distribuído em 1927, o contrato Parufamet assegurava que a Paramount e a MGM teriam um controlo considerável sobre a versão que seria exibida nos ecrãs americanos. Porque Pommer havia abandonado a Ufa no início de 1927 por entre acusações de negligência financeira, não havia nenhum dirigente criativo que impedisse a adulteração da produção. Os distribuidores americanos tinham portanto plena liberdade para «adaptar» o filme de forma a torná-lo mais apetecível ao gosto do seu público. A Parufamet comissionou o escritor Channing Pollock (juntamente com a sua equipa Julian Johnson e Edward Adams) para remodelar o filme, e o distribuidor não fez segredo das revisões. Também as alterações de Pollock suscitaram reacções ambíguas. A 13 de Março de 1927, o New York Times publicava mesmo um artigo descrevendo os grandes cortes efectuados de forma a tornar o filme mais apelativo; estas «revisões» foram mesmo «tidas como necessárias» e os produtores alemães acusados de revelarem uma «falta de interesse na verosimilhança dramática ou uma inacreditável ineptitude». Enquanto que a Variety de 16 de Março de 1927 elogiava os novos títulos de Pollock como tendo «uma dignidade de linguagem que em muito contribui para a espectacularidade do conjunto», outros comentadores viram as alterações como uma grande desvantagem, uma vez que os títulos eram vistos apenas como razoáveis e para o fim bastante estúpidos pelo seu reiterado sentimentalismo.

As mudanças de Pollock resultaram numa diminuição das 17 bobinas originais para apenas 10, reduzindo a sua dimensão original de 4.189 metros para apenas 2.841 metros, o que corresponde a 107 minutos de tempo de exibição. Ao americano é devida a remoção de todas as cenas do Clube Yoshiwara, onde o robot surge como uma vamp sedutora; quem sabe, talvez por julgar que as festas regadas a álcool aí celebradas não se compadeciam com o espírito dos tempos do proibicionismo americano. Foram também cortadas as cenas no Estádio Olímpico. Os cortes inflingidos eram tão consideráveis, que foi mesmo necessário criar novos inter-títulos, prontamente fornecidos por Pollock, do que resultaram mudanças a nível do enredo: não só um abafamento das questões sociais abordadas no filme, como também a mudança dos nomes das personagens e com isso a perda do seu simbolismo religioso (Joh / Jeová, Freder / pai e irmão, Maria / mãe e santa).

As alterações mais decisivas verificaram-se a respeito de um episódio fundamental do romance e filme original: a relação entre Rotwang, o inventor, e Fredersen, o líder da cidade. Na versão americana, Rotwang é uma caricatura do típico cientista louco com um ódio inexplicável por Fredersen e uma natureza intrinsecamente maligna e viciosa, uma caracterização que esbarra com a interpretação de Klein-Rogge, que frequentemente sugere uma alma atormentada, indecisa e remoída pelo desgosto. As formas femininas do robot não se justificam por nenhuma razão especial e Fredersen pede-lhe que tenha o rosto de Maria devido à iminente revolta dos operários. No romance e filme original, o líder da Cidade pretende incitar os trabalhadores à revolta (apesar de as suas verdadeiras motivações para tanto permanecerem ainda hoje mais ou menos inexplicadas); na versão americana revista, esta Maria artificial é utilizada para semear a discórdia entre os operários, mas por qualquer razão ignota, vira-se contra os seus criadores e prega a destruição, tornando por isso as suas acções perfeitamente arbitrárias. Na versão original, um dos planos cortados mostrava um belo busto feminino com o nome Hel, que em inglês se confunde com Hell (inferno); donde, a remoção da cena para evitar ambiguidades.

Estas modificações perturbaram gravemente a fluidez da narrativa. A misteriosa Hel desempenhava um papel fulcral: ela era a falecida mulher de Fredersen e mãe de Freder e havia tido uma relação amorosa com Rotwang; Fredersen fê-la abandoná-lo e tiveram um filho juntos, Freder. Contudo, Hel acabaria por falecer durante o parto. Rotwang sentiu-se traído e alimentou um ódio por Fredersen que resvalava para a insanidade; tornou-se igualmente obcecado em recriar Hel para si, ainda que apenas como uma escultura mantida no seu laboratório ou como um ser humano artificial - o robot que havia concebido. Na rebelião incitada pelo robot a sua vingança parece estar consumada: recriou Hel, que destrói a cidade de Fredersen; mas também tem pleno controlo sobre a mulher que julga tê-lo traído. Finalmente, ao dotar o robot do aspecto de Maria, ele poderá exercer a sua vingança não apenas sobre Fredersen mas também sobre o filho nascido de Hel e outro homem. A obra ganha assim novos contornos de uma história de ódio, crime e vingança, um tema central em toda a filmografia de Lang.

À época, Metropolis gerou igualmente uma série de diversas versões internacionais. Jornais ingleses da altura escrevem que o filme teria uma extensão de 3048 metros (ou 111 minutos), o que indica que uma outra versão estaria sendo preparada para o mercado britânico. Já o filme estreado em Portugal no ano de 1928 durava apenas 80 minutos. Estas mudanças profundas nas várias versões internacionais estavam longe de ser únicas; pelo contrário, espelham apenas as agressivas políticas de distribuição toleradas ou mesmo fomentadas pela Ufa e outras produtoras. De modo a aumentar as possibilidades de um filme no mercado internacional, as mudanças de títulos, nomes, inter-títulos e mesmo profundas revisões nas narrativas sem qualquer consideração pela coerência artística eram mais a regra que a excepção na década de 1920.

Quando veio o sonoro, Metropolis, como os outros filmes mudos, foi arrumado numa prateleira e só devido a alguns não foi pura e simplesmente queimado. Mas quando Hitler subiu ao poder e Lang se recusou a colaborar com o regime, as cópias deste e de outros filmes do autor foram destruídas. Quando no final dos anos 30, as cinematecas procuraram salvar o que restava do filme, não tinham mais que a versão truncada de Pollock; a partir dela se fizeram as cópias que circularam entre os anos 40 e os anos 80. Só que as obras-primas resistem a tudo e graças aos avanços tecnológicos e ao trabalho de homens como Enno Patalas, director da Cinemateca de Munique, inúmeros progressos foram feitos.

Não obstante, uma parte substancial de Metropolis parece estar irremediavelmente perdida: cerca de mil metros de película, aproximadamente mais de meia hora de filme, serão porventura irrecuperáveis. É o caso da sequência descrita por Balthasar no Blaues Heft de Fevereiro de 1927: «O operário [Nº 11711, depois de ter trocado de roupas com Freder] entra no carro. Uma jovem coquette passando num carro próximo - figura tremendamente sugestiva e maravilhosamente filmada - o anúncio de Yoshiwara, em suma um centro de prazer, fazem-lhe ferver o sangue.» Dois planos são descritos no cartão de censura do trailer promocional do filme: «Um jovem cobre-se de uma chuva de papéis» - folhetos publicitários de Yoshiwara - «em primeiro plano, um sem número de balões sobem nos ares e formam cabeças humanas; teclas de piano, casais de dançarinos, uma roleta, abraços, uma bailarina». Balthasar: «nos filmes 'absolutos' de Léger e Picabia, vimos já algo de semelhante aos efeitos especiais destes planos assombrosos, mas nada de tão brilhante, tão sintético, tão singular na sua caracterização reluzente e artificial.»

1 comentário:

Anónimo disse...

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