2004-07-23

Os livros que mudaram a minha vida

Por Vaca Malhada

«O assunto surgiu-me porque recentemente deu-me para reler aquele que eu julgo que foi o livro que mudou a minha vida. Tristemente descobri que o livro é uma merda. Talvez tivesse sido melhor se não o tivesse relido, ou talvez não…

Descobri que afinal não foi o livro, fui mesmo eu, ou as circunstâncias que me fizeram mudar de rumo.

Passo a explicar:

Era uma recém-adolescente parva (como devem ser todas as raparigas de 13 anos. Ouvia tudo o que era música que me vinha parar e que estivesse na moda. Andava no ballet, gostava de me vestir como a Barbie e as minhas amigas eram como eu, parvas e fúteis. Adorava o Elvis Presley e o Richard Gere porque eram bonitos, lia a Bravo, os policiais da Agatha Christie e a banda desenhada do Quino, porque quando fosse grande gostava de ser como a Mafalda – apesar de ser um bocado covarde para tomar posições).

Porque um amigo do meu irmão (um rapaz do grupo dos grunhos, mas com quem eu falava, porque era giro) gostava, comecei a ouvir Doors. Ele era fanático pelo grupo e como eu tinha um fraquinho por ele comecei a tentar saber tudo sobre eles e como não podia deixar de ser, li a biografia do Jim Morison.

Sim, foi esse o livro que acho que mudou o rumo da minha adolescência (não propriamente para melhor ou pior, mas para mais adolescente).

Apaixonei-me pelo Jim Morrison e decidi que ia ser como ele, ou pelo menos o mais próximo que conseguisse daquilo que eu achava que ele foi – degredo e literatura.

Comecei a fumar charros (até aí não me aproximava das drogas porque tinha medo), a ler as obras de Nietzsche, William Blake, Artaud, Hölderlin, Rimbaud, Verlaine, Óscar Wilde… e todos os livros que o Jim Morrison tinha lido. Assim como as biografias desses autores e os autores que os tinham influenciado. Passei pelo Freud, Jung, Wittgenstein, Sartre, Jean Genet, Marquês de Sade, Dante, Sófocles, Büchner, Brecht… Nas artes plásticas, estudei o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo, arte pop (era a única rapariga de 14 anos que sabia quem era o Max Reinhart e que via os filmes de Eisenstein e do Buñuel, que discutia as teorias da Gestalt e da escola da Bauhaus com o professor de educação visual do 8º ano – que pensava que eu era esquizofrénica)…

Pelo caminho também lia autores portugueses, mas só os que eram malucos ou depressivos (Régio, Antero de Quental, Florbela Espanca, Almada, Pessoa, Mário de Sá Carneiro – os meus preferidos eram os que se tinham suicidado).

Aos dezasseis anos era uma gótica perfeita. Tinha a mania que era culta e inteligente, arrogante, revoltada, deprimida e ouvia Sisters of Mercy, Joy Division, Bauhaus, Velvet Underground… Bebia como uma esponja quando estava com os amigos (misturas tipo absinto com mescal e macieira) e quando já estava muito bêbada vomitava de propósito para poder continuar a beber.

Em casa, os meus pais não gostavam da maneira como eu me vestia e das minhas atitudes, mas como tirava sempre óptimas notas não tinham desculpa para me chatear.

Até que a dada altura (primeiro porque tinha um tio uns anos pouco mais velho que eu que ouvia Fausto e Sérgio Godinho e que era fã do Miguel, e depois porque descobri que ele traduzia Beckett e que trouxe a música dos Joy Division para Portugal), comecei a ler Miguel Esteves Cardoso e descobri que a boa literatura e a boa música não têm que ser sérias ou deprimidas, podem ser sérias e bem-dispostas ou não e serem boas na mesma!!!

Então descobri o Caetano Veloso e Chico Buarque, os Trovante, o Jacques Brel, a Nina Simone e o jazz… Jorge Amado, Alberto Pimenta, Mia Couto, Luís Sepúlveda, Gabriel Garcia Marques, José Saramago, Aquilino Ribeiro, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade…

Devia ter uns 17 anos. Comecei a vestir-me com cores, cortei o cabelo. Já sorria e olhava para as pessoas que sorriam sem achar que eram inocentes e que sorriam porque não tinham consciência das agruras da vida…

Coincidiu também com a altura em que comecei a fazer teatro.

Coincidiu com o Cineclube de Guimarães.

Comecei a olhar para mim e a analisar-me, mais do que a construir-me. E cresci. Ultrapassei a idade das trevas das nossas vidas (a idade média – de mediana – pela qual cada um de nós tem de passar). E pronto.

Depois, já na universidade, voltei a ler muitos dos livros “pesados” que adorava e alguns achei-os chatos, outros excelentes, mas demasiadamente depressivos para conseguir gostar deles, outros não os percebi e nem percebi onde fui buscar interpretações que lhes dei na altura… enfim. Descobri também outros que não tinha lido na altura e que me fizeram muita falta como o Shakespeare. Descobri que há muito mais Beckett para além de À Espera de Godot… Descobri que sou uma Maria Lamechas e com muito orgulho…

Este último (a biografia do Jim Morrison) li a propósito do recente concerto dos Doors em Portugal, assim como revi o excelente filme do Oliver Stone. É uma biografia, fiel ou não, não interessa, mas a tradução é muito má (brasileira) e a escrita é muito primária. Reli-o milhões de vezes durante a minha adolescência. Era a minha bíblia. Mas acho que na altura eu não andava muito preocupada com literatura…

Uma coisa é certa, para mal, ou para bem, cedo ou tarde de mais, os livros que li também fizeram de mim o que sou hoje.

E não há volta a dar!!!!»

2 comentários:

Anónimo disse...

Infelizmente, não posso dizer o mesmo que o amigo diz do Pastilhas. E não está em causa o Miguel Esteves Cardoso, que admiro e respeito, e que com ele partilho a mesma opinião sobre variadissimos assuntos, incluindo sobre a Amália. Ele escreveu sobre ela, um dos textos mais bonitos que li até hoje, e que se encntra na contracapa do album de Amalia._"Fado".
A razão do meu desencanto com o Pastilhas, foi a da falata de nivel de alguns participantes, que uma vez, decidiram "gozar" comigo devido ao meu problema de nascimento.Até me admira que vc não se tenha apercebido de que são uma cambada de insensiveis, mal educados, homofobicos, etc.
Regressada do Libano só agora vi seu email. Não creio que eu seja de muita utilidade para uma publicação assim tão espeical, mas depois "falaremos"...
fadista-valeria-mendez.weblog.com.pt

Flávio disse...

Querida Valéria, fico muito contente com a notícia do seu regresso. Quanto ao Pastilhas, sim, concordo que hoje está um pouco descaracterizado por mão de algumas pessoas mal formadas que por lá teimam em parar. Nem sempre foi assim, porém. Também subscrevo a sua referência elogiosa ao nosso Miguel Esteves Cardoso, um dos nomes maiores das nossas letras. Beijinhos, Valéria, e obrigado!