Para mim, estudante de cinema alimentado a Cahiers e folhas da cinemateca, as grandes vedetas dos filmes foram sempre os realizadores e não os actores. Quem protagonizava verdadeiramente as obras cinematográficas e lhes dava alma era quem as dirigia, enquanto que os actores não passavam de intervenientes vaidosos, secundários e um pouco pervertidos ou, na tristemente célebre expressão de Hitchcock, eram «gado». Com os anos, a descoberta dos talentos fulgurantes de Klaus Kinski, Marlon Brando e Bette Davies fez mudar a minha opinião. Ainda para mais, pude recentemente produzir um pequeno filme chamado O Porteiro e trabalhar com um elenco excepcional que erradicou quaisquer sobras de preconceito que eu ainda guardasse. Todos os nossos actores e actrizes (todos, sem excepção!) foram excelentes e comprovaram uma velha teoria: a de que os grandes artistas são também seres humanos íntegros e generosos.
Dois desses actores que colaboraram connosco foram o Gonçalo Waddington e o Ivo Canelas e devemos a este dueto de gigantes o melhor momento de O Porteiro. Trata-se, obviamente, da cena 5, exterior, noite. Após uma troca de palavras azeda, a nossa querida Verinha Fontes entra no bar Dedalus e deixa sozinhos e sossegados os dois amigos. O tom de voz entre os rapazes suaviza-se então quase até ao sussurro, pois ambos querem trocar desabafos cúmplices e convém que ninguém ouça. De súbito, o nosso Ivo sai-se com um excelente «Tu andas com ela porquê?». O Ivo é rápido, mas o Gonçalo não lhe fica atrás. «Não sei, a minha mãe pergunta-me sempre a mesma coisa». Tudo isto é improvisado: a troca de palavras não consta em lado nenhum do guião e são os dois intérpretes que, num passe de mágica, a vão buscar ao reservatório inesgotável da sua criatividade.
A conversa prossegue e flui como um rio: as falas são claras, concisas e ditas (ou melhor, vividas) com toda a expressividade. Afinal, vai ou não haver casamento? Pelos vistos não vai, mas apenas porque o Ivo tem medo de abraçar um compromisso tão grande. Por isso, ele reage com todo aquele nervosismo (o gaguejar improvisado é mais um toque excelente!) quando é confrontado com os factos pelo amigo. Enfim, o que é preciso é calma, tudo se remedeia. Ao lermos o guião, o Gonçalo deveria agora simplesmente voltar ao bar e ir ter com a namorada, mas nem por isso acabam os improvisos. «Obrigado!», suspira ainda o Ivo com alguma ironia, enquanto o amigo prossegue com um passo gingão e as suas risadas jocosas em direcção ao bar. É como se os dois actores quisessem prolongar ao máximo o gozo evidente que sentem quando interpretam a cena na companhia um do outro. Tudo termina com aquele espantoso close up do rosto do Ivo Canelas, mais a Lisboa adormecida em segundo plano.
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