2004-07-25

O Insaciável


As metáforas alimentícias são inevitáveis quando se escreve sobre O Insaciável (1999). A realizadora Antonia Bird propõe-nos desta vez uma comédia canibal que é uma verdadeira delícia. A ementa inclui controvérsia, emoções fortes, actores memoráveis e uma extraordinária banda sonora, composta por Michael Nyman e Damon Albarn, o famoso vocalista dos Blur.

A história remonta a 1847, em plena guerra entre o México e os Estados Unidos. É neste cenário desditoso que encontramos Guy Pearce, envergando sem brio nem valentia o uniforme militar norte-americano. Com o intuito de se esquivar ao combate, o protagonista finge-se morto e, inadvertidamente, ingere algum sangue dos companheiros tombados. O manjar produz um efeito singular, dotando-o da argúcia e força física com que, sozinho, logrará tomar todo um posto inimigo. Mas Pearce não é nenhum herói. A discutível façanha valer-lhe-á o degredo para Forte Spencer, perdido no isolamento das montanhas californianas. Tudo decorre com aparente normalidade até à chegada misteriosa de Robert Carlyle. Como Pearce, também Carlyle se tornara canibal. No entanto, os seus propósitos são bem mais sinistros: um por um, os militares do forte vão soçobrando e enchendo o tacho, até que restam apenas os dois antagonistas canibais. Começa então o duelo pela sobrevivência, sem que à partida se distinga com nitidez quem é quem na hierarquia da cadeia alimentar…

Talvez como resultado das filmagens conturbadas, esta obra não está isenta de alguns erros escusados, dos quais serão referidos apenas três. Primeiro, os solavancos narrativos do segundo acto. É incontroverso entre argumentistas que o segundo acto de um filme é aquele cuja redacção é mais complexa e ingrata. O exemplo de O Insaciável confirma os piores receios: tudo é indigesto e sobretudo confuso. A solução seria a concentração das mortes de Arquette e do bom doutor num único e emocionante plano-sequência, ao jeito do genial Brian De Palma. Segundo, o subaproveitamento do excelente David Arquette: inexplicavelmente, o contributo do Actor americano queda-se por um punhado de falas e sem que a sua agenda sobrecarregada o justifique convincentemente. Terceiro, o corte para o grande plano do rosto de Guy Pearce no preciso e fundamental instante em que o canibal Jeffrey Jones resolve deter os propósitos de Carlyle. De uma assentada, o espectador vê-se não só privado de um dos momentos mais importantes do filme, como também de uma interpretação excepcional. Claro que se Jones fosse um actor incompetente a opção teria sido perfeitamente ajuizada; contudo, não era manifestamente esse o caso. Eis a demonstração de como um montador desastrado pode arruinar uma excelente interpretação. Seja como for, o balanço final de O Insaciável é francamente positivo e as inúmeras virtudes deste extraordinário filme suplantam em muito os seus vícios.

As reacções do público a O Insaciável dividiram-se entre a devoção e a repulsa. Muita da crispação deve-se todavia ao nojo que a referência ao canibalismo sempre suscita. Trata-se do mais estranho dos tabus, uma prática que consideramos tão repelente e horrífica que temos por inconcebível. Todavia, a História recente e a Antropologia demonstram que esta é uma realidade mais próxima e disseminada do que gostamos de pensar. Por exemplo, entre a tribo dos Umeda, o hábito bem ocidental de roer as unhas é repudiado pelas suas conotações canibalísticas. O rito da Eucaristia, também referido em O Insaciável, está intimamente ligado ao canibalismo: no momento da comunhão, a óstia e o vinho são literalmente o corpo e o sangue de Cristo. A Rússia é um país canibal por excelência. Vários episódios históricos comprovam-no, como o da prática maciça de canibalismo durante o cerco nazi de Leningrado em 1941 – uma prática a que, diz-se, nem os inquilinos do Kremlin se furtaram. Razões culturais ajudam a explicar esta apetência dos russos: quer pela sua abordagem pragmática da vida, quer pelas suas concepções particulares da alma. O canibalismo não é todavia privativo de um Povo: é apenas uma faceta obscura no comportamento da espécie mais brutal e destrutiva do planeta.

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