2004-10-05

Werther

O realizador Max Ophuls é uma das personalidades mais reverenciadas pelos cinéfilos. Todos reconhecem a forma generosa como o criador de Lola Montès enriqueceu o cinema com a sua sabedoria, inteligência viva e sensibilidade cosmopolita. Porém, nem sempre foi um cineasta consensual: apesar da admiração entusiástica que desde cedo granjeou junto dos cinéfilos dos Cahiers, Ophuls é o exemplo acabado de criador cujo merecido reconhecimento só adveio após a sua morte. Falou-se demasiadas vezes de um cinema pretensamente antiquado e pueril, sem que se tivesse compreendido que a sua obra não abordava senão temas essenciais e intemporais: o amor, o prazer, o desejo. Ophuls lamentou muito particularmente a impaciência estética do grande público consumidor de cinema, o mesmo que visiona filmes como quem traz um cigarro à boca, «sem saber já se o fumam ou guardam enquanto falam».

O seu percurso biográfico foi igualmente atribulado: eterno judeu errante, Max Ophuls foi vítima da intolerância e viu-se muitas vezes constrangido a partir, tendo por isso repartido a sua vida pelos destinos mais diversos, como a Alemanha, a França ou os Estados Unidos. Os anos foram todavia generosos com Ophuls e o mundo parece finalmente ter redescoberto a obra e talento deste cineasta do movimento. A seu respeito, é frequentemente reaproveitada uma afirmação de Goethe referente a Mozart: «existe em todas as suas composições uma força criativa que tem atravessado sucessivas gerações e que não parece dever ficar esgotada num futuro próximo».

Um dos Autores por quem Ophuls sempre nutriu uma admiração profunda foi precisamente Johann Wolfgang Goethe, pelo que a decisão de filmar a sua obra-prima A Paixão do jovem Werther (Die Leiden des jungen Werther, 1774) é pouco surpreendente, mas nem por isso menos arrojada. Com efeito, este Werther assinala o nascimento do romance moderno na Alemanha e é, juntamente com Fausto, a obra mais lida de Goethe. O efeito que produziu no seu tempo foi inimaginável: se os leitores anónimos acolheram Werther com um entusiasmo febril, já muitos intelectuais e teólogos ortodoxos difamaram a obra por causa do seu pretenso enaltecimento do suicídio como «engodo de Satanás» e gritaram pelo censor. Seguiu-se uma série infindável de imitações, contrafacções e paródias.

A publicação do livro extravasou mesmo a esfera do estritamente literário para originar o que se designou como wertherismo, para uns uma moda e para outros uma verdadeira praga: copiava-se a indumentária de Werther, bebia-se por chávenas de porcelana decoradas com cenas idílicas retiradas do romance ou (pasme-se!) cometia-se suicídio à imagem do desafortunado protagonista. De facto, deu-se um considerável número de suicídios entre os leitores do romance, o que levou Goethe, aquando da segunda edição (1775), a antepor ao livro a advertência admoestadora: «Sê um homem, e não me sigas!». A influência do romance não se circunscreveu ao século XVIII e Werther perdurou como um desafio para as gerações vindouras, tendo a sua forma e conteúdo inspirado muitos autores dos séculos XIX e XX.

Werther foi também várias vezes adaptado ao cinema. A versão de Ophuls data de 1938 e é um prodígio de sensibilidade e inteligência: Goethe teria seguramente apreciado esta magnífica obra, que enverga com orgulho as marcas do talento do seu realizador! Um dos momentos mais inesquecíveis é a célebre sequência em que Lotte descobre e lê os versos apaixonados de Werther. O cauteloso travelling é um dos mais belos e expressivos de sempre e sublinha o carácter contido, não sensual da relação dos dois protagonistas, que nasce e existe através de um poema de amor. A subsequente recusa de Werther em beijar a mulher que diz amar sublinha esta singularidade do relacionamento entre ambos, assim como a ambivalência do comportamento do protagonista: se por um lado, Werther sabe argumentar racionalmente como na discussão sobre suicídio, por outro lado é muitas vezes emocional, excessivo e sentimental, e bem menos sereno que a sua Lotte, que pensa em termos de planeamento lógico mais do que ele e que faz a escolha mais racional para casar. É esta natureza mista do seu carácter que faz de Werther um protagonista tão fascinante, intrigante e invulgar.