2004-10-27

Toque de classe

O melhor blogue que existe sobre cinema é o excelente Touch Of Evil e o seu criador chama-se Rui Silva.

2004-10-25

Morais Sarmento


O Ministro Morais Sarmento é, para os antropólogos e estudiosos da cultura, um objecto de estudo fascinante, pois reúne todos os defeitos do chamado homem moderno. Sarmento é seco, seguro de si, arrogante, presunçoso, convencido da sua boa fé e da sua inocência, regrado, agressivo, autoritário, egoísta, incapaz de compreender os outros, sedento de sucesso e um pouco megalómano. No debate parlamentar sobre a televisão, foi o que se viu, quando o Ministro alertou para as «perversidades» da «independência excessiva» da RTP e defendeu que deve ser o Governo a definir o modelo da sua programação, uma vez que é o Executivo que responde pelas decisões adoptadas na estação pública. Incoerências e inconstitucionalidades à parte, que competências ou legitimidade tem ele para vir agora falar de serviço público e interesse cultural? É que, excepção feita ao consumo de drogas confesso e à carreira de pugilista, não se lhe reconhece grande currículo na matéria.

Uma viagem com João Barrento

O Professor João Barrento é um senhor de barbas cinzentas, cordato e afável, a quem devemos as melhores traduções portuguesas que por aí andam da boa literatura alemã. Esta semana, tivemos o prazer, a sorte e a honra de poder ouvi-lo na Expolíngua Portugal, no Fórum Picoas de Lisboa. A conferência que aí proferiu, intitulada Viagem à memória de viagens - Imagens de Portugal em autores alemães contemporâneos, inscreveu-se na chamada imagologia: o estudo das imagens que os outros fazem de nós e nós deles. Durante uma hora cheia, Barrento foi um guia seguro num percurso pela obra e pensamento de alguns dos escritores alemães que o nosso País inspirou: Schneider, Fichte, Jünger, Weiss, Eich, Meyer-Clason, Helga Novak, o incontornável Grass, entre outros.

2004-10-15

Mais Marcelo

Ainda a propósito do caso Marcelo, há agora uma tendência extraordinária de opinião entre alguns blogues segundo a qual a vítima é o Ministro censor e não o comentador censurado. O raciocínio destas cabeças é pouco claro, mas parece resumir-se ao seguinte: que é perfeitamente aceitável que seja afastado um comentador, ouvido e respeitado por milhões de pessoas, apenas porque incomodou um Ministro; que é também normal que o mesmo Ministro, a ter razões de queixa, tenha recorrido a semelhante expediente e não aos tribunais; que Marcelo não pode comentar nada desacompanhado de um contraditor (coisa que, aliás, esses blogonautas não têm, tal como Santana Lopes não tinha nos seus tempos de opinador); e que incidentes como a censura de Marcelo, o bloqueio às activistas holandesas pró-aborto e o exílio dos bonecos da Contra-Informação da RTP para horários indecentes são apenas uma sucessão de coincidências inocentes. Bom senso para quê? Qualquer dia, pode ser que estes mesmos blogonautas se manifestem em solidariedade com os fascistas pela invasão da Etiópia ou com a Bruxa Má pelo envenenamento da Branca de Neve.

2004-10-12

Alberto João Jardim

Hoje, gostaria de aproveitar esta crónica (detesto o termo post, é tão impessoal!) para contar uma história pequena e rigorosamente verdadeira a propósito do nosso Alberto João Jardim. A ideia foi-me instigada por alguns comentários maldosos e injustos que se podem ler na blogosfera a respeito do Presidente madeirense, que pelos vistos muitos só conhecem das parangonas – nem sempre verdadeiras – dos nossos tablóides. Jornalistas, opinadores e intelectualidade do Continente gostam de falar, sempre em tom de altivez desdenhosa e cheios de superioridade moral, de um pequenito tirano malcriado, prepotente e beberrão e tal, mas será que as coisas são mesmo assim como dizem?

Tudo começou há um punhado de anos atrás, quando eu ainda era um advogado estagiário tímido, inexperiente e sobretudo jovem. Eu era o defensor de turno no Tribunal de Comarca do Funchal, quando me chegou subitamente às mãos um processo judicial curioso: o meu cliente (cujo nome não revelarei, por razões óbvias) era um homem humilde e de poucas posses e estava nessa tarde de tal modo nervoso que não dizia coisa com coisa. Não faz mal, esperamos pela audiência para que se esclareça tudo. Entra o juiz, começam os trabalhos e a surpresa é espantosa: do outro lado do litígio, estão nada mais nada menos que Alberto João Jardim e um seu colaborador (cujo nome também não revelarei, por razões igualmente óbvias)!

Na manhã seguinte, a minha estratégia é conseguir que os dois ilustres proponentes desistam da acção. Mas será possível fazê-lo num prazo exíguo de algumas horas? Telefono para a residência oficial do Governo e imaginem o espanto da voz do outro lado quando digo: «olhe, faz favor, queria falar com o Dr. Alberto João Jardim». Como eu nem sequer dispunha de um faxe, lá fui a correr para expor pessoalmente o caso aos chefes de gabinete, todos com cara de espanto face à audácia do jovem causídico. Durante a tarde, o suspense é insuportável. Felizmente, tudo acabará em bem: os queixosos acedem aos meus pedidos, o cliente é absolvido e o processo é resolvido da forma mais civilizada possível, como sempre sucede entre pessoas de bem. Surpreendidos? Afinal, talvez Jardim não seja o filho da mãe arrogante que alguns julgam…

Bem-vinda, Catherine Breillat!


Hoje, a cineasta Catherine Breillat visitou Lisboa e trouxe consigo mais um filme controverso: Anatomie de l'enfer, com Amira Casar e o ex-actor porno Rocco Siffredi. Goste-se ou não, todos temos de saudar as imagens audaciosas desta realizadora, para quem «a pornografia não existe» e com quem, no final da sessão, pudemos trocar algumas palavras bem simpáticas. Numa terra cada vez mais intolerante como é a nossa, a vinda de Breillat foi uma lufada de ar fresco.

2004-10-10

Algumas banalidades a propósito do caso Marcelo

Conheci pessoalmente Marcelo Rebelo de Sousa aquando da minha passagem pela Faculdade de Direito de Lisboa e guardo impressões ambíguas a respeito do multifacetado professor. Aqui, há que fazer distinções. O Marcelo-pessoa é um ser cordato, afável, educado e generoso, que se dá bem com toda a gente. O Marcelo-docente, sábio e íntegro, é unanimemente adorado por todos: não é por acaso que os alunos enchem todo o amplo Anfiteatro 1 da Faculdade durante as suas aulas teóricas. Já o Marcelo-comentador, apesar da extensão do seu saber, é demasiado comprometido para o meu gosto e até falho de algum bom senso: por exemplo, a respeito do escândalo da Casa Pia, foi sempre um apoiante declarado de Souto Moura (excepção feita ao escândalo das cassetes) e demasiado brando na apreciação dos dislates do juiz Rui Teixeira. Mesmo assim, sou daqueles que lamentam o seu afastamento da tribuna do Jornal Nacional da TVI.

E que se pode dizer a respeito deste caso Marcelo? Algumas conclusões foram tão óbvias e regurgitadas tantas vezes que já se converteram em banalidades: que não estamos apenas perante uma inocente questão interna na vida de uma empresa privada; que Santana Lopes deve um pedido de desculpas ao país; e que, ao contrário do que afirmou Luís Filipe Menezes, não houve nenhum exagero da parte de Marcelo, pois nenhuma outra saída restava a uma pessoa digna e livre. Se algum mérito tudo isto teve, terá sido apenas o de inspirar algumas das palavras mais eloquentes dos nossos melhores comentadores. Pacheco Pereira escreveu que «calar Marcelo seria um atentado efectivo à liberdade de expressão no seu conjunto e um péssimo sinal para a saúde da nossa democracia». Eduardo Prado Coelho afirmou que «não basta ser-se do partido do Governo, é preciso aparecer como porta-voz do pensamento do Governo. O que a médio prazo pode levar à esquizofrenia, dado que o Governo tem em si pensamentos diversos, e o próprio Santana Lopes pensa coisas diferentes no mesmo dia (o que mostra como é um espaço de liberdade e pluralismo)». Na blogosfera, podemos ler outras opiniões acertadas aqui, aqui e aqui.

2004-10-08

O excesso de poderes do Ministério Público

Uma das coisas mais irritantes no actual Procurador-Geral da República, Souto Moura, é a sua mania de falar por enigmas. Souto Moura, a Esfinge, gosta de falar à Imprensa e de aparecer, mas sempre que o faz, usa uma linguagem tão rebuscada e inacessível que faria empalidecer de espanto o mais hermético dos alquimistas. Talvez porque se não fosse assim, ficaria à vista de toda a gente o indivíduo arrogante, prepotente e vaidoso que ele na realidade é. Foi o que sucedeu aquando da sessão comemorativa (?) dos 25 anos do estatuto do Ministério Público, a propósito das críticas movidas pelo Presidente Jorge Sampaio.

As declarações de Sampaio reavivaram a velha polémica do excesso de poderes do Ministério Público em Portugal: após criticar o corporativismo dos agentes da justiça (todos, sem excepção), que «esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover», o Presidente acrescentou que «o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura de direitos fundamentais». E que teve Souto Moura a dizer a este respeito? Como é do seu timbre, a Esfinge mostrou-se avessa a tudo o que seja mudança, pois «devemos preservar esta estrutura de que fomos pioneiros». Acrescentou mesmo que as «democracias inteligentes do centro da Europa procuram o nosso modelo», pelo que devemos concluir que as democracias que não seguem o dito modelo, como as anglo-saxónicas, são estúpidas!

Na sua concepção tradicional, o Ministério Público era um mero departamento do poder executivo, hierarquicamente subordinado ao governo; os seus membros não eram por isso considerados como magistrados equiparados aos juízes ou magistrados judiciais, mas sim como agentes administrativos equiparados no essencial aos funcionários públicos; não ocupava um lugar destacado no organograma do sistema judicial; não havia uma carreira privativa dos seus agentes; o seu dirigente máximo, o Procurador-Geral da República, não possuía um estatuto especial ou notoriedade pública, pois era apenas um dos altos funcionários do Ministério da Justiça; enfim, não gozava de autonomia face ao governo e os seus agentes formavam uma hierarquia administrativa dirigida pelo Procurador-Geral, que por sua vez dependia do Ministro da Justiça.

Com a Constituição de 1976, o legislador reagiu contra os excessos de centralização e concentração de poderes praticados pela Ditadura e, com isso, o Ministério Público veio a conquistar um conjunto de novos poderes. A expansão desses poderes foi, porém, desmesurada. No essencial, a Constituição consagrou-lhe um capítulo próprio; equiparou-o à magistratura judicial, atribuindo-lhe estatuto próprio e chamando aos seus agentes «magistrados»; estabeleceu que a nomeação, promoção e colocação destes magistrados, bem como a acção disciplinar sobre eles, deixou de pertencer ao governo e passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da República, num claro regime de auto-governo profissional. A legislação ordinária foi ainda mais longe e conferiu-lhe um regime de autonomia em relação aos órgãos de poder central, regional e local; desvinculou-o da obediência hierárquica ao governo; construiu uma carreira de magistrados paralela à magistratura judicial e dela independente; e permitiu-lhe exercer funções próprias do poder judicial, bem como passar a controlar, em substituição do Ministro da Justiça, a Polícia Judiciária.

Estas alterações suscitam um número infindável de problemas, interrogações e perplexidades, sobretudo no campo jurídico-penal – que não é o domínio exclusivo da actuação do Ministério Público, mas é a sua face mais visível. Serão referidos dois pontos em particular: a invasão da esfera das atribuições dos tribunais; e a assunção de poderes de investigação criminal.

Quanto à invasão de atribuições dos tribunais, a inconstitucionalidade é flagrante: porque viola o princípio da separação de poderes; porque origina grandes promiscuidades entre juízes e procuradores, que na prática discutem e decidem entre si os processos, no segredo dos respectivos gabinetes e sem a presença dos advogados («uma mão lava a outra»); porque gera desigualdades tremendas entre acusação e defesa, num processo penal que deveria ser pautado pela igualdade de armas e lealdade. Tão flagrante é essa ingerência, que a lei chega a mesmo a conceder ao Ministério Público a possibilidade de decidir na determinação da medida concreta das penas, que deveria ser o último reduto dos poderes cometidos aos juízes: o Código de Processo Penal atribui-lhe a possibilidade de remeter determinados processos-crimes para julgamento por um tribunal singular, se entender que não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.

Este estado de coisas tem produzido resultados graves ao nível da tutela dos direitos fundamentais, como salientou Sampaio na sua intervenção. A presunção de inocência cai por terra e na prática inverte-se o ónus da prova: uma acusação equivale a uma condenação e, em vez de caber ao Estado a incumbência de provar culpas, passa a ser o arguido quem deve demonstrar a sua inocência. E ai daquele que não consiga comprovar, com assinaturas reconhecidas notarialmente e tudo, todos os passos que deu em todos os dias do ano, pois bastará um procurador sem escrúpulos e um punhado de depoimentos acusadores para encarcerá-lo durante mais de um ano e sem direito a julgamento – lembram-se de Carlos Cruz?

A assunção pelo Ministério Público de poderes de investigação criminal e a colocação da Polícia Judiciária sob o seu controlo e fiscalização têm também gerado inúmeros problemas: ineficiência na perseguição dos criminosos, confusão orgânica, sobreposição funcional e conflitos permanentes. No processo da Casa Pia, a descoordenação foi evidente. Antes da escandalosa detenção de Carlos Cruz, a Procuradoria foi avisada pela Polícia Judiciária da fragilidade das provas acusatórias. Um relatório de Artur Pereira, director da Directoria de Lisboa da PJ, referiu então a exiguidade de provas e ausência de elementos básicos em qualquer investigação, nomeadamente «as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos, a falta de realização […] de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e a análise dos próprios telemóveis» (in Jornal de Notícias de 27.06.2004, pág. 8). Não obstante, o procurador João Guerra afastou qualquer intervenção da Judiciária, no que foi apoiado por Souto Moura.

2004-10-05

Werther

O realizador Max Ophuls é uma das personalidades mais reverenciadas pelos cinéfilos. Todos reconhecem a forma generosa como o criador de Lola Montès enriqueceu o cinema com a sua sabedoria, inteligência viva e sensibilidade cosmopolita. Porém, nem sempre foi um cineasta consensual: apesar da admiração entusiástica que desde cedo granjeou junto dos cinéfilos dos Cahiers, Ophuls é o exemplo acabado de criador cujo merecido reconhecimento só adveio após a sua morte. Falou-se demasiadas vezes de um cinema pretensamente antiquado e pueril, sem que se tivesse compreendido que a sua obra não abordava senão temas essenciais e intemporais: o amor, o prazer, o desejo. Ophuls lamentou muito particularmente a impaciência estética do grande público consumidor de cinema, o mesmo que visiona filmes como quem traz um cigarro à boca, «sem saber já se o fumam ou guardam enquanto falam».

O seu percurso biográfico foi igualmente atribulado: eterno judeu errante, Max Ophuls foi vítima da intolerância e viu-se muitas vezes constrangido a partir, tendo por isso repartido a sua vida pelos destinos mais diversos, como a Alemanha, a França ou os Estados Unidos. Os anos foram todavia generosos com Ophuls e o mundo parece finalmente ter redescoberto a obra e talento deste cineasta do movimento. A seu respeito, é frequentemente reaproveitada uma afirmação de Goethe referente a Mozart: «existe em todas as suas composições uma força criativa que tem atravessado sucessivas gerações e que não parece dever ficar esgotada num futuro próximo».

Um dos Autores por quem Ophuls sempre nutriu uma admiração profunda foi precisamente Johann Wolfgang Goethe, pelo que a decisão de filmar a sua obra-prima A Paixão do jovem Werther (Die Leiden des jungen Werther, 1774) é pouco surpreendente, mas nem por isso menos arrojada. Com efeito, este Werther assinala o nascimento do romance moderno na Alemanha e é, juntamente com Fausto, a obra mais lida de Goethe. O efeito que produziu no seu tempo foi inimaginável: se os leitores anónimos acolheram Werther com um entusiasmo febril, já muitos intelectuais e teólogos ortodoxos difamaram a obra por causa do seu pretenso enaltecimento do suicídio como «engodo de Satanás» e gritaram pelo censor. Seguiu-se uma série infindável de imitações, contrafacções e paródias.

A publicação do livro extravasou mesmo a esfera do estritamente literário para originar o que se designou como wertherismo, para uns uma moda e para outros uma verdadeira praga: copiava-se a indumentária de Werther, bebia-se por chávenas de porcelana decoradas com cenas idílicas retiradas do romance ou (pasme-se!) cometia-se suicídio à imagem do desafortunado protagonista. De facto, deu-se um considerável número de suicídios entre os leitores do romance, o que levou Goethe, aquando da segunda edição (1775), a antepor ao livro a advertência admoestadora: «Sê um homem, e não me sigas!». A influência do romance não se circunscreveu ao século XVIII e Werther perdurou como um desafio para as gerações vindouras, tendo a sua forma e conteúdo inspirado muitos autores dos séculos XIX e XX.

Werther foi também várias vezes adaptado ao cinema. A versão de Ophuls data de 1938 e é um prodígio de sensibilidade e inteligência: Goethe teria seguramente apreciado esta magnífica obra, que enverga com orgulho as marcas do talento do seu realizador! Um dos momentos mais inesquecíveis é a célebre sequência em que Lotte descobre e lê os versos apaixonados de Werther. O cauteloso travelling é um dos mais belos e expressivos de sempre e sublinha o carácter contido, não sensual da relação dos dois protagonistas, que nasce e existe através de um poema de amor. A subsequente recusa de Werther em beijar a mulher que diz amar sublinha esta singularidade do relacionamento entre ambos, assim como a ambivalência do comportamento do protagonista: se por um lado, Werther sabe argumentar racionalmente como na discussão sobre suicídio, por outro lado é muitas vezes emocional, excessivo e sentimental, e bem menos sereno que a sua Lotte, que pensa em termos de planeamento lógico mais do que ele e que faz a escolha mais racional para casar. É esta natureza mista do seu carácter que faz de Werther um protagonista tão fascinante, intrigante e invulgar.

Avelino Ferreira Torres

Um dos maiores atractivos da deliciosamente decadente Quinta das Celebridades da TVI é a presença de Avelino Ferreira Torres. Gosto muito do Presidente do Marco pela sua frontalidade, pela sua genuinidade e pelos serviços que prestou ao Povo da terra que o elegeu e acarinha. Mais: a sua aceitação do convite da TVI, ao arrepio de todos os «parece mal», demonstra sentido de humor e este revela inteligência. Quanto às tropelias e problemas judiciais mais recentes de Avelino, não fizeram nada para beliscar esta minha admiração, bem pelo contrário. Aliás, uma das suas afirmações mais argutas foi proferida precisamente à porta do tribunal: questionado por um jornalista sobre onde estava à data dos alegados crimes, o autarca respondeu a semelhante atrevimento da forma mais diplomática possível ao afirmar «olhe, estive na casa de banho».

2004-10-04

I'll See You In My Dreams


Os dicionários definem zombie como um cadáver ao qual se atribui a aparência de vida através de feitiçaria. A origem destes zombies está no culto haitiano do vodu, que mistura ritos e crenças africanas com práticas rituais católicas: a esmagadora maioria da população do Haiti pratica ainda hoje as duas religiões sem que encontre nisso qualquer oposição. Humfu é o templo vodu, sede de todas as cerimónias. Os sacerdotes são Hungan (homem) e Mambo (mulher), Hunsi são as esposas de deus, auxiliares sagradas dos Loa (deuses e espíritos). Os Hungenikon (rainha do coro) encarregam-se dos cantos litúrgicos. La-place é o mestre de cerimónias, la confiance é confidente e mão direita de Hungan. Os fiéis são pititt-feuilles (folhinhas), pessoas tratadas no Humfu, e pittit-caye (folhas de casa). Poder-se-iam acrescentar ainda os Zombi e Bocor (curandeiro e feiticeiro).

A finalidade primacial das cerimónias de vodu é a possessão de uma pessoa por um Loa, bom ou mau: «Loa monta a cavalo» (é a expressão habitual para designar este fenómeno) e faz o que quer da pessoa que encarne. Ao começar a cerimónia, o sacerdote pinta o seu rosto de branco utilizando uma mistura de terra de cemitério e cinzas de ossos humanos. O seu propósito é enviar os mortos contra um qualquer inimigo. Espalhar o pó à porta da casa da vítima ou num caminho que costume atravessar será suficiente para provocar a sua paralisia ou morte. Já a criação de um zombie exige a deslocação da alma. A alma, segundo a religião vodu é composta de duas entidades: o gross bon-ange e o ti bon-ange (o grande e o pequeno anjos bons). O primeiro é a alma essencial de uma pessoa que forma o seu carácter, enquanto que o segundo forma a sua consciência. Durante a possessão, a alma é deslocada. Numa possessão normal, o gross bon-ange será restaurado pelo sacerdote, mas se não o for, a alma deslocada poderá cair em mãos malignas e daí resultar a criação de um zombie.

As populações haitianas levam o seu vodu e a criação de zombies muito a sério. A derrota do exército napoleónico pelos escravos africanos em 1801 é explicada por muitos pelas práticas do vodu e todas as tentativas da Igreja Católica para erradicar o «perigo sincretista» fracassaram. Ainda hoje, o artigo 246º do Código Penal Haitiano dispõe que «é também considerado intenção de matar o uso de substâncias mediante as quais a pessoa não é morta mas reduzida a um estado de letargia, mais ou menos prolongada, independentemente do modo como as substâncias foram administradas ou quais foram os seus resultados posteriores. Se após o estado de letargia, a pessoa for enterrada então as tentativas serão consideradas homicídio». Ainda mais explícito é o artigo 249º que determina que «será também considerada tentativa de homicídio o uso de drogas, hipnose ou qualquer outra prática oculta que produza coma letárgico ou sono sem vida; e se essa pessoa tiver sido enterrada será considerado homicídio, qualquer que seja o resultado que advenha posteriormente».

A prática do vodu tem fascinado os ocidentais e suscitou um número incontável de estudos. Uma obra particularmente influente foi o livro The Magic Island, de William Seabrook, que inspirou os irmãos Halperin mais o seu filme White Zombie (1932). A figura de Seabrook é quase tão misteriosa e fascinante quanto as cerimónias de vodu que foram objecto das suas investigações: diz-se mesmo que participou nessas cerimónias e que terá comido carne humana, mas qualquer que seja a verdade, levou-a consigo para o túmulo após o seu suicídio em 1945. Mais recentemente, uma reportagem de Geraldo Rivera pôde mostrar ao mundo os segredos dos rituais vodu na selva haitiana. As vítimas eram esfregadas com uma poção derivada de um peixe tropical, que as colocava num transe de quase-morte. O médico do programa descobriu que a poção continha uma droga que era também empregue para descontrair o corpo durante intervenções cirúrgicas. As vítimas eram enterradas vivas durante várias horas ou mesmo um dia e depois desenterradas. Muitas estavam ainda vivas, mas padeciam de graves lesões cerebrais devido à falta de oxigénio na sepultura. É aqui que encontramos a origem do característico olhar vazio dos zombies e a sua estupidez.

Este fascínio mórbido chegou rapidamente ao cinema. Os filmes White Zombie e I Walked With a Zombie (1943), do grande Jacques Tourneur, são considerados os pioneiros deste sub-género, mas é ao americano George A. Romero mais a sua grandiosa trilogia dos mortos que devemos o moderno filme de zombies. Tudo começou em 1968, com um pequeno filme a preto e branco chamado A Noite dos Mortos Vivos. A violência gráfica das suas imagens era algo de nunca visto e mudaria para sempre a feição do cinema de terror: pela primeira vez, o público confrontava-se com monstros que devoravam vítimas humanas, crianças que cometiam matricídio, pessoas que eram incendiadas vivas e ninguém saía dali com vida. O terror continuou com A Maldição dos Mortos Vivos (1979) e a sua guerra declarada ao consumismo desenfreado: a acção tem lugar num grande centro comercial cercado por zombies que buscam aí a vacuidade e o conforto das suas vidas passadas. O filme Day Of The Dead (1985) fala-nos de uma humanidade já inteiramente subjugada ao domínio dos zombies e concluiu brilhantemente a série.

O impacto dos filmes de Romero foi tremendo e o entusiasmo pelos zombies alastrou como uma epidemia pelo mundo inteiro. A Maldição dos Mortos Vivos, co-produzido por Dario Argento, foi um filme particularmente influente em Itália e aí inspirou grandes cineastas como Lucio Fulchi, que soube aproveitar admiravelmente o lado grotesco de Romero. Em Espanha, Amando de Ossorio, com os seus cavaleiros templários, e Jesus Franco são nomes incontornáveis, mas o grande filme zombie de referência é ainda e sempre No Profanar El Sueno De Los Muertos (1974), de Jorge Grau. O cinema francês deu-nos Jean Rollin e os neozelandeses o filme Death Warmed Up (1985) de David Blyth. Os cineastas asiáticos têm sido, em contrapartida, pouco receptivos ao cinema zombie, excepção feita ao célebre A Chinese Ghost Story (1987), de Ching Sju Tung. Mais recentemente, os ingleses fizeram Shaun Of The Dead (2004), unanimemente aplaudido pela crítica internacional.

Graças ao excelente filme I’ll See You In My Dreams (2003), escrito e produzido por Filipe Melo, o cinema português pode agora juntar-se a esta lista prestigiosa. A história é simples e muito bem contada. Numa aldeia inexplicavelmente assolada pela praga dos zombies, o pobre e honesto Lúcio (Adelino Tavares) parece ser a única pessoa capaz de lhes fazer frente. Mas os problemas de Lúcio não acabam aqui: na cave da sua casa, esconde Ana (Sofia Aparício), sua adorada mulher, agora transformada num demónio violento e disforme. O desafortunado protagonista vai afogando estas mágoas no bar local, onde os estranhos habitantes da povoação buscam refúgio. É aqui que um padre zarolho (o sempre excelente Rui Unas) vem a ser abatido sem misericórdia, após o seu contágio pelos zombies. E é também aí que, numa noite, Lúcio redescobre o amor junto de Nancy (São José Correia). Porém, a relação de ambos é ameaçada pelas medonhas criaturas e pelos ciúmes mortais da sua mulher. Quando Lúcio se vê forçado a confrontar os zombies por uma última vez, tudo terminará da forma mais trágica e surpreendente possível!

As originalidades deste argumento de Filipe Melo, Ivan Vivas e Miguel Angél Vivas começam com a estrutura. Os filmes de terror dividem-se normalmente em três actos que documentam a queda e reorganização de uma determinada ordem social. O primeiro acto fornece um retrato da ordem cessante e descreve-nos uma comunidade ainda em paz, que tanto pode ser uma cidade normal (Halloween, Gremlins) como um grupo isolado (Veio do Outro Mundo, Sexta-Feira 13, Deliverance), ou mesmo uma pessoa singular (Carrie, The Vanishing). O segundo acto testemunha a chegada de um monstro que traz consigo o caos, a violência e a destruição da ordem vigente. O terceiro e último acto ocupa-se da resolução dos conflitos e da instauração de uma nova ordem, que pode ser idêntica ou não à que existia no início do filme; claro que a nova ordem também não tem de ser necessariamente melhor que a precedente, pois é o seu processo de alteração e reconstrução que define e caracteriza o género de terror. No caso de I’ll See You In My Dreams, as coisas começam pelo meio, pois os monstros já existem e estão embrenhados nos hábitos e na cultura dos aldeões: na sua primeira fala em off, o protagonista queixa-se do isolamento, do quotidiano entediante e da «merda dos zombies».

Todo o filme de terror necessita de um monstro e quanto mais medonho, melhor. No caso de I’ll See You In My Dreams, os zombies de Filipe Melo são particularmente assustadores: porque o autor sabe bem que o medo mais poderoso é o do desconhecido, em nenhum momento nos é revelada a origem dos bichos. Inteligentemente, o argumentista soube manter a boca calada e poupar o espectador às enfadonhas explicações da praxe, que são geralmente de quatro ordens: naturais, sobrenaturais, psicológicas ou científicas.

As causas naturais põem em relevo a pequenez e a insignificância do ser humano perante as forças da Natureza: a erupção vulcânica de Volcano, o tubarão assassino de Jaws ou o terramoto de Earthquake. Os monstros sobrenaturais, como os Cenobitas de Clive Barker, têm um apelo normalmente limitado, pois requerem do espectador um certo grau de imaginação e uma capacidade de alheamento da vida e são relativamente poucos os que estão suficientemente livres da anestesia da rotina diária para poder responder aos subtis chamamentos do exterior. As causas psicológicas são geralmente as mais assustadoras de todas, pois radicam inteiramente no mundo real: os assassinos psicopatas de Psycho ou O Massacre do Texas. As causas científicas surgem da própria actuação humana: Dr Jekyll, Dr X, Fu Manchu ou Professor Quatermass encarnam os perigos da ciência sem ética. Nada disto surge em I’ll See You In My Dreams, que conserva assim intocado todo o seu mistério e fascínio.

O primeiro filme de terror português é já um fulgurante sucesso internacional e veio desenterrar novas perspectivas de evolução para um sub-género actualmente em crise. Enquanto que muitos dos novos realizadores optaram, sem grande sucesso, por uma abordagem mais sisuda e têm feito dos seus filmes de zombies o retrato de uma sociedade decadente e corrupta, Filipe Melo prefere o humor desbragado de obras como O Soro Maléfico (1985), O Regresso dos Mortos Vivos (1985) ou A Morte Chega de Madrugada (1987). O seu I’ll See You In My Dreams é uma pequena maravilha que aterroriza e diverte como poucos, apesar das limitações financeiras que atormentaram a sua produção. Agora, imaginem só o filme que Filipe Melo faria se tivesse ao seu dispor um orçamento decente!

António Cartaxo

Era só para dizer que o nosso António Cartaxo é um dos comunicadores mais notáveis que temos. A extensão do seu saber sobre música, a sua capacidade de síntese e o seu sentido de humor fazem dele uma das personalidades da rádio que mais admiro. Agora, os apreciadores de música podem ouvir as suas crónicas e deliciar-se com as suas magníficas histórias todos os dias na Antena 2. Obrigado, António Cartaxo!

2004-09-24

O Código Da Vinci

O best seller mundial O Código Da Vinci, de Dan Brown, continua bem vivo e a suscitar polémicas furiosas. Desta feita, a revista Visão de 23.09.2004 publica a seu respeito um texto crítico bombasticamente intitulado As mentiras de Dan Brown e O Código da Vinci desmascarado. Mais valia, porém, que tivesse ficado calada: o libelo acusatório de uma tal de Marie-France Etchegoin é tudo menos objectivo e fica-se por um amontoado invejoso de meias verdades e incompleitudes. Metade do texto de Etchegoin é uma mera síntese do enredo delineado por Brown, entremeada com as apreciações biliosas que demonstram bem a parcialidade e falta de seriedade intelectual da autora: «Jesus dormia, então, com Maria Madalena e tiveram muitos pequenos merovíngios». A outra metade ocupa-se da diabolização da pessoa de Pierre Plantard, já falecido, e do seu Priorado do Sião (que são, aliás, figuras relativamente secundárias nesta obra ficcional) e nisso – apenas nisso! – municia o ataque à credibilidade de Dan Brown. Claro que, como tudo o que é humano, este Código Da Vinci não é perfeito; não obstante, o Autor precedeu o seu texto de um trabalho de pesquisa notável, cujas conclusões tiveram o condão de suscitar em todo o mundo controvérsias apaixonantes – sem necessidade de, ao contrário de Etchegoin, recorrer ao estardalhaço e às calúnias.

Kafka e a sua cidade


Kafka, o escritor que influenciou como nenhum outro as literaturas de todo o mundo, quase nunca saiu de Praga. Faltam à sua biografia as grandes deslocações, as viagens memoráveis ou o contacto com culturas exóticas: à semelhança de Stifter ou Yeats, a sua existência foi provinciana e local. A relação do escritor com a sua cidade natal foi, todavia, sempre ambígua: Praga, essa «mãezinha com garras afiadas», era um local que o sufocava e no qual sabia que a pureza e a felicidade não eram possíveis. Mesmo assim, foi aí onde optou por passar a quase totalidade da sua curta vida (1883-1924). Exceptuam-se diversas viagens de serviço, algumas viagens culturais, muitas estadas em casas de repouso, meio ano em Berlim, alguns meses no campo na Boémia e nada mais. «Praga não me larga», escrevia Franz Kafka já aos dezanove anos.

A cidade que Kafka transformou numa metrópole no mapa da literatura nunca é expressamente nomeada na sua obra; aliás, os locais das suas histórias são raramente identificados. Mesmo assim, Praga está inequivocamente presente em obras como A Grande Muralha da China, que é muito claramente baseada num célebre monumento de Praga, a Muralha da Fome, no Alto de São Lourenço: uma muralha que foi construída, sem qualquer finalidade, por desempregados, a quem se devia dar ocupação. A casa de Gregor Samsa em A Metamorfose reproduz fielmente o apartamento da Niklasstrasse que Kafka compartilhava com os seus pais: o guarda-fatos, a secretária e o divã, o hospital que se via da janela, as luzes da rua que se reflectiam no tecto do quarto, as portas, a disposição das outras divisões do apartamento – tudo correspondia. O seu mais antigo fragmento de um conto, Descrição de uma Luta, tem por assunto um passeio nocturno pela cidade.

Quando Kafka nasceu em 1883, Praga ainda fazia parte do Império dos Habsburgos da Boémia. A cidade era um ponto de cruzamento de culturas: numerosas nacionalidades, línguas e orientações políticas e sociais misturavam-se e coexistiam para o melhor e para o pior. Um forte afluxo de habitantes checos tinha transformado esta cidade, outrora predominantemente alemã, numa urbe quase puramente checa onde se mantinha uma minoria de habitantes de língua alemã, dos quais mais de metade eram judeus: a Praga alemã foi também uma Praga judia.

Se no centro da cidade ainda se falava predominantemente alemão, na restante cidade a comunicação era feita quase inteiramente em checo. Esta situação específica explica a linguagem sucinta, fria, indiferente e lacónica de Kafka, que contrastava com o estilo artificioso e emproado dos seus contemporâneos. O alemão de Praga estava consideravelmente afastado do alto alemão não só pela pronúncia, mas também pela construção e sobretudo pelo vocabulário: sob a pressão do isolamento, o alemão em Praga tornava-se cada vez mais um idioma de dias de festa subvencionado pelo Estado e, com isso, era significativa a perda de vocabulário. Inversamente, a estranheza de Kafka perante as coisas tem também causas linguísticas: esse alemão seco, de papel, era incapaz de intimidade com o mundo.

A situação política e social era periclitante e Kafka conheceu Praga como uma cidade profundamente dividida: a classe superior (alemã) – nobreza, militares, indústria – conservadora ou mesmo reaccionária; a classe inferior (checa) nacional-democrata ou nacionalista; pelo meio, a classe média liberal, mais desamparada do que outra coisa (alemã, judia e também checa numa pequena parte). O nacionalismo checo estava a erguer-se contra a predominância alemã e o símbolo mais visível deste movimento de libertação foi a Exposição Regional da Boémia de 1891, no parque do Jardim das Árvores, para a qual foi também construído o mirante no Alto de S. Lourenço, assim como dois funiculares; no mesmo ano, desapareceram das ruas as últimas placas bilingues. Nem as crianças escapavam à disputa entre nacionalidades e um colega de escola de Kafka contou como a pancadaria entre alunos checos e alemães estava na ordem do dia.

Para a família judia de Kafka, apanhada no meio deste fogo cruzado, a vida era um acto de delicado equilíbrio. É aliás muito significativo que Franz tenha nascido na Casa da Torre, como que a documentar a diversidade de proveniências dos seus pais: o pai Herrmann Kafka, oriundo do proletariado provinciano judeo-checo, morava nas ruelas sórdidas do gueto, já há muito abandonado e que, duas dezenas de anos mais tarde, seria definitivamente demolido; e a mãe Julie Löwy, oriunda da abastada e instruída burguesia judeo-alemã, morava numa das mais belas casas no Ring da parte antiga da cidade, na casa de Smetana. Kafka nasceu precisamente na fronteira entre estas duas partes da cidade. Nos seus primeiros tempos, a família viveu modestamente, morou em casas muito pequenas e mudou-se com frequência. Depois, veio a escola primária, o liceu e o estudo do Direito na Universidade Carlos de Praga, que converteu o jovem Franz em «Herr Doktor Kafka». Em Julho de 1908, entra como funcionário ajudante no Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho do Reino da Boémia em Praga.

Trabalhar de dia significava escrever à noite no apertado apartamento onde ainda vivia com os pais e as três irmãs. Isso dificilmente permitia a concentração: «Quero escrever e há um tremor constante na minha testa. Estou sentado no meu quarto, que é o quartel-general de todo o barulho do apartamento. Há portas a bater por toda a parte… o pai deita abaixo a porta do meu quarto e atravessa-o com a ponta do roupão de banho a arrastar atrás dele. A Valli grita do vestíbulo como se fosse de um lado para o outro de uma rua de Paris a perguntar se o chapéu do pai foi escovado. A porta da frente faz um barulho como o de uma garganta inflamada. Finalmente, o pai foi embora, e tudo o que resta é o pipilar mais terno e desesperado dos dois canários.» A única solução era uma espécie de auto-hipnose ou emigração interior que simultaneamente o desligava do mundo e lhe permitia assimilar tudo aquilo.

Esta necessidade de silêncio e isolamento, mais um sintoma da angústia perante o mundo exterior, explica a extraordinária inconstância da sua produtividade. No período entre Fevereiro de 1913 e Julho de 1914, não surgiu uma única obra importante. «Quase não há palavras que eu escreva que estejam de harmonia com as outras; as consoantes chocam entre si com um barulho de latas e as vogais acompanham-nas cantadas, como o cantar dos pretos na exposição. As minhas dúvidas dispõem-se em círculo em volta de cada palavra e vejo-as antes de ver a palavra».

O ano de 1912 foi, em contrapartida, o mais prolífico da carreira de Kafka. Nas semanas compreendidas entre 22 de Setembro e 6 de Dezembro (portanto, em setenta e quatro dias), foram produzidas mais de quatrocentas páginas manuscritas. No mesmo espaço de tempo, Kafka escreveu à noiva mais de sessenta cartas, muitas vezes com mais de dez páginas. Além de A Metamorfose, foi também o ano de O Desaparecido e A Sentença.

A data de 22 de Setembro de 1912 foi particularmente gloriosa. Tinha passado a tarde num aborrecido compromisso familiar: os parentes do cunhado tinham vindo visitá-lo pela primeira vez; nunca abriu a boca durante a visita e apetecia-lhe gritar de náusea e desespero. Depois do jantar, por volta das dez, sentou-se à secretária. Tinha a intenção de descrever uma guerra; um jovem devia ver da janela a multidão aproximar-se, quando a caneta, quase sem dar por isso, começou a escrever A Sentença, uma história de pais e filhos onde transparecia pela primeira vez o seu complexo edipiano. Teve logo a impressão de que já não se tratava, como nos primeiros tempos, de um jogo «com a ponta dos dedos». Aquele conto estava escrito com todas as suas energias, com o espírito, a alma e o corpo. Era um autêntico parto, coberto de sangue e muco. As forças do seu inconsciente, que até então tinha contido e reprimido, vinham subitamente à luz, derrubando as barreiras que o entravavam.

Kafka escreveu A Sentença toda a noite sem se interromper, com as pernas firmes e rígidas. Se tivesse parado por um instante, aberto um livro, levantado ou tivesse distraído, teria bloqueado o acesso às verdades silenciosas. Escrever era um fluxo imparável: agarrado à secretária como a uma rocha ou a um sepulcro, não podia levantar a mão do papel, porque de outro modo o conto perderia a fuga, o ímpeto, o andamento natural e contínuo, a mágica fluidez da respiração que tanto havia desejado. Às seis da manhã, quando a criada atravessava pela primeira vez o vestíbulo, escrevia já o último período. Naquelas oito horas, Kafka estabeleceu para sempre a sua concepção da literatura e a sua ideia de inspiração poética: «Só assim se pode escrever, numa entrega total, com uma completa abertura de corpo e de alma».

O sono tornava-se para Kafka um privilégio inacessível. Sabia que, de noite, os homens bons dormem, fechados no sono como crianças e protegidos por mão celestial contra os assaltos dos incubos. Os homens que não dormem são culpados porque não conhecem a paz da alma e são torturados pela obsessão. Kafka, como todos os culpados, não dormia. Esta insónia era, porém, também a sua força. Quem mergulhava em sonos tão inquietos e agitados estava em relação com os demónios da noite e os poderes que se escondem na escuridão, com as forças que enchiam o seu inconsciente; e ele tinha que evocá-las, como na noite extraordinária em que escreveu A Sentença.

Só a noite, porém, não lhe bastava. Era como se todo aquele silêncio não fosse suficiente e que «a noite fosse ainda pouco noite». Kafka teria desejado cancelar o dia e o Verão, a madrugada e o crepúsculo, prolongar as trevas para além dos seus curtos limites, transformando-as num único e interminável Inverno. Imaginou então o seu local ideal de trabalho, isolado do mundo: uma cave hermeticamente fechada em que a comida lhe seria trazida e deixada atrás da porta mais distante. Só teria de percorrer uma curta distância para a recolher e comer antes de retomar a sua criatividade sem ser estorvado pelo contacto humano. Assim é o eu de O Covil, uma das poucas obras de Kafka na primeira pessoa. A criatura (talvez um texugo, uma toupeira ou uma doninha) construiu para si própria um covil com túneis interligados, montes de carne armazenada e a tranquilidade de uma fortaleza. Este refúgio é todavia ameaçado por inimigos que vêm não só do exterior, mas também das próprias entranhas da terra. Eles nunca foram vistos mas estão lá e um deles parece ter dado pela sua presença. O eu sabe que tem os dias contados e acabará por morrer retalhado, já sem forças para resistir.

Esta busca do isolamento perseguiu-o pelos anos. Depois dos fracassos da casa de esquina da Bílkova e do apartamento da casa do Lúcio Dourado, Kafka acabou por se mudar para uma minúscula casinha medieval no nº 22 da Ruela dos Alquimistas, junto ao Castelo de Praga. «Um dia de Verão, fui com Ottla procurar casa; embora já não acreditasse na possibilidade dum sossego verdadeiro, pelo menos fui à procura dele… E nada, a bem dizer, não encontrámos nada. Mas depois, mais para nosso divertimento, perguntámos naquela minúscula ruela. E responderam-nos que sim, que haveria uma casa para alugar a partir de Novembro. Ottla, que também busca o sossego, mesmo que seja à maneira dela, apaixonou-se pela ideia de alugar a casa…» Nesta casinha ganharam vida, desde o fim de Novembro de 1916, muitos dos mais belos textos de Kafka: Um médico de aldeia, Na galeria, O caçador Graco, Um relatório para uma academia, A preocupação do pai de família e também Uma mensagem imperial.

Seguiu-se em Março de 1917 o palácio Schönborn, onde Kafka sofreu, na noite de 12 para 13 de Agosto, aquela hemoptise que prenunciava a tuberculose que o fulminaria sete anos mais tarde. Depois vieram as estadas cada vez mais frequentes nos sanatórios, o regresso a Praga, a escrita de O Castelo e, a 3 de Junho de 1924, a sua última morada no cemitério judeu de Straschnitz.

2004-09-21

André Valente

Depois de André Valente (2004), é rigorosamente proibido voltar a dizer mal do cinema português! O filme de Catarina Ruivo, que conta a história encantadora de um menino forçado a crescer e a assumir o papel de homem da casa, é um pequeno prodígio de inteligência, sensibilidade e sentimento – sem que isso signifique qualquer concessão ao sentimentalismo gratuito ou à lamechice. André Valente conta ainda com a participação da linda Carla Chambel, que também interpretou o papel de Adriana no nosso O Porteiro.

2004-09-20

Hugo

A melhor poesia da Internet está toda no blogue Ford Mustang, que agora regressa em força depois de uma ausência misteriosa. Obrigado, Hugo!

2004-09-16

Marluce e Carlos Cruz

A prisão preventiva do Senhor Carlos Cruz no âmbito do processo Casa Pia apanhou desprevenido todo um país. Então como hoje, sempre acreditei na inocência do popular apresentador: os sinais de prepotência judicial e incompetência eram evidentes e só não os via quem não quisesse. O que seguiu a essa madrugada atribulada de 1 de Fevereiro só serviu para cimentar a minha convicção inicial: os depoimentos insidiosos, o silêncio ensurdecedor das autoridades judiciárias e a verdadeira campanha mediática movida contra o Senhor Carlos Cruz. A voz mais estridente desse coro de Eríneas foi e é ainda a do Correio da Manhã – o tablóide que se auto-intitulou de grande defensor das criancinhas, mas que nem por isso se coíbe de fomentar a prostituição através dos anúncios amorosos que preenchem as suas páginas centrais. Por estas e por outras, recebi como uma lufada de ar fresco a notícia de que o livro Carlos Cruz: As Grades do Sofrimento tinha chegado finalmente às bancas. O livro de Marluce e Carlos Tomás é um tónico de dignidade e um daqueles livros que picam e mordem.

Um dos maiores méritos deste As Grades do Sofrimento é o facto de conseguir ser um relato simultaneamente sereno e comovido do processo judicial português mais controverso de sempre. A serenidade coube ao seu co-autor Carlos Tomás, um dos nomes mais isentos e respeitados do nosso jornalismo e que foi, desde a primeira hora, um crítico assumido da condução deste processo-crime. A comoção está a cargo dos familiares do Senhor Carlos Cruz, que desvelam o drama humano por detrás dos autos e denunciam corajosamente a mentira, a calúnia e a hipocrisia. É bom que não esqueçamos que no meio de todo o carnaval mediático está uma família que sofre e que, contrariamente às outras famílias de pessoas presas, não teve direito à discrição e ao recato: Raquel, a mulher que foi ao limite das suas forças para defender o marido; Marta, uma jovem bonita e inteligente que no espaço de um ano se viu forçada a deixar a sua adolescência e a crescer para ajudar a família; e a pequenita Mariana, demasiado jovem para perceber o que se passa, mas que um dia saberá que o pai esteve preso porque alguém disse que fazia mal a meninos.

Um dos factos que mais ocupou a reflexão dos autores foi o do célebre incidente de recusa do juiz Rui Teixeira. Apesar das críticas indignadas que se abateram sobre os advogados, a verdade é que foi a actuação conjunta destes defensores que permitiu que a vergonha e a transparência na administração da Justiça fossem repostas. Sem estar na posse das acusações feitas pelos jovens e sem conhecer os indícios existentes no inquérito, a audição para memória futura não teria passado de uma simples recolha de depoimentos dos denunciantes, que impossibilitaria a sua contradição por parte dos arguidos e um possível confronto em julgamento.

Os propósitos do Ministério Público eram óbvios: validar os novos depoimentos dos jovens, ocultar todas as ilegalidades processuais até então cometidas e erradicar do processo os nomes de todas as pessoas acusadas pelos denunciantes. O incidente de recusa de juiz, apesar de ter sido julgado improcedente, impediu mesmo assim que o procurador João Guerra destruísse o que quer que fosse do processo e blindasse a acusação aos arguidos. Curiosamente, as mesmas Eríneas que então clamaram por conspiração contra Rui Teixeira e ataque ao poder judicial nada disseram agora a propósito de idêntico incidente de recusa apresentado por António Pinto Pereira, advogado dos denunciantes, a respeito do juiz desembargador Varges Gomes…

Marluce / Carlos Tomás, Carlos Cruz: As Grades do Sofrimento, Editorial Notícias, Julho de 2004.

2004-09-12

Ah, Leão!


O nosso Manoel de Oliveira recebeu no passado dia 10 de Setembro o Leão de Ouro de Carreira. O Festival de Veneza vem reconhecer desta forma a obra e o talento de um Mestre que fez da sua longa carreira um combate tenaz contra a mediocridade e a inveja. A atribuição deste prestigioso galardão é por isso um motivo de alegria não só para o próprio cineasta, mas também para todos os que, como nós, sempre apreciámos os seus filmes - mesmo quando era politicamente incorrecto fazê-lo. Mil parabéns, Manoel de Oliveira!

2004-09-08

Saudades da Zazie

A extraordinária Zazie (beijinhos!) pode agora ser encontrada em A Janela Indiscreta, um blogue simpático, elegante e altamente filosófico.

The Matrix

O século XXI é um tempo de mudança e de abertura crescente da humanidade aos valores espirituais. O século XX aprendeu muito sobre muitas coisas, mas perdeu o sentido da unidade: foi a época do separatismo, do materialismo desenfreado e do grande mito da razão. Agora, estamos a entrar na Idade de Aquarius, o carregador de água, cujos ideais afirmam que o Homem aprenderá a verdade e será capaz de pensar por si mesmo. A nossa querida Maria Flávia de Monsaraz fala a este respeito de uma verdadeira revolução, que é primeiro mental e depois espiritual, pois não basta revolucionar a mente, é preciso sentir com a alma a verdade da informação.

Esta revigorada apetência por tudo quanto seja espiritual já chegou ao cinema. Para comprová-lo, basta que refiramos os fulgurantes sucessos mundiais de filmes tão diversos como Matrix (1999), Pi (1998) ou O Sexto Sentido (1999). O caso de Matrix é particularmente expressivo, pois a grandiosa trilogia dos Irmãos Wachowski sobre um mundo tiranizado pelas máquinas é, em matéria de esoterismo e simbologia, um verdadeiro filão.

O gnosticismo foi seguramente uma fonte de inspiração generosa para os Wachowski. Aliás, a existência de uma nave chamada Gnosis em The Matrix Reloaded demonstra que esta referência é deliberada e plenamente consciente. O termo gnosticismo é utilizado para aludir a um sistema de crença bíblica dominante no século II a.C. Não se trata propriamente de uma corrente cristã, mas sim de um grupo de seitas contemporâneas do cristianismo, muitas das quais não faziam qualquer referência a Cristo. O que essas seitas tinham em comum era a crença de que existe um Deus verdadeiro e bom, mas que este mundo e a matéria que o compõe eram uma ilusão criada por um deus menor e maléfico, o Demiurgo – cujo papel é análogo ao do Arquitecto em The Matrix Reloaded.

Outro exemplo de referências esotéricas pode ser encontrado na figura das chaves. Para poder aceder ao coração da Matrix, Neo deve primeiro encontrar o Fazedor de Chaves. Na simbologia esotérica, as chaves representam a iniciação e, consequentemente, a habilidade que o iniciado possui para abrir e se deslocar por entre diferentes níveis da realidade. É por esse motivo que figuras como o São Pedro cristão ou o Jano da mitologia romana são representados como portadores de chaves. Entre os ciganos, acredita-se que sonhar com um molho de chaves é sinal de que várias oportunidades surgirão para o sonhador, que deve escolher com cuidado: de igual forma, Neo, ao encontrar o Arquitecto graças à ajuda do Fazedor de Chaves, é colocado diante da necessidade de escolher entre duas portas.

Para aceder a este Fazedor de Chaves, Neo terá todavia de defrontar o Merovíngio, um homem perigoso e com poder, que quer aquilo que todos os homens com poder querem: mais poder. Esta é uma das referências mais obscuras e enigmáticas, que fará seguramente as delícias de todos os apreciadores das teorias da conspiração. Os Merovíngios eram a família reinante num território que abrangia as regiões da moderna França e Alemanha, desde cerca de 447 até 750 d.C. A dinastia foi buscar o seu nome a Merovech (latinizado como Meroveus), o qual era um chefe tribal dos Francos, um de entre um grupo de tribos germânicas que penetrara no Império Romano e começara a estabelecer o seu domínio.

A publicação do controverso livro Holy Blood, Holy Grail, em 1982, veio suscitar um interesse acrescido em torno destes reis Merovíngios de França. Os seus Autores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln escrevem que quando a lenda diz que José de Arimateia fugiu de Jerusalém com o Santo Graal, o que se quer dizer é que levou consigo um segredo capaz de mudar a História do mundo: o de que Jesus era casado e teve um filho, do qual descenderia a dinastia dos Merovíngios. Crê-se que a história que surge na Bíblia sobre o casamento de Canaã, onde Jesus executa o milagre da transformação da água em vinho, pode na verdade ser um recontar distorcido do próprio casamento de Jesus. A isto, acresce o facto de que se esperaria que Jesus, sendo judeu na altura, se casasse.

Esta possibilidade da linhagem de Cristo até nem é nova, mas mais surpreendente ainda é a teoria de que foi Maria Madalena a mulher de Jesus e mãe do Seu filho. A hipótese colocada é que após a crucificação, Maria Madalena partiu para França com o filho de ambos e que dos casamentos com membros de tribos francas resultaram os Merovíngios, perpetuadores da uma linhagem de Cristo que continuaria ainda hoje. Não existe, porém, nenhuma prova directa nos textos actualmente conhecidos, nem nos Evangelhos que corrobore esta ideia. Até os Evangelhos encontrados em Nag Hammadi em 1945 são omissos quanto a provas deste facto, exceptuando uma referência em Filipe de uma possível consorte. Podemos, mesmo assim, tomar algumas conclusões como certas: a crença longamente mantida de que Maria Madalena era uma prostituta arrependida é falsa, sendo que ela representa muito mais o papel de um dos discípulos – o que, aliás, suscitou o desagrado dos Apóstolos masculinos, entre os quais Pedro; a relação de Jesus com Maria Madalena poderá ser muito mais próxima do que se pensou originalmente; ela esteve com Jesus em momentos cruciais, nomeadamente durante a sua morte, enterro e Ressurreição de Cristo.

2004-09-01

O livro do Rui Unas

O nosso Rui Unas é hoje uma das figuras mais carismáticas da TV. Tive oportunidade de conhecer pessoalmente o talentoso apresentador e humorista aquando da pré-produção e rodagem da curta-metragem O Porteiro e guardo dele a imagem de um profissional íntegro, generoso e (felizmente para ele e para nós!) rigorosíssimo no cumprimento dos seus horários. Em O Porteiro, Unas interpretou excelentemente o papel de um toureiro priápico que rivaliza com o Ivo Canelas pelo afecto da linda Carla Chambel. A sua participação plena de energia e largamente improvisada foi, aliás, das melhores coisas que o malfadado filme teve.

Pois bem, este mesmo Rui Unas veio agora juntar o seu nome ao extenso rol de vedetas televisivas que, por uma razão ou outra, resolvem escrever livros. A diferença fundamental é que Unas tem efectivamente algo para dizer e sabe dizê-lo de forma sedutora. Com o seu novíssimo A minha vida é um cabaret, o Autor propõe-nos um livro polémico e mais ou menos autobiográfico, no qual privilegia a utilização da crónica – figura literária particularmente vocacionada para a pedagogia e diálogo fácil com o grande público. E de que fala Unas? Da anatomia do peido à morfologia do escarro, com trânsito pelo racismo, sexismo, tauismo (assim mesmo, com ‘u’) e mulheres de bigode, os temas mais extraordinários são abordados com uma argúcia e capacidade de observação notáveis. Tudo isto surge ricamente ornamentado com a linguagem desbragada e as expressões coloridas do costume: «pita», «abocanhar o nabo», «mariquinhas pé de salsa» ou «é isso e couves».

Rui Unas, A minha vida é um cabaret, Texto Editora, Lisboa, 2004.

Casa Pia (iii)

O processo da Casa Pia regressou aos jornais e, mais uma vez, pelas piores razões. Desta feita, uma juíza chamada Filipa Macedo resolveu emitir mandados de captura para colocar em prisão preventiva seis dos arguidos do processo da Casa Pia – Carlos Cruz, Gertrudes Nunes, Ferreira Dinis, Hugo Marçal, Jorge Ritto e Manuel Abrantes – num despacho formulado enquanto estava de turno nas Varas Criminais de Lisboa. A decisão deparou com a oposição do Ministério Público e seria contrariada por outro juiz de turno, Jorge Raposo, que a revogou. Os mandados não chegaram por isso a produzir os seus efeitos e ficaram mantidas as medidas de coacção determinadas há cerca de três meses pela juíza de instrução criminal Ana Teixeira e Silva. Quanto a essa Filipa Macedo, perdeu uma oportunidade de ficar calada e cometeu o pior erro em que pode incorrer um magistrado: a falta de serenidade.

A decisão de Filipa Macedo começa por ser leviana. Por um lado, porque a magistrada tomou uma decisão desta gravidade sem ter sequer assistido à produção de qualquer prova (por exemplo, não inquiriu quaisquer testemunhas nem interrogou nenhum dos arguidos), além do que nos seus três dias de turno não teve, nem poderia ter tido, um conhecimento suficientemente sério e aprofundado de um processo de milhares de páginas e com esta complexidade. Por outro lado, porque revelou uma tremenda falta de cortesia e mesmo de respeito para com as decisões dos seus colegas juízes, que Filipa Macedo apelidou de autistas, incompetentes e encobridores de pedófilos.

O despacho da infeliz juíza é também manifestamente ilegal: porque extravasa as competências de um mero juiz de turno, que se devia limitar neste caso a praticar actos urgentes; porque contraria decisões de tribunais superiores; porque inexistem factos novos que justifiquem as alterações pretendidas das medidas de coação, ficando assim abalada a imprescindível estabilidade das decisões jurisdicionais (hoje vai preso, amanhã é solto, depois volta a ser preso, ao gosto do magistrado que calhe no processo); porque está pendente um recurso do Ministério Público junto da Relação de Lisboa sobre esta mesma matéria.

É também incompreensível que semelhante decisão tenha sido tomada à revelia dos restantes sujeitos processuais, inclusive do Ministério Público. A magistrada escreveu a este respeito que «na área criminal, o juiz tem de ser interventivo, não podendo estar manietado por requerimentos dos sujeitos processuais e deve tomar iniciativas, quando constate que no processo alguma situação não está adequada». Filipa Macedo parece assim julgar-se uma espécie de anjo vingador, que reúne em si as qualidades de polícia, julgador e executor de delinquentes. O processo de estrutura acusatória exige, porém, a passividade do juiz: os tribunais servem apenas o direito e são garantes da sua realização, não lhes cabendo a responsabilidade directa pelo combate à criminalidade, caso em que poderiam ser eventualmente motivados a tomar decisões úteis para uma mais eficaz realização dessa missão, mas potencialmente desconformes com a lei.

Tudo isto seria apenas particularmente grave, se a lamentável decisão de Filipa Macedo não tivesse sido também acompanhada de uma fundamentação a tal ponto estúpida que chega a ser escandalosa. A juíza sabia dos vícios em que incorria, mas nem por isso se coibiu de colocar as suas convicções em matéria de pedofilia à frente da legalidade. A sujeição à lei é, porém, a essência da função jurisdicional. A aplicação das normas legais não pode ser afastada pelo julgador, mesmo em razão da preocupação de alcançar outros valores jurídica e socialmente relevantes, nomeadamente uma certa concepção pessoal ou social de justiça. Por exemplo, um juiz que discorde da actual criminalização do aborto nem por isso se pode negar a aplicar esse normativo legal, mesmo que isso contrarie as suas convicções nessa matéria.

A rematar o longo rol de imbecilidades, Filipa Macedo chega a fundar a sua decisão (imagine-se só!) nos penteados, bronzeados e indumentárias dos jovens dos nossos dias e a considerar que cada adolescente é um prostituto em potência. Eis o que afirmou a magistrada: «os adolescentes vivem uma liberdade desmedida, passando os dias sozinhos e saindo à noite até altas horas da madrugada. Podem ser considerados muito apelativos nas suas indumentárias, pela descontracção com que actuam, pelo bronze e penteados que exibem, por indivíduos viciosos e podem ser considerados presas fáceis porque normalmente têm posses insuficientes para as solicitações da sociedade de consumo em que se integram e que os seduz».

2004-08-29

O Crepúsculo dos Deuses


O argumentista, produtor e realizador Billy Wilder é uma das personalidades mais fascinantes do mundo do cinema. O grande público recorda-o sobretudo pelo seu sentido de humor afiado como uma navalha e falta total de papas na língua: «eu beijaria o chão que tu pisas mas só se vivesses num bairro decente», afirmou Wilder à sua mulher Audrey. Os seus colaboradores mais directos falam de um profissional cordato e afável, qualidades essenciais em quem dirige um processo tão delicado quanto o da feitura de um filme, no qual as sensibilidades estão sempre à flor da pele; por exemplo, aquando da rodagem de The Private Life Of Sherlock Holmes (1970), Wilder passou boa parte do seu tempo a confortar o técnico responsável pela inutilização acidental do monstro aquático. Os cinéfilos aclamam-no como um dos mais extraordinários e versáteis guionistas de sempre, que se converteu à realização apenas para que os frutos da sua escrita não saíssem adulterados pela estupidez alheia.

E que tem o próprio Billy Wilder a dizer de tão prestigiosa carreira? O talentoso cineasta contava a este propósito um pequeno episódio retirado da época em que ainda vivia em Berlim e procurava singrar nesta carreira dos filmes. O seu quarto arrendado ficava ao lado da casa de banho comum do prédio e o velho autoclismo pingava durante toda a noite devido a uma avaria. Para se confortar da monotonia de toda esta pobreza, o jovem Wilder imaginava que o som dos pingos do autoclismo era o de uma lindíssima cascata. Vinte e cinco anos mais tarde, o mesmo Wilder veio a passar uma temporada numa luxuosa estância termal austríaca, junto a uma cascata magnífica. «E ali estava eu deitado», conta Wilder, «escutando a cascata. E depois de tudo o que vivi, todos os sarilhos por que passei, todos os prémios e dinheiro que ganhei, ali estava eu naquela estância e só conseguia pensar no maldito autoclismo. Essa é, como se costuma dizer, a história da minha vida».

O coro de elogios não era todavia unânime: Wilder sempre foi uma presença incómoda entre os grandes barões de Hollywood e a sua celebérrima obra-prima O Crepúsculo dos Deuses (1950) não fez nada para melhorar esse estado de coisas. Aquele que é hoje considerado um dos melhores filmes sobre filmes não caiu na altura no goto de muitos dos colegas do realizador, que se sentiram directamente atingidos pela sua visão cínica dos bastidores da indústria cinematográfica americana. Ainda para mais, Wilder filmou tudo com um realismo quase documental. Não há nada de particularmente simbólico na velha mansão de Norma, que não é tanto uma metáfora da sua tragédia pessoal quanto um retrato tão rigoroso quanto possível da forma como uma mulher que vive arreigada ao passado deixaria que a sua casa se arruinasse. O mesmo se diga a respeito do elenco notabilíssimo, encabeçado por Gloria Swanson e Erich von Stroheim, assim como das participações de Cecil B. DeMille, H. B. Warner, Buster Keaton e Anna Q. Nilson, velhas glórias do cinema que percorrem todo o filme como almas penadas.

2004-08-22

Casa Pia (ii)

Eis um blogue excelente e corajoso sobre o escândalo da Casa Pia, concebido por quem mais legitimidade moral tem para falar sobre o assunto: os antigos alunos da Instituição. Basta clicar aqui.

2004-08-14

David Copperfield

«Eu não estava triste por partir. Eu vivia mergulhado num estado de estupidez; mas estava recuperando aos poucos e ansiava por rever Steerforth, apesar da figura de Mr. Creakle assomar perigosamente por detrás dele. Mais uma vez, Mr. Barkis apareceu junto ao portão e mais uma vez, Miss Murdstone bradou ‘Clara!’ no seu tom admonitório, quando a minha mãe se debruçou sobre mim, para me dizer adeus.

Beijei-a e ao meu irmão bebé e senti então uma tristeza imensa; mas não pela minha partida, pois a separação entre nós já existia e a partida estava presente todos os dias. E não foi tanto o abraço que ela me deu, por mais fervoroso que tenha sido, que perdura na minha memória, quanto o que se seguiu ao abraço.

Eu estava já na carruagem quando a ouvi chamar por mim. Espreitei para fora e lá estava ela sozinha frente ao portão do jardim, erguendo o filho nos braços para que eu o visse. Fazia ainda frio; e nem um só dos seus cabelos ou uma das pregas do seu vestido se movia, enquanto me olhava fixamente e erguia no ar a sua criança.

Assim me separei dela. Assim passei a vê-la nos tempos que se seguiram, no meu sono no colégio – uma presença silenciosa junto da minha cama – olhando-me com o mesmo rosto fixo – erguendo a criança nos seus braços.»


(in Charles Dickens, David Copperfield, Wordsworth Classics, Wordsworth Editions Limited, Hertfordshire, 1993, págs. 104 e 105)

12 homens em fúria

O tribunal de júri é uma instituição envolta em controvérsia. A polémica em redor dos méritos e falhas desta figura judiciária é acesa e está longe de avistar um fim: os opositores do júri falam dos perigos de manipulação dos jurados e da sua sujeição às pressões e paixões da opinião pública; já os seus apoiantes aplaudem o cariz democrático e a aproximação que propicia entre sociedade e administração da Justiça.

Em Portugal, o júri foi estabelecido pela primeira vez pelo artigo 177º da Constituição de 1822, disposição que ficou letra morta por nunca ter sido regulamentada, mas foi depois consagrado em todas as Constituições que se lhe seguiram, com excepção da de 1933. A lei portuguesa actual prevê a sua existência, mas, porque o nosso legislador é congenitamente receoso e propenso às ambiguidades, o tribunal de júri tem tido entre nós pouca importância prática. Por exemplo, é incompreensível que os jurados, que são quase sempre ignorantes das leis, sejam chamados a decidir não só sobre matéria de facto, mas todas as questões objecto da decisão de julgamento, incluindo a determinação da pena e todas as outras decisões de direito.

O filme 12 homens em fúria (1997), de William Friedkin, propõe-nos uma visita guiada aos bastidores do júri. Neste excelente remake (originalidade para quê?) de um filme antigo de Sidney Lumet, as coisas começam pelo fim: a audiência de julgamento está já concluída e a convicção dos membros do tribunal parece estar firmada no sentido da condenação. Afinal, os factos em julgamento são da maior gravidade, a prova testemunhal reunida pela acusação é eloquente e o arguido não só é cadastrado como provém de um bairro miserável, meio propício ao crime e à violência. Mas um dos jurados tem dúvidas. Não será que uma acusação tão gravosa como a de parricídio merece uma reflexão mais demorada da parte de quem decide? Não será que um testemunho é sempre um meio de prova particularmente falível e que os factos podem ser coloridos pela personalidade de quem os enuncia? Não será que a defesa do arguido foi prejudicada pela juventude e inexperiência do seu advogado oficioso?

Lá fora, as ruas da cidade padecem sob o calor do Verão, mas é dentro da sala do tribunal que a temperatura e os ânimos sobem ao insustentável, quando os doze jurados passam a confrontar não só os argumentos de quem acusa e defende, mas também os seus próprios medos, convicções e preconceitos. Aquilo que ao início parecia indiscutivelmente certo, revela-se afinal como um manto de aparências e meias verdades. À medida que os factos são esmiuçados, os jurados começam a alterar o seu veredicto, até que todos acabam por decidir no sentido da absolvição. O desenlace é optimista: a dignidade da pessoa humana sairá ganhadora e, no final do dia, os protagonistas poderão regressar a casa na certeza de terem realizado a melhor Justiça.

2004-07-31

O Valor das Palavras

A surpresa mais agradável do ano lectivo de 2003/2004 do curso de cinema da Universidade Moderna foi a curta-metragem O Valor das Palavras. O filme conta-nos a história desafortunada de um jovem que, apesar de uma carreira académica brilhante, se vê forçado a arrumar carros para sobreviver. A obra foi acolhida com entusiasmo e mereceu os aplausos mais calorosos do público na noite de 29 de Julho. Apesar do excelente trabalho do realizador, creio que este é sobretudo um filme de argumentista: o meu colega de cinema Roberto Pereira. O tema abordado no seu guião é o mais actual e pertinente possível, os diálogos são memoráveis e o sentido de humor é tão certeiro quanto desconcertante. Por tudo isto, o público da noite de estreia rendeu-se e foi um joguete nas mãos do promissor argumentista. Parabéns, Roberto!

2004-07-29

Olá Valéria Mendez!

Justamente quando a Internet começava a ficar desinteressante, eis que a minha simpática conterrânea Valéria Mendez regressa com o seu magnífico blogue, mais as suas histórias, humor e, claro está, a saudosa Amália! Beijinhos, Valéria!

2004-07-25

O Insaciável


As metáforas alimentícias são inevitáveis quando se escreve sobre O Insaciável (1999). A realizadora Antonia Bird propõe-nos desta vez uma comédia canibal que é uma verdadeira delícia. A ementa inclui controvérsia, emoções fortes, actores memoráveis e uma extraordinária banda sonora, composta por Michael Nyman e Damon Albarn, o famoso vocalista dos Blur.

A história remonta a 1847, em plena guerra entre o México e os Estados Unidos. É neste cenário desditoso que encontramos Guy Pearce, envergando sem brio nem valentia o uniforme militar norte-americano. Com o intuito de se esquivar ao combate, o protagonista finge-se morto e, inadvertidamente, ingere algum sangue dos companheiros tombados. O manjar produz um efeito singular, dotando-o da argúcia e força física com que, sozinho, logrará tomar todo um posto inimigo. Mas Pearce não é nenhum herói. A discutível façanha valer-lhe-á o degredo para Forte Spencer, perdido no isolamento das montanhas californianas. Tudo decorre com aparente normalidade até à chegada misteriosa de Robert Carlyle. Como Pearce, também Carlyle se tornara canibal. No entanto, os seus propósitos são bem mais sinistros: um por um, os militares do forte vão soçobrando e enchendo o tacho, até que restam apenas os dois antagonistas canibais. Começa então o duelo pela sobrevivência, sem que à partida se distinga com nitidez quem é quem na hierarquia da cadeia alimentar…

Talvez como resultado das filmagens conturbadas, esta obra não está isenta de alguns erros escusados, dos quais serão referidos apenas três. Primeiro, os solavancos narrativos do segundo acto. É incontroverso entre argumentistas que o segundo acto de um filme é aquele cuja redacção é mais complexa e ingrata. O exemplo de O Insaciável confirma os piores receios: tudo é indigesto e sobretudo confuso. A solução seria a concentração das mortes de Arquette e do bom doutor num único e emocionante plano-sequência, ao jeito do genial Brian De Palma. Segundo, o subaproveitamento do excelente David Arquette: inexplicavelmente, o contributo do Actor americano queda-se por um punhado de falas e sem que a sua agenda sobrecarregada o justifique convincentemente. Terceiro, o corte para o grande plano do rosto de Guy Pearce no preciso e fundamental instante em que o canibal Jeffrey Jones resolve deter os propósitos de Carlyle. De uma assentada, o espectador vê-se não só privado de um dos momentos mais importantes do filme, como também de uma interpretação excepcional. Claro que se Jones fosse um actor incompetente a opção teria sido perfeitamente ajuizada; contudo, não era manifestamente esse o caso. Eis a demonstração de como um montador desastrado pode arruinar uma excelente interpretação. Seja como for, o balanço final de O Insaciável é francamente positivo e as inúmeras virtudes deste extraordinário filme suplantam em muito os seus vícios.

As reacções do público a O Insaciável dividiram-se entre a devoção e a repulsa. Muita da crispação deve-se todavia ao nojo que a referência ao canibalismo sempre suscita. Trata-se do mais estranho dos tabus, uma prática que consideramos tão repelente e horrífica que temos por inconcebível. Todavia, a História recente e a Antropologia demonstram que esta é uma realidade mais próxima e disseminada do que gostamos de pensar. Por exemplo, entre a tribo dos Umeda, o hábito bem ocidental de roer as unhas é repudiado pelas suas conotações canibalísticas. O rito da Eucaristia, também referido em O Insaciável, está intimamente ligado ao canibalismo: no momento da comunhão, a óstia e o vinho são literalmente o corpo e o sangue de Cristo. A Rússia é um país canibal por excelência. Vários episódios históricos comprovam-no, como o da prática maciça de canibalismo durante o cerco nazi de Leningrado em 1941 – uma prática a que, diz-se, nem os inquilinos do Kremlin se furtaram. Razões culturais ajudam a explicar esta apetência dos russos: quer pela sua abordagem pragmática da vida, quer pelas suas concepções particulares da alma. O canibalismo não é todavia privativo de um Povo: é apenas uma faceta obscura no comportamento da espécie mais brutal e destrutiva do planeta.

2004-07-23

Os livros que mudaram a minha vida

Por Vaca Malhada

«O assunto surgiu-me porque recentemente deu-me para reler aquele que eu julgo que foi o livro que mudou a minha vida. Tristemente descobri que o livro é uma merda. Talvez tivesse sido melhor se não o tivesse relido, ou talvez não…

Descobri que afinal não foi o livro, fui mesmo eu, ou as circunstâncias que me fizeram mudar de rumo.

Passo a explicar:

Era uma recém-adolescente parva (como devem ser todas as raparigas de 13 anos. Ouvia tudo o que era música que me vinha parar e que estivesse na moda. Andava no ballet, gostava de me vestir como a Barbie e as minhas amigas eram como eu, parvas e fúteis. Adorava o Elvis Presley e o Richard Gere porque eram bonitos, lia a Bravo, os policiais da Agatha Christie e a banda desenhada do Quino, porque quando fosse grande gostava de ser como a Mafalda – apesar de ser um bocado covarde para tomar posições).

Porque um amigo do meu irmão (um rapaz do grupo dos grunhos, mas com quem eu falava, porque era giro) gostava, comecei a ouvir Doors. Ele era fanático pelo grupo e como eu tinha um fraquinho por ele comecei a tentar saber tudo sobre eles e como não podia deixar de ser, li a biografia do Jim Morison.

Sim, foi esse o livro que acho que mudou o rumo da minha adolescência (não propriamente para melhor ou pior, mas para mais adolescente).

Apaixonei-me pelo Jim Morrison e decidi que ia ser como ele, ou pelo menos o mais próximo que conseguisse daquilo que eu achava que ele foi – degredo e literatura.

Comecei a fumar charros (até aí não me aproximava das drogas porque tinha medo), a ler as obras de Nietzsche, William Blake, Artaud, Hölderlin, Rimbaud, Verlaine, Óscar Wilde… e todos os livros que o Jim Morrison tinha lido. Assim como as biografias desses autores e os autores que os tinham influenciado. Passei pelo Freud, Jung, Wittgenstein, Sartre, Jean Genet, Marquês de Sade, Dante, Sófocles, Büchner, Brecht… Nas artes plásticas, estudei o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo, arte pop (era a única rapariga de 14 anos que sabia quem era o Max Reinhart e que via os filmes de Eisenstein e do Buñuel, que discutia as teorias da Gestalt e da escola da Bauhaus com o professor de educação visual do 8º ano – que pensava que eu era esquizofrénica)…

Pelo caminho também lia autores portugueses, mas só os que eram malucos ou depressivos (Régio, Antero de Quental, Florbela Espanca, Almada, Pessoa, Mário de Sá Carneiro – os meus preferidos eram os que se tinham suicidado).

Aos dezasseis anos era uma gótica perfeita. Tinha a mania que era culta e inteligente, arrogante, revoltada, deprimida e ouvia Sisters of Mercy, Joy Division, Bauhaus, Velvet Underground… Bebia como uma esponja quando estava com os amigos (misturas tipo absinto com mescal e macieira) e quando já estava muito bêbada vomitava de propósito para poder continuar a beber.

Em casa, os meus pais não gostavam da maneira como eu me vestia e das minhas atitudes, mas como tirava sempre óptimas notas não tinham desculpa para me chatear.

Até que a dada altura (primeiro porque tinha um tio uns anos pouco mais velho que eu que ouvia Fausto e Sérgio Godinho e que era fã do Miguel, e depois porque descobri que ele traduzia Beckett e que trouxe a música dos Joy Division para Portugal), comecei a ler Miguel Esteves Cardoso e descobri que a boa literatura e a boa música não têm que ser sérias ou deprimidas, podem ser sérias e bem-dispostas ou não e serem boas na mesma!!!

Então descobri o Caetano Veloso e Chico Buarque, os Trovante, o Jacques Brel, a Nina Simone e o jazz… Jorge Amado, Alberto Pimenta, Mia Couto, Luís Sepúlveda, Gabriel Garcia Marques, José Saramago, Aquilino Ribeiro, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade…

Devia ter uns 17 anos. Comecei a vestir-me com cores, cortei o cabelo. Já sorria e olhava para as pessoas que sorriam sem achar que eram inocentes e que sorriam porque não tinham consciência das agruras da vida…

Coincidiu também com a altura em que comecei a fazer teatro.

Coincidiu com o Cineclube de Guimarães.

Comecei a olhar para mim e a analisar-me, mais do que a construir-me. E cresci. Ultrapassei a idade das trevas das nossas vidas (a idade média – de mediana – pela qual cada um de nós tem de passar). E pronto.

Depois, já na universidade, voltei a ler muitos dos livros “pesados” que adorava e alguns achei-os chatos, outros excelentes, mas demasiadamente depressivos para conseguir gostar deles, outros não os percebi e nem percebi onde fui buscar interpretações que lhes dei na altura… enfim. Descobri também outros que não tinha lido na altura e que me fizeram muita falta como o Shakespeare. Descobri que há muito mais Beckett para além de À Espera de Godot… Descobri que sou uma Maria Lamechas e com muito orgulho…

Este último (a biografia do Jim Morrison) li a propósito do recente concerto dos Doors em Portugal, assim como revi o excelente filme do Oliver Stone. É uma biografia, fiel ou não, não interessa, mas a tradução é muito má (brasileira) e a escrita é muito primária. Reli-o milhões de vezes durante a minha adolescência. Era a minha bíblia. Mas acho que na altura eu não andava muito preocupada com literatura…

Uma coisa é certa, para mal, ou para bem, cedo ou tarde de mais, os livros que li também fizeram de mim o que sou hoje.

E não há volta a dar!!!!»