2004-05-30

O Porteiro: diário de um novo filme português (epílogo)

26 de Maio de 2004: Estamos no último dia de filmagens e ainda nos faltam as cenas 2, 4, 8, 10, 12, 11, 3, 1 e 9, ou seja, mais material do que nos dois dias precedentes juntos. Não importa. A máquina de O Porteiro está já em pleno vapor e nada nos pára. De dia, filmamos a difícil cena em que uma ousada Carla Chambel despeja um copo de gin-tónico sobre a virilha do pobre Rui Unas: logo após se ouvir “Corta!”, toda a equipa anui num aplauso entusiástico ao desempenho dos dois Actores. Depois, é a vez do confronto Ivo Canelas – Rui Unas, um dos momentos mais movimentados do guião. Ao fim da tarde, um suculento bacalhau à Brás faz esquecer o fiasco do strogonoff do dia anterior e inspira a equipa para uma noite produtiva. Chegamos finalmente à cena 9 e, com ela, acabam as filmagens. Muito obrigado aos Professores, Actores, Senhor Luís, Senhor Filipe La Féria, patrocinadores, simpatizantes, figurantes e equipa técnica – muito em particular ao nosso director de fotografia, Jorge Bonito, que durante três dias consecutivos aguentou lindamente uma câmara de 12 quilos sem um queixume que fosse. E agora? Agora vem a pós-produção, a estreia no Auditório da Universidade Moderna, os Óscares da Academia e não se fala mais nisso.

2004-05-29

O Porteiro: diário de um novo filme português (VIII)

25 de Maio de 2004: O plano de filmagens é um instrumento de trabalho fundamental. Nele se delimitam quais as cenas a rodar e horários dos respectivos intervenientes. No caso de O Porteiro, foi necessário levar em conta a disponibilidade de agenda dos actores, o horário de funcionamento do nosso bar e o limite máximo de três dias para as filmagens. A verdade, porém, é que no segundo dia de trabalho os horários não funcionaram: um lapso de comunicação levou a que a equipa comparecesse três horas antes do previsto. Como resultado, o estado de espírito de todos é o pior possível: o desânimo e a irritação proliferam, o que se repercute no rendimento do dia. Só às 19 horas é que o trabalho começa a sério. Pior ainda, e contrariamente ao sucesso do bacalhau com natas da véspera, o strogonoff servido ao jantar acaba por ter o sabor e consistência de vomitado de gato. A noite virá todavia a ser produtiva: toda a sequência da agressão à cliente é filmada com sucesso. Claro que, minutos antes do início da rodagem, tive de correr toda a baixa pombalina em busca de uma camisa branca, que ainda faltava, para o protagonista. Será que o Paulo Branco também corre à noite à procura de camisas?

O Porteiro: diário de um novo filme português (VII)

24 de Maio de 2004: As campanhas do Ministério da Saúde dizem-nos que fumar mata, prejudica os pulmões e estraga a pele. É mentira! O tabaco aclara o espírito e apazigua os nervos, sobretudo quando se é produtor de O Porteiro e se chega ao primeiro dia de filmagens com ainda tanto por fazer. Faltam-nos adereços, peças de guarda-roupa e algumas deserções de última hora implicam que a equipa funcione a meio gás. O dia de trabalho começa às 15, uma hora após o previsto: é altura de filmar o assédio de Rui Unas à doce Carla Chambel. Às 17, surge o nosso Ivo Canelas para a sequência do labirinto de biombos. Chega a hora do jantar, que se prolonga perigosamente para além do previsto. Ainda para mais, um vizinho mais afoito e incomodado com as filmagens de exteriores ameaça despejar uma chaleira de água a ferver sobre a equipa: a PSP é chamada a intervir e esbanja-se uma hora preciosa em negociações. Felizmente para nós, tínhamos já obtido (a muito custo, diga-se) a necessária licença camarária para a ocupação da rua; caso contrário, teríamos todos voltado a casa mais cedo e sem um minuto que fosse de filmagens de exteriores. Ao fim da noite, falta-nos toda a cena 11 para filmar e alguns interiores. Oxalá que amanhã e depois as coisas melhorem, senão esta merda vai toda ao ar.

2004-05-28

Em Sampaiês nos desentendemos


Num excelente texto de retrospectiva sobre o thatcherismo, publicado em www.whitegum.com, escreve-se com razão que uma das mais notáveis qualidades da Dama de Ferro foi saber lançar mão de um discurso claro e conciso, com o qual os eleitores facilmente se poderiam identificar.

Termos como «política fiscal» e «déficit financeiro do sector público» poderão colher a indiferença das maiorias e não ajudam a explicar, por exemplo, a necessidade de contenção nos investimentos públicos. Mas conceitos como «poupança» e «não gastar mais do que se ganha» faziam-se entender sem dificuldade.

Seria bom que o nosso Presidente Jorge Sampaio e seus assessores retomassem a lição de Lady Thatcher. Com efeito, é por demais consabida a dificuldade de Sampaio em fazer-se entender. Tanto assim que, a par do português e do mirandês, bem se pode dizer estarmos à beira da descoberta de um terceiro e sinistro idioma nacional: o Sampaiês.

Comunicar significa tornar comum, fazer saber, participar, ligar. Ora, que ligação poderá existir com uma arenga onde pontuam o «saudosismo passadista» ou os «mecanismos» ou ainda as «teias de sinergias», naturalmente tudo «sob a perspectiva do social»?

Depois, nas questões candentes como as dívidas fiscais dos clubes de futebol, aquelas em que a necessidade de mediação presidencial mais agudamente se faz sentir, lá vêm os assombrosos «apelos à serenidade» e a crítica da «crispação na classe política».

Como facilmente se perde o lusófono incauto por entre semelhante parafernália de substantivos! Que desígnios, ideias, pensamentos e vontades se ocultarão por detrás da muralha semântica? Provavelmente, nunca o saberemos.

Não obstante, por entre as cerradas brumas discursivas, lá se descobrem algumas - poucas - clareiras de inteligibilidade. Foi o caso da célebre Presidência Aberta no Alentejo onde, em pleno solo barranquenho, o Presidente lá falou da necessidade de a lei respeitar as tradições e costumes das populações.

Por uma vez, o Presidente foi claro no seu apoio ao espectáculo degradante das touradas de morte, ao arrepio das determinações do nosso ingrato legislador. Estranha posição esta, da parte de quem jurou por sua honra desempenhar fielmente as funções em que fica investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.

Em conclusão, nas escassas vezes em que o Presidente Sampaio se faz entender mais valia que ficasse calado.

O Porteiro: diário de um novo filme português (VI)

17 de Maio de 2004: O que o cinema tem de fascinante é que mesmo um projecto com meios tão modestos como o nosso O Porteiro pode dispor de efeitos especiais eficazes e interessantes. Estou a falar das célebres camisolas especialmente encomendadas para a dificílima sequência do desprendimento do fio de malha: quando Tozé-travesti consegue iludir o porteiro e entra no bar Dedalus, deixa preso um fio da sua camisola na roseira à entrada. A sequência apresenta duas dificuldades: primeiro, é necessário encontrar uma malha suficientemente forte para não quebrar e suficientemente grossa para poder ser captada pela objectiva da câmara; segundo, é preciso fazer uma camisola que possa ser desfiada e sem costuras aos lados que impeçam o desprendimento do fio. Graças à intervenção oportuna da minha mãe, Maria Trindade, e ao talento da Dona Zulmira Correia de Jesus, em pouco menos de uma semana chegam-nos às mãos as magníficas camisolas: três prontas a serem desfiadas e uma inteira.

O Porteiro: diário de um novo filme português (V)

15 de Maio de 2004: Já arranjei os malditos biombos.

O Porteiro: diário de um novo filme português (IV)

3 de Maio de 2004: Para mim, enquanto aprendiz destas coisas do cinema, o melhor de toda a aventura da produção de O Porteiro foi o convívio com os nossos queridos Actores e Actrizes. Nada de surpreendente, aliás, se considerarmos a qualidade profissional e humana das pessoas do elenco: Carla Chambel, Sérgio Grilo, Rui Unas, Ivo Canelas, Hugo Sequeira, Gonçalo Waddington e Vera Fontes. O momento mais mágico terá sido a reunião de todo este elenco para uma primeira leitura conjunta do argumento. Sentados à mesa do Bar Aguarela com um copo de moscatel numa mão e cópia do guião na outra, dicutiram-se ideias, ensaiaram-se falas e esclareceram-se dúvidas. Foi particularmente impressiva a interacção entre o Gonçalo Waddington e o Ivo Canelas: tal como eu havia previsto, estes dois gigantes juntos são pura dinamite! No final, todos anuem no êxito e proveito do encontro.

O Porteiro: diário de um novo filme português (III)

Abril 2004: A hora da verdade chegou. O Porteiro, que por enquanto não passa de um dossier de 100 páginas, terá ainda de ser submetido à aprovação de um júri. As expectativas são enormes e directamente proporcionais ao nervosismo que sempre precede estas apresentações orais. Seja como for, os nossos argumentos são bons: o guião está redigido; o elenco está já integralmente reunido e inclui alguns dos Actores e Actrizes mais talentosos e consagrados do País; o orçamento está feito; o décor é um dos bares mais fascinantes da noite lisboeta e a sua utilização está já devidamente autorizada (obrigado, Senhor Luís!). Por tudo isto, a nossa apresentação acaba por merecer elogios simpáticos da parte de todos os membros do júri. No final, tudo corre bem. Só falta mesmo arranjar os malditos biombos.

2004-05-16

Kafka e João Barrento


«'E agora?', perguntou-se Gregor, olhando à volta no escuro. Em breve descobriu que agora não conseguia dar nem mais um passo. Nem se admirou com isto, o que achou estranho foi ter conseguido deslocar-se antes com aquelas perninhas tão fracas. De resto, até nem se sentia muito desconfortável. É certo que sentia dores por todo o corpo, mas parecia-lhe que se iam dissipando a pouco e pouco e que acabariam por passar. Já mal sentia a maçã podre nas costas e a zona envolvente infectada, todas cobertas de um pó solto. Recordava a família com emoção e afecto. A sua própria convicção de que devia desaparecer era provavelmente ainda mais forte que a da irmã. E ali ficou naquele estado de reflexão vazia e pacífica até que o relógio da torre deu as três da madrugada. Ainda assistiu ao primeiro despontar da claridade, lá fora em frente à janela. Depois, a cabeça desceu, sem que ele quisesse, até ao chão, e das narinas saiu-lhe, fraco, o último sopro de vida.»

(in Franz Kafka, A Metamorfose, tradução de João Barrento, Edições Quasi, Vila Nova de Famalicão, Fevereiro de 2003)

2004-05-15

O Porteiro: diário de um novo filme português (II)

Março de 2004: Quando se tem um projecto com as ambições deste, as dores de cabeça do produtor são redobradas. Há que descobrir locais de rodagem, reunir e manter unida uma extensa equipa, arranjar a maquinaria e, no caso deste O Porteiro, encontrar biombos para construir o labirinto do bar Dedalus. Mesmo assim, o Carlos lá se lembrou de me convidar para dirigir esta produção e eu, obviamente, aceitei. Juntos, propomo-nos dar vida a este excelente argumento e realizar uma curta-metragem memorável. Mas será possível fazer um filme sem dinheiro?

2004-05-14

Beijinhos meiguinhos à Aninhas

É oficial: a Ana é uma querida e as suas Crónicas Matinais são a melhor coisa que há na Internet. Beijinhos!

Édipo estava inocente!


Quando a peste disseminou a morte e a pobreza entre os habitantes de Tebas, estes endereçaram as suas súplicas ao Rei Édipo. Afinal, já antes o seu valoroso soberano havia salvo a Cidade da temível Esfinge. Condoído do sofrimento do seu Povo, Édipo afirma ter enviado o seu cunhado Creonte consultar a Pitonisa de Delfos, sacerdotisa de Apolo, deus da profecia e da cura. Respondeu Apolo que o causador da peste era o assassino de Laio, que vivia impune no reino: era preciso matá-lo ou expulsá-lo de Tebas. Édipo propõe-se descobrir o criminoso. Contudo, o adivinho Tirésias vem a revelar que o reponsável de todos os males é o próprio Édipo, que havia assassinado o seu pai Laio e contraído um casamento incestuoso com a mãe Jocasta. Cego pela cólera, Édipo expulsa Tirésias por entre acusações de conspiração e prossegue as investigações. A chegada de um mensageiro anunciando a morte do rei Pólibo, que Édipo sempre havia tomado por pai, trar-lhe-á alguma tranquilidade. Mas será breve a alegria do tebano, pois o testemunho do antigo servo de Laio patenteará toda a verdade. Jocasta precipita-se para o interior do palácio, onde se suicida por enforcamento. Édipo cega-se e parte para o exílio.

Como é característico de todas as obras geniais e grandiosas, também Rei Édipo de Sófocles tem suscitado inúmeras interpretações e discussões. Seria intenção do Autor pôr em relevo o valor das profecias divinas, que começavam a ser um tanto menosprezadas no seu tempo? Quereria demonstrar o poder dos deuses perante o Homem? Mostrar a oposição entre aparência e realidade objectiva? Tratar-se-á de uma tragédia de culpa? Ou será antes uma tragédia fatalista, sendo Édipo envolvido sem o saber? Ou ainda uma «análise trágica», como lhe chamou Schiller, acrescentando que toda a motivação dramática está contida no início da peça e apenas se vai desenrolando? Ou um drama sobre a cegueira do homem e a desesperada insegurança da condição humana, ao mesmo tempo que sobre a grandeza do mesmo homem, que o leva a procurar a verdade a todo o custo e a aceitar as suas consequências?

Como Sófocles não explicita quais as razões da severidade da sorte reservada a Édipo, uma das questões mais energicamente debatidas é a da culpa do protagonista: será que tamanha infelicidade é a punição de uma falta moral? Um mundo de razões aponta todavia para que o veredicto possa ser apenas um: Édipo estava inocente! Dessa razões, bastará referir aqui apenas três: as intenções de Édipo; o consenso doutrinário em redor da não culpabilidade; a confirmação da inocência na peça Édipo em Colono.

Primeiro, as motivações do protagonista, que afastam qualquer juízo de censurabilidade. Ao matar Laio, fê-lo em legítima defesa. Quando desposou a mãe Jocasta e com ela teve quatro filhos, desconhecia a sua verdadeira identidade. Aliás, não só Édipo não é mau, como tudo fez para evitar a prática dos crimes. Quando o oráculo lhe revelou a sua triste sorte, fugiu espavorido dos pais e exilou-se voluntariamente para sempre, apesar de bem lhe custar essa separação; no diálogo com Jocasta, depois de se certificar (erroneamente, embora) que não matara o pai, continua a aterrá-lo a possibilidade de incesto com a mãe; e quando finalmente descobre a triste realidade, vaza os próprios olhos e deixa Tebas.

Segundo, a opinião generalizada dos críticos, que vai no sentido da inocência de Édipo. Actualmente, a grande maioria dos comentadores da tragediologia helénica exime de culpabilidade moral protagonistas como Édipo, Antígona, Alceste, Ifigénia e tantos outros. É certo que Édipo, como todos os homens, também cometeu erros: não por ser incestuoso e parricida, mas por ser arrebatado, irreflectido e impulsivo. No entanto, as faltas em que efectivamente incorreu, como a irritabilidade contra Tirésias e a desconfiança injusta contra Creonte, são de pouca monta e facilmente explicáveis pelo estado de nervosismo em que se encontrava.

Terceiro, a peça Édipo em Colono, escrita anos mais tarde pelo mesmo Sófocles, que confirma esta inocência. Os estudiosos consideram esta obra como complemento lógico de Rei Édipo e referem que a sua leitura é indispensável para a plena compreensão desta tragédia. O protagonista clama aí pela sua inocência: «Matei, tirei a vida, mas sem saber que o fazia. Segundo a lei, estou inocente; ao cometer o crime, ignorava que o cometia» (547-548). Também o Coro de aldeões de Colono, ao ter conhecimento de quem era Édipo, não hesita em ilibá-lo: «Já que tantos males lhe advieram imerecidamente, seria justo que a divindade o reabilitasse» (1565-1566).

A este respeito, uma teoria interessante vê nestas duas peças um reflexo da evolução do Direito. O Rei Édipo seria do tempo em que os Gregos não distinguiam, para efeitos de castigo, entre os actos criminosos culpados ou não; por isso, as intenções e motivos de Édipo não são tidos em conta. O Édipo em Colono teria sido já elaborado dentro de um diferente modo de pensar, donde resultaria uma interpretação diferente do mito.

Como explicar então o rol de desgraças que se abateu sobre Édipo? Na verdade, tal sorte corresponde não à punição de uma culpa pessoal de Édipo, mas sim do seu pai Laio. Este, quando era preceptor de Crisipo, filho do rei Pélope, deixou-se levar por amores libidinosos e raptou a criança. O pai, ultrajado e traído na sua confiança e hospitalidade, proferiu contra Laio uma imprecação terrível: «Laio, Laio, oxalá que nunca tenhas um filho; ou se chegares a tê-lo, que venhas a perecer às suas mãos!» Esta prece foi atendida. Não existe por isso culpa de Édipo, mas apenas solidariedade moral com o seu pai, cuja culpabilidade foi, essa sim, real, pessoal e grande.

Claro que esta possibilidade de transmissão das penas dos pais para os filhos está actualmente arredada dos sistemas jurídicos modernos. No entanto, era uma crença generalizada nos povos primitivos, como nos indo-iranianos, nos incas e particularmente no povo judeu. Também na mentalidade helénica já vinha de longe esta crença popular da maldição da raça e de os filhos pagarem pelos erros dos pais. Sófocles reagiu contra esta concepção, mas não deixou de a evocar nas suas tragédias, para cujos efeitos dramáticos ela se prestava admiravelmente.

Do que ficou dito, resulta igualmente que Sigmund Freud não tinha razão ao falar em complexo de Édipo. Em 1900, Freud publicou Die Traumdeutung (O Significado do Sonho), onde evocou pela primeira vez o mito de Édipo. O Autor via no amor da criança por um dos pais e no ódio pelo outro a solução para os impulsos psíquicos que determinarão o aparecimento ulterior de nevroses. Essa atracção ou hostilidade tanto se podem manifestar em indivíduos normais, como em nevrópatas. Para Freud, o mito edipiano é a confirmação de tal descoberta. No entanto, tal entendimento é de rigor discutível, pois o soberano de Tebas sempre demonstrou repugnância e uma quase impossibilidade psíquica de ser incestuoso.

Se adoptarmos o entendimento de que Édipo é inocente, como devemos fazer, a peça de Sófocles revela-se em toda a sua grandiosidade. É a tragédia de um homem recto e bem intencionado que, procurando fugir ao crime e praticar a piedade, acaba por se precipitar nas mais espantosas desgraças. Na vida, nada é garantido. Tudo é incerto e frágil entre os homens. Tudo passa, tudo muda e nem os justos estão isentos das vicissitudes que inerem à sua condição humana. É esta a grande lição não só de Rei Édipo, mas de todo o género trágico.

2004-05-13

O Porteiro: diário de um novo filme português (I)

Dezembro de 2003: O cinema português está em crise. O dinheiro não flui, os filmes não vendem e os críticos só dizem mal. Mesmo assim, ainda há pessoas suficientemente audazes (ou doidas varridas…) para acreditar que vale a pena fazer filmes nesta terra. Uma dessas pessoas é o meu Amigo Carlos Alberto Fernandes, um animador de 37 anos que em boa altura se lembrou de idealizar e escrever – aliás, brilhantemente – uma comédia amorosa intitulada O Porteiro. A história, inspirada no mito do Minotauro, fala-nos do desencontro de uns modernos Teseu (aliás, Tozé) e Ariadne (ou melhor, Adriana) à porta de um bar sugestivamente chamado Dedalus. Ele está no exterior do bar, sem conseguir entrar. Ela está no interior, ansiosa por sair. Ambos alimentam diferentes expectativas quanto ao futuro da sua relação. Têm por isso mal-entendidos e obstáculos para superar. E o maior deles… é o porteiro do bar!

Eládio Clímaco

O nosso Eládio Clímaco é, juntamente com Herman José, a minha maior referência em matéria de televisão. Pelo seu profissionalismo, inteligência e integridade, o excelente locutor é um dos profissionais que mais admiro. Quem poderá, na verdade, esquecer os Jogos Sem Fronteiras, os Festivais da Canção e, claro está, o número infindável de documentários sobre animais a que Clímaco emprestou a sua voz? Os hábitos alimentares da aranha saltadora ou a migração da baleia corcunda nunca foram tão interessantes.

2004-05-03

Como salvar um casamento (segundo Diogo de Paiva de Andrada)


O casamento, como todos sabemos, é um contrato de duas vontades ligadas com o amor que Deus lhes comunica, justificadas com a graça que lhe deu Cristo e autorizadas com as cerimónias que lhe ajuntou a Igreja Católica. Os Gregos chamaram-no Himeneu, derivado da palavra Hímen, a qual por honestos respeitos não convém que aqui se declare. Este Himeneu fingiram uns ser filho de Apolo e Calíope, que entre os falsos deuses daquele tempo presidiam nas músicas e poesias que se costumavam frequentar nas solenidades dos casamentos. Outros imaginaram que era filho de Vulcano, tido por deus do ferro e do fogo e pelo mais disforme de todos os deuses, e de Vénus, deusa do amor, que foi a mais formosa de todas as deusas: isto para demonstrar que entre os casados, seja qual for o gesto e parecer de qualquer deles, há-de haver um amor tão afervorado como os ardores do próprio fogo, e uma firmeza tão constante como a dureza do próprio ferro.

São necessárias muitas condições e circunstâncias para que se guarde a perfeição do casamento com sossego da alma, segurança da honra e descanso da vida. Os maridos devem tratar de ser modestos e recolhidos, pois não terão conversações de gente perversa, que os divirtam do amor e gosto que devem empregar em suas mulheres; os que não forem tafuis nem gastadores cuidarão de governar suas fazendas e conservar suas granjearias, cuja falta prejudica ao gosto das mulheres e ao remédio das famílias; os que não forem avarentos não fecharão as arcas e celeiros, nem terão em seu poder as bolsas do gasto, coisas que elas sentem em todo o extremo, por se verem nisso tratadas com desamor, desprezo e desconfiança. Os devotos e virtuosos guardar-se-ão com muito cuidado de lhes dar ocasião de queixas graves ou paixões demasiadas. Esmerar-se-ão em usar com elas de cortesia nos lugares públicos, de benevolência nos secretos, em lhes procurar passatempos lícitos e desviar-lhes os perigosos e por conclusão, que tratem de todo o coração de se abraçar à virtude, porque nela gozarão sem nenhum trabalho de todos os bens dos perfeitos casados.

Declaradas as condições e qualidades que devem concorrer nos homens, convém que não fiquem por enunciar as que pertencem às mulheres, porque elas, sendo geralmente menos prudentes, têm mais necessidade de ser advertidas. Que sejam por isso honestas e recolhidas; que escusem demasiados gastos, trajes e enfeites; que fujam de estar ociosas, pois bem manifesto fica que a ocupação das teias, lavores e costuras não se compadece com a frequência de vistas, conversas e leviandades; que sejam sofridas e caladas, porque com falarem pouco não só fogem de ligeirezas, como também adquirem respeito e autoridade, que são os esmaltes da nobreza. Pintavam os antigos a Deusa Vénus com os pés em cima de um cágado e faziam-no com fundadas razões: visto que este animal era símbolo do recolhimento por não ter voz nenhuma e sair poucas vezes do lugar em que está posto, queriam assim que as mulheres significadas pela imagem de Vénus se lembrassem que tinham a obrigação de falar pouco e andar menos.

Resta que declaremos os bens de que gozam os perfeitos casados. O primeiro e principal é uma esperança bem fundada de serem todos predestinados. O outro bem, que se segue a este, é a perfeita alegria com que os casados sempre vivem, com a qual não tem comparação nenhuma outra felicidade. Nenhuma riqueza dá tão perfeito contentamento como o que gozam entre si os bons casados. Escrevem os Autores de Crates filósofo, que chegou a tão extrema necessidade que não tinha uma casa em que se recolhesse, nem uma cama em que dormisse, nem uma cadeira em que se sentasse e que veio a morar com a sua mulher nuns alpendres públicos de Atenas: e como eram perfeitos casados, viviam neste abismo de vales e misérias com tanto sossego e contentamento como se estivessem favorecidos das felicidades mais abundantes.

Os meninos da rádio

Há coisas assim, que nos dão vontade de estarmos vivos e de boa saúde: um dia de sol, um filme de Alex De La Iglesia ou o auto-rádio sintonizado na Radar FM (97.8), a melhor e mais alternativa de todas as frequências. Todos os dias, há The Cure, David Bowie, Tindersticks, ou os nossos queridos Clã à discrição. A publicidade cinge-se ao mínimo indispensável e não ofende a inteligência de ninguém. Parabéns e votos de continuação de excelente trabalho, rapazes!

Propinas (i)

Os estudantes portugueses estão em polvorosa. E têm boas razões: a concretização das reformas legislativas em curso representa, na verdade, um violento ataque ao ensino superior público. Os protestos não tardaram e alguns dos mais visíveis foram o encerramento de escolas a cadeado, a invasão das reuniões de senado, manifestações locais, greves de zelo e uma paralisação nacional realizada com grande êxito e considerável adesão no dia 21 de Outubro.

A contestação teve o seu momento alto com a mega manifestação de 5 de Novembro. A participação de cerca de 10 mil estudantes, de acordo com números da polícia, excedeu as melhores expectativas do movimento associativo. Estimava-se a comparência de 7 mil manifestantes em Lisboa, vindos de todo o país, mas acabaram por comparecer muitos mais, naquela que foi a maior manifestação de alunos após o 25 de Abril!

O objectivo mais imediato dos estudantes é a revogação da Lei nº 37/2003 de 22 de Agosto, que regula o financiamento do ensino superior. A forma ardilosa como se procedeu à aprovação deste diploma diz muito sobre o carácter e reais intenções dos seus autores. A nova lei surgiu na sequência de uma proposta do Governo, apresentada à Assembleia da República e viabilizada pelos deputados da maioria em Julho desse ano. Ao fazer aprovar esta legislação em período de férias, criando um valor máximo e mínimo de propinas e encarregando as próprias faculdades de fixarem o seu montante, o ex-ministro Pedro Lynce, de uma assentada, não só aliviou o fardo financeiro do Governo em relação ao ensino superior, como afastou de si a contestação estudantil, lançando a guerra no interior das faculdades. Com os conselhos directivos entre a espada e a parede e um Ministério da Educação que remeteu a total paternidade da lei para o Parlamento, colocou-se a questão de saber contra quem os estudantes deveriam dirigir os seus protestos. Não obstante, a verdade é que a propina é uma opção política e como tal deve ser assumida por aqueles que a impõem: o Governo da República.

Vale a pena analisar os números em jogo. Estão em causa aumentos das propinas que poderão chegar aos 239 por cento, num valor mínimo de 463 euros e num máximo de 852 euros por ano, consoante a decisão das instituições de ensino. Desta forma, as universidades, politécnicos e escolas de enfermagem vão arrecadar, em 2004, cerca de 76 milhões de euros. As novas propinas permitem às instituições de ensino superior ter um acréscimo acima dos 70 milhões de euros nas suas receitas, a que se somarão os 16 milhões de euros que deverão receber por conta dos contratos-programa estabelecidos com o Estado. Quanto ao Governo, e provavelmente contando com o acréscimo de receitas provocado pelo aumento das propinas, reduziu, no Orçamento para 2004, em 22 milhões de euros o seu investimento directo nos orçamentos destas instituições. Os valores desta receita foram apurados com base no montante definido para a propina média (648 euros), que 256 mil estudantes terão de pagar pelos cursos que frequentam. A diferença entre este valor e os 90 milhões de euros que as instituições de ensino receberam no ano passado – o último ano em que vigorou uma propina única, indexada ao salário mínimo, de cerca de 350 euros – representa uma diferença positiva de 76 milhões de euros. Enfim, um saque mais que apetecível para o nosso Estado!

Não se contesta apenas a responsabilização financeira dos alunos, mas também (e sobretudo) todo um processo de desresponsabilização do Estado. Com efeito, já há muito que as universidades se têm confrontado com reduções reais dos seus orçamentos. A estratégia foi sempre, através de um grande número de pequenas coisas, passar esta factura para os estudantes: aumentam o valor e o número dos emolumentos, sobem os montantes das taxas de inscrição ou deixam de devolver o pagamento dos exames para melhoria de nota.

Este problema deve ser ponderado à luz do que dispõe o artigo 74, nº 2, al. e) da Constituição da República: «na realização da política de ensino incumbe ao Estado assegurar a gratuitidade de todos os graus de ensino». A “gratuitidade” consiste na ausência de pagamento de qualquer contrapartida patrimonial, pecuniária ou outra, pelos serviços de ensino prestados aos alunos que deles beneficiam: isto implica que sejam custeadas pelo Estado, se não as despesas contraídas pelos alunos nessa qualidade fora do meio escolar (por exemplo, transportes, refeições ou o material bibliográfico), pelo menos as contraídas dentro desse meio escolar – como as propinas, taxas de matrícula, taxas de utilização de bibliotecas ou de recintos desportivos, taxas de realização de exames, etc. E a especificação de que o ensino compreende todos os seus “graus” mostra bem o propósito de não excluir nenhuma das fases em que o longo processo de ensino se desdobra. Ora, aumentar o valor das propinas – seja com um aumento real, seja com mera actualização – implica sempre um afastamento deste objectivo da progressiva gratuitidade. Por isso, e sob pena de inconstitucionalidade, a lei ordinária deve consagrar um ensino superior público inteiramente gratuito.

Mas não são apenas as propinas que estão na origem da contestação. Os estudantes recusam também a redução de vagas, com o que sairiam limitadas as possibilidades de escolha dos candidatos ao ensino superior. Reivindicam mais e melhor acção social, já que muitos colegas ainda se debatem com bolsas de miséria e falta de residências universitárias (equipamentos aos quais, note-se, os estudantes do particular e do cooperativo não têm acesso). Rejeitam a imposição de um regime de prescrições que limite o número de inscrições possível para concluir uma determinada cadeira ou curso – uma medida hipócrita que ignora as verdadeiras causas do insucesso escolar, como sejam as deficientes infra-estruturas, a impreparação pedagógica de muitos docentes ou a magreza das bolsas de estudo. Exigem a manutenção da representação paritária nos órgãos de gestão das faculdades, pois é pretensão do Governo afastar estudantes e funcionários de um real poder de decisão na universidade (não podendo ter os professores um peso inferior a 60%) e reduzir, na prática, o conselho directivo à figura de um director (espécie de professor todo-poderoso). Lamentável ironia: a geração que, enquanto estudante, conquistou com o 25 de Abril o direito de representação igualitária, é a mesma que agora o aniquila.

Numa sociedade bafienta como a nossa, pouco dada a essas “modernices” das liberdades individuais e direitos sócio-culturais, este inconformismo dos estudantes é uma lufada de bom senso. A verdade, porém, é que o movimento de contestação tem esbarrado nos desfavores da Imprensa e na incompreensão de muitos opinadores. João Caupers escreveu que «na falta de milagres o ensino superior público tem de ser pago. A alternativa básica que se coloca não é pois, pagar ou não pagar: é ser pago pelos que dele beneficiam – os estudante (e as suas famílias) – ou ser pago pela comunidade no seu conjunto, através do dinheiro dos seus impostos» (in Expresso de 08.11.2003, pág. 28). Helena Matos rotulou os nossos jovens de «geração bledline» que se «acreditou o centro da família. Agora cresceram e querem permanecer nesse privilegiado estatuto. Querem continuar a andar ao colo mesmo fora de casa. Não se interrogam, por exemplo, quanto paga um trabalhador imigrante pelos respectivos e indispensáveis vistos. Não se interrogam quanto pagam os pais pelos concertos que eles invariavelmente esgotam. Pelos festivais de Verão. Pelos automóveis à porta das faculdades. Pelas roupas de marca. Pelas saídas à noite…» (in Público de 08.11.2003, pág. 5). Finalmente, o jornalista Nuno Santos (quem?!) escreveu que «há da parte de quem protesta, muita hipocrisia e nenhum senso», pois «nunca como hoje os jovens tiveram à disposição um manancial de meios que lhes permitam ajudar no orçamento familiar» e propôs como solução para os estudantes mais carenciados o exercício de uma profissão «a começar pelas lojas de fast food e a acabar nas estações de serviço» (in 24 Horas de 07.11.2003, pág. 4).

São opiniões que devemos repudiar, por serem míopes, mesquinhas e mesmo aviltantes. Míopes, porque ignoram que os trabalhadores por conta de outrém vão ser duplamente penalizados pois não podem deixar de pagar os impostos, enquanto que os outros trabalhadores e empresários acabam por ser duplamente beneficiados já que podem fugir ao fisco e têm os seus filhos a usufruir dos meios de acção social. Mesquinhas, na medida em que esquecem que ninguém pode ser privado do ensino superior público devido a insuficiência económica e que esta insuficiência deve ser compensada pela solidariedade (palavra-chave nesta questão) da comunidade, materializada em prestações efectuadas pelo Estado. Aviltantes, porque tomam o todo por uma parte ínfima e falam dos estudantes como se estes fossem uma súcia de pândegos e alcoólatras.

Felizmente, os alunos não desarmam neste combate, pois estão bem cientes da justeza das suas razões. No seu frenesim legiferante, o poder político tem aprovado nos últimos anos várias leis que visam não o desenvolvimento e o bem-estar das famílias, mas única e exclusivamente os cortes na despesa pública. Contudo, há áreas que não podem ser encaradas como uma mera despesa do Estado mas sim como um investimento para o bem comum e a educação é precisamente uma dessas áreas. Aliás, o Ensino Superior é um excelente investimento público: o contributo para o PIB médio nacional por parte de um trabalhador com um curso superior é quase três vezes superior ao de um detentor de uma formação básica.

2004-04-23

Les Diaboliques


Les Diaboliques (1955) é um admirável exemplo do que de melhor pode produzir a cumplicidade entre literatura e cinema. O romance original Celle qui n'était plus era resultado da imaginação fervilhante de Pierre Boileau e Thomas Narcejac e narra uma história de ciúme, crime e infidelidades conjugais entremeada com os elementos sobrenaturais tão característicos dos dois autores franceses. O filme viria a ser realizado por Henri-Georges Clouzot e é ainda hoje aclamado como uma das mais aterradoras obras-primas do cinema de suspense.

Na origem de tão notável consórcio de talentos esteve a mediação oportuna de Vera Clouzot, mulher do realizador e sua actriz de eleição, que lhe sugeriu a obra no decurso de uma noite de insónias. Nas palavras do próprio Henri-Georges Clouzot: «às duas da manhã, queria apagar a luz e dormir; às quatro, terminei a leitura do livro; às nove e meia, comprei os respectivos direitos». Em boa hora o fez, pois o romance era também objecto do interesse do seu colega cineasta e amigo Alfred Hitchcock. Clouzot levou a melhor e Hitch teve de se contentar com o terceiro romance da talentosa dupla autoral D'Entre les Morts, igualmente baseado no tema da reaparição de um cadáver e do qual resultaria o memorável Vertigo. Aliás, as semelhanças entre os dois cineastas não se ficavam pela admiração por Boileau e Narcejac: ambos professavam o rigor e a utilização de minuciosos storyboards; partilhavam o mesmo sentido de humor negro e apetência pelo absurdo; comungavam de um fascínio enorme pelo mal. Não admira pois que Clouzot seja frequentes vezes apelidado de Hitchcock francês.

Obsessivo até aos ossos, Clouzot sempre foi um criador indómito para quem a perfeição era suficiente: atestam-no os relacionamentos tempestuosos com os seus elencos e colaboradores, a recusa intransigente dos convites americanos por receio de perda da autonomia criativa e uma filmografia reduzidíssima numa carreira que se estende por mais de vinte e cinco anos. Pouco surpreende por isso que as modificações ao romance original tenham sido mais que muitas. A perspectiva dominante é não já a do marido adúltero, mas a da esposa violentada. O décor não é o lar conjugal, mas o espaço feérico, quase surreal de um colégio interno onde fermenta toda a sorte de ódios, rancores e hipocrisias. O extraordinário final, que a pedido expresso do realizador não será aqui desvelado, nada tem de tranquilizador ou verosímil. Os próprios Boileau e Narcejac reconhecem que «[Clouzot] concebeu, escreveu e realizou uma história que mais não tem que uma ligeira parecença com a nossa» acrescentando que «o filme é bem menos uma adaptação que uma reinvenção cuja originalidade não pode deixar de ser realçada». Les Diaboliques viria contudo a projectar os dois escritores para o estrelato e, claro está, a confirmar Henri-Georges Clouzot como o cineasta francês mais genial, controverso e perturbador de sempre.

Este homem é um senhor!

Obrigado pelo estímulo e pelas palavras amigas, Stephen King! Oxalá que sim, que este meu blogue cresça e resulte em qualquer coisa de útil. Abraço de Urso!

2004-04-22

Rebelde sem uma equipa

Robert Rodriguez é um dos mais talentosos cineastas saídos de Hollywood nos últimos anos. O seu currículo, já considerável, inclui títulos tão interessantes como Spy Kids, Quatro Quartos, Aberto Até de Madrugada ou Desperado. Rodriguez é também o Autor de Rebel Without a Crew, o célebre diário que desvela os segredos da rodagem da sua primeira obra-prima cinematográfica, El Mariachi. O livro é uma maravilha e de leitura obrigatória para todos quantos sonhem um dia ingressar na arte de fazer filmes.

O que tornou El Mariachi um filme de referência entre os cinéfilos foi não apenas a energia e inventividade do seu estilo mas sobretudo os seus custos de produção ridiculamente baixos: com um orçamento de apenas sete mil dólares, Rodriguez concebeu uma obra que lhe viria a franquear as portas das grandes produtoras norte-americanas. Rebel Without a Crew é o relato minucioso de todo o processo de feitura do filme, desde a angariação do dinheiro até às filmagens e pós-produção. A fórmula do sucesso é simples e resume-se à utilização da inteligência e da criatividade como substitutos do dinheiro na resolução dos problemas de filmagem.

Mais curioso ainda é notar como a escrita de Robert Rodriguez mimica o seu estilo cinematográfico frenético: o resultado é uma obra de leitura tão proveitosa quanto agradável para todos, recheada de episódios geniais - designadamente a sujeição de Rodriguez a experiências laboratoriais como forma de angariação do dinheiro da produção ou o seu convívio com algumas das maiores vedetas do cinema americano. Não obstante, é sobretudo aos jovens cineastas que o livro se destina. Nas palavras do próprio Rodriguez «o primeiro passo para se ser um cineasta é deixar de dizer que se quer ser um cineasta. Eu já era um realizador desde o dia em que fechei os olhos e me imaginei fazendo filmes. O resto era inevitável. Por isso não se quer ser, é-se um cineasta. Depois, é só encomendar um cartão de visita.»

Robert Rodriguez, Rebel Without a Crew - or How a 23-Year-Old Filmmaker with $7,000 Became a Hollywood Player, EUA, Plume, Setembro de 1996.

Pacheco Pereira e o futebol

José Pacheco Pereira tem sido um crítico implacável do excesso de futebol na sociedade portuguesa e, por uma vez, devo subscrever as palavras do controverso comentador. «Nenhum país civilizado, e em muitos deles o futebol é uma paixão nacional, dá este tempo e estes recursos a uma actividade que acaba, pelo excesso, por ser um factor do nosso desinteresse social, da nossa anomia, do nosso atraso», escreve Pacheco Pereira (in Público de 19.02.2004, pág. 5). Portugal vive, come, respira, fala e pensa futebol como nunca terá alguma vez feito e com a chegada do famigerado Euro 2004 mais as quinhentas horas de transmissão pela RTP, o excesso só tende a piorar. Por reflectir e discutir ficam outros excessos bem mais prementes, como os do desemprego, da iliteracia ou da prisão preventiva.

A crise fez dos portugueses o povo mais deprimido e frustrado da Europa e não é anormal que as pessoas procurem formas de entretenimento e escapismo em períodos difíceis. O que é mais dificilmente compreensível é que se esbanje tanto tempo e energia num espectáculo tão fútil e idiota, sobretudo se considerarmos a mediocridade desportiva da nossa selecção nacional e dos nossos clubes (excepção feita ao Futebol Clube do Porto, claro). E com que proveito? O futebol uniformiza, embrutece e estupidifica; banaliza o insulto e a violência; consome dinheiro e energias; e em vez de trazer conhecimento, amealha aquilo que é pior que toda a ignorância junta.

Os Parasitas da Morte


Todas as culturas do mundo são confrontadas com problemas decorrentes dos limites éticos e jurídicos das intervenções médicas no corpo humano. Mesmo após a morte, sempre se encarou o corpo como um objecto de respeito e com a natureza especial de extensão da pessoa. Ao longo dos tempos e dos sistemas jurídicos, razões de ordem religiosa atribuíram ao cadáver uma característica de sacralidade, que ainda hoje se manifesta sob as mais diversas formas, desde os ritos funerários à sua incomercialidade. As concepções religiosas e éticas do cristianismo só vieram fortalecer esse respeito ancestral pelo cadáver. Por vezes, tais concepções chegaram até a constituir um entrave ao progresso da medicina, pela dificuldade em dispor de cadáveres para estudos anatómicos.

Felizmente, semelhantes escrúpulos nunca detiveram criadores artísticos como o cineasta David Cronenberg. O realizador canadiano sempre preferiu considerar o corpo humano como mero objecto de experimentação estética e científica. Nas palavras do próprio Cronenberg, «enquanto artista não me incumbem responsabilidades cívicas de qualquer ordem, pois a minha única responsabilidade é consentir-me a maior liberdade criativa possível», acrescentando que «os meus filmes abordam privilegiadamente o corpo humano e a sua existência como organismo vivo, diferentemente da generalidade dos filmes de terror e ficção científica, mais orientados para a tecnologia e para o sobrenatural e nessa medida mais abstraídos do corpo».

As controversas teses cronenberguianas irromperam no grande ecrã pela primeira vez, e de forma espectacular, com Shivers (em português, Os Parasitas da Morte). O filme é não apenas uma prodigiosa (e polémica!) obra-prima mas também o precursor do sub-género de terror venéreo. O pesadelo começa nos luxuosos apartamentos Starliner Towers, onde o médico Emil Hobbes desenvolve pesquisas no sentido da criação de um parasita com fins terapêuticos. A investigação conduz todavia a resultados trágicos quando os parasitas induzem comportamentos homicidas e de violência sexual extrema por parte dos hospedeiros respectivos. Em poucas horas, acabarão por infectar os habitantes do complexo residencial e, a breve trecho, toda a população mundial. David Cronenberg explica o seu filme como uma exaltação da sexualidade embora do ponto de vista de uma doença venérea: «um vírus está apenas a fazer o seu trabalho e a tentar viver a sua vida. Considerá-lo da sua própria perspectiva é perfeitamente razoável. Muitas doenças ficariam chocadas se soubessem que eram tidas como doenças. É uma conotação extremamente negativa. Para elas, é algo de muito positivo quando dominam e destroem o nosso corpo».

2004-04-21

No País dos Lotófagos

Um dos episódios mais fascinantes e misteriosos da Odisseia de Homero é o da chegada ao País dos Lotófagos (os que comem a flor de lótus). Ulisses e seus companheiros levantaram ferro da costa da Trácia, desceram à costa do Peloponeso, ladearam os seus promontórios e navegaram para a costa ocidental de Ítaca. Ao décimo dia de navegação, desembarcaram então nessa terra de gentes amistosas que lhes deram de comer a flor de lótus. Os marinheiros ficaram todavia de tal maneira narcotizados que já não queriam saber de voltar para a sua pátria. Ulisses teve de levá-los à força para os barcos e ordenar que partissem com rapidez.

Alguns estudiosos tentaram localizar este país na Tripolitânia, no Noroeste da Líbia. Contudo, o mérito principal de Homero será sempre o de poeta genial e não o de geógrafo, historiador ou cronista: a muitas informações verdadeiras e rigorosas, o príncipe da poesia grega juntou uma boa parte de imaginação e de histórias populares. Por isso, o melhor será concluir que os Lotófagos da Odisseia não têm pátria no mundo real. Mas se este Povo é uma criação puramente lendária, tão imaginário como o Ciclope ou a feiticeira Circe, já a flor de lótus é bem real. Na Índia, é simultaneamente sagrada e útil. No 3º milénio a. C. já é referida como existente nas margens do rio Indo, onde é venerada pelos Hinduístas e Budistas: quando Buda nasceu, logo floriu uma flor de lótus na terra que ele tocou pela primeira vez. A ela se atribuem diversas qualidades relativas à saúde, sorte, beleza, fertilidade, divindade, ressurreição e pureza. Terá sido todavia o lótus do Egipto que serviu de inspiração para Homero. Os micénicos mantiveram contacto com os egípcios durante duzentos ou trezentos anos: os seus produtos chegaram ao Nilo e ao Assuão. Os comerciantes de Micenas tinham por isso muito que contar e entre os seus relatos estaria o de que os egípcios viviam de uma flor chamada lótus.

O carácter misterioso do lótus terá servido na perfeição os propósitos de Homero, cujo auditório escutaria tal história como se fosse realidade. E essa flor é apenas um de entre os muitos objectos mágicos que abundam nesta Odisseia: Helena tem um droga calmante, trazida do Egipto, que faz parar o sofrimento e a dor (IV, 219-232); Circe tem uma poção que transforma os homens em porcos; e, contra os seus efeitos, Hermes dá a Ulisses o môlu, a planta de raiz negra e de flor branca, muito dura para arrancar e que o deve preservar de todos os sortilégios e que por vezes é comparada à mandrágora (X, 302-306). Em Homero, o mágico, o belo e o exótico estão em todo o lado!

A chegada ao País dos Lotófagos é um dos exemplos mais frisantes da criatividade indómita de Homero, assim como do seu entusiasmo pela vida e compreensão da natureza humana. A ingestão do lótus provocava a amnésia e este esquecimento é uma ambição antiga: abre a possibilidade de começar de novo, de renascer, de apagar o passado. Quem de nós é que enjeitaria esta oportunidade de provar o doce lótus e com isso passar uma esponja sobre todos os males e erros do passado? Não surpreende por isso que só a muito custo é que Ulisses tenha conseguido arrancar os seus companheiros daquele estado de êxtase e fazê-los regressar: «e eu fui obrigado a trazê-los à força e debulhados em lágrimas para as naus; puxei por eles e atei-os ao fundo da embarcação, sob os bancos; e entretanto insistia com os outros companheiros que me tinham permanecido fiéis para que se instalassem depressa nas suas naves ligeiras, receando que algum deles ao saborear o lótus se esquecesse do regresso». Esquecer e começar de novo: é tentador, não é?