Os estudantes portugueses estão em polvorosa. E têm boas razões: a concretização das reformas legislativas em curso representa, na verdade, um violento ataque ao ensino superior público. Os protestos não tardaram e alguns dos mais visíveis foram o encerramento de escolas a cadeado, a invasão das reuniões de senado, manifestações locais, greves de zelo e uma paralisação nacional realizada com grande êxito e considerável adesão no dia 21 de Outubro.
A contestação teve o seu momento alto com a mega manifestação de 5 de Novembro. A participação de cerca de 10 mil estudantes, de acordo com números da polícia, excedeu as melhores expectativas do movimento associativo. Estimava-se a comparência de 7 mil manifestantes em Lisboa, vindos de todo o país, mas acabaram por comparecer muitos mais, naquela que foi a maior manifestação de alunos após o 25 de Abril!
O objectivo mais imediato dos estudantes é a revogação da Lei nº 37/2003 de 22 de Agosto, que regula o financiamento do ensino superior. A forma ardilosa como se procedeu à aprovação deste diploma diz muito sobre o carácter e reais intenções dos seus autores. A nova lei surgiu na sequência de uma proposta do Governo, apresentada à Assembleia da República e viabilizada pelos deputados da maioria em Julho desse ano. Ao fazer aprovar esta legislação em período de férias, criando um valor máximo e mínimo de propinas e encarregando as próprias faculdades de fixarem o seu montante, o ex-ministro Pedro Lynce, de uma assentada, não só aliviou o fardo financeiro do Governo em relação ao ensino superior, como afastou de si a contestação estudantil, lançando a guerra no interior das faculdades. Com os conselhos directivos entre a espada e a parede e um Ministério da Educação que remeteu a total paternidade da lei para o Parlamento, colocou-se a questão de saber contra quem os estudantes deveriam dirigir os seus protestos. Não obstante, a verdade é que a propina é uma opção política e como tal deve ser assumida por aqueles que a impõem: o Governo da República.
Vale a pena analisar os números em jogo. Estão em causa aumentos das propinas que poderão chegar aos 239 por cento, num valor mínimo de 463 euros e num máximo de 852 euros por ano, consoante a decisão das instituições de ensino. Desta forma, as universidades, politécnicos e escolas de enfermagem vão arrecadar, em 2004, cerca de 76 milhões de euros. As novas propinas permitem às instituições de ensino superior ter um acréscimo acima dos 70 milhões de euros nas suas receitas, a que se somarão os 16 milhões de euros que deverão receber por conta dos contratos-programa estabelecidos com o Estado. Quanto ao Governo, e provavelmente contando com o acréscimo de receitas provocado pelo aumento das propinas, reduziu, no Orçamento para 2004, em 22 milhões de euros o seu investimento directo nos orçamentos destas instituições. Os valores desta receita foram apurados com base no montante definido para a propina média (648 euros), que 256 mil estudantes terão de pagar pelos cursos que frequentam. A diferença entre este valor e os 90 milhões de euros que as instituições de ensino receberam no ano passado – o último ano em que vigorou uma propina única, indexada ao salário mínimo, de cerca de 350 euros – representa uma diferença positiva de 76 milhões de euros. Enfim, um saque mais que apetecível para o nosso Estado!
Não se contesta apenas a responsabilização financeira dos alunos, mas também (e sobretudo) todo um processo de desresponsabilização do Estado. Com efeito, já há muito que as universidades se têm confrontado com reduções reais dos seus orçamentos. A estratégia foi sempre, através de um grande número de pequenas coisas, passar esta factura para os estudantes: aumentam o valor e o número dos emolumentos, sobem os montantes das taxas de inscrição ou deixam de devolver o pagamento dos exames para melhoria de nota.
Este problema deve ser ponderado à luz do que dispõe o artigo 74, nº 2, al. e) da Constituição da República: «na realização da política de ensino incumbe ao Estado assegurar a gratuitidade de todos os graus de ensino». A “gratuitidade” consiste na ausência de pagamento de qualquer contrapartida patrimonial, pecuniária ou outra, pelos serviços de ensino prestados aos alunos que deles beneficiam: isto implica que sejam custeadas pelo Estado, se não as despesas contraídas pelos alunos nessa qualidade fora do meio escolar (por exemplo, transportes, refeições ou o material bibliográfico), pelo menos as contraídas dentro desse meio escolar – como as propinas, taxas de matrícula, taxas de utilização de bibliotecas ou de recintos desportivos, taxas de realização de exames, etc. E a especificação de que o ensino compreende todos os seus “graus” mostra bem o propósito de não excluir nenhuma das fases em que o longo processo de ensino se desdobra. Ora, aumentar o valor das propinas – seja com um aumento real, seja com mera actualização – implica sempre um afastamento deste objectivo da progressiva gratuitidade. Por isso, e sob pena de inconstitucionalidade, a lei ordinária deve consagrar um ensino superior público inteiramente gratuito.
Mas não são apenas as propinas que estão na origem da contestação. Os estudantes recusam também a redução de vagas, com o que sairiam limitadas as possibilidades de escolha dos candidatos ao ensino superior. Reivindicam mais e melhor acção social, já que muitos colegas ainda se debatem com bolsas de miséria e falta de residências universitárias (equipamentos aos quais, note-se, os estudantes do particular e do cooperativo não têm acesso). Rejeitam a imposição de um regime de prescrições que limite o número de inscrições possível para concluir uma determinada cadeira ou curso – uma medida hipócrita que ignora as verdadeiras causas do insucesso escolar, como sejam as deficientes infra-estruturas, a impreparação pedagógica de muitos docentes ou a magreza das bolsas de estudo. Exigem a manutenção da representação paritária nos órgãos de gestão das faculdades, pois é pretensão do Governo afastar estudantes e funcionários de um real poder de decisão na universidade (não podendo ter os professores um peso inferior a 60%) e reduzir, na prática, o conselho directivo à figura de um director (espécie de professor todo-poderoso). Lamentável ironia: a geração que, enquanto estudante, conquistou com o 25 de Abril o direito de representação igualitária, é a mesma que agora o aniquila.
Numa sociedade bafienta como a nossa, pouco dada a essas “modernices” das liberdades individuais e direitos sócio-culturais, este inconformismo dos estudantes é uma lufada de bom senso. A verdade, porém, é que o movimento de contestação tem esbarrado nos desfavores da Imprensa e na incompreensão de muitos opinadores. João Caupers escreveu que «na falta de milagres o ensino superior público tem de ser pago. A alternativa básica que se coloca não é pois, pagar ou não pagar: é ser pago pelos que dele beneficiam – os estudante (e as suas famílias) – ou ser pago pela comunidade no seu conjunto, através do dinheiro dos seus impostos» (in Expresso de 08.11.2003, pág. 28). Helena Matos rotulou os nossos jovens de «geração bledline» que se «acreditou o centro da família. Agora cresceram e querem permanecer nesse privilegiado estatuto. Querem continuar a andar ao colo mesmo fora de casa. Não se interrogam, por exemplo, quanto paga um trabalhador imigrante pelos respectivos e indispensáveis vistos. Não se interrogam quanto pagam os pais pelos concertos que eles invariavelmente esgotam. Pelos festivais de Verão. Pelos automóveis à porta das faculdades. Pelas roupas de marca. Pelas saídas à noite…» (in Público de 08.11.2003, pág. 5). Finalmente, o jornalista Nuno Santos (quem?!) escreveu que «há da parte de quem protesta, muita hipocrisia e nenhum senso», pois «nunca como hoje os jovens tiveram à disposição um manancial de meios que lhes permitam ajudar no orçamento familiar» e propôs como solução para os estudantes mais carenciados o exercício de uma profissão «a começar pelas lojas de fast food e a acabar nas estações de serviço» (in 24 Horas de 07.11.2003, pág. 4).
São opiniões que devemos repudiar, por serem míopes, mesquinhas e mesmo aviltantes. Míopes, porque ignoram que os trabalhadores por conta de outrém vão ser duplamente penalizados pois não podem deixar de pagar os impostos, enquanto que os outros trabalhadores e empresários acabam por ser duplamente beneficiados já que podem fugir ao fisco e têm os seus filhos a usufruir dos meios de acção social. Mesquinhas, na medida em que esquecem que ninguém pode ser privado do ensino superior público devido a insuficiência económica e que esta insuficiência deve ser compensada pela solidariedade (palavra-chave nesta questão) da comunidade, materializada em prestações efectuadas pelo Estado. Aviltantes, porque tomam o todo por uma parte ínfima e falam dos estudantes como se estes fossem uma súcia de pândegos e alcoólatras.
Felizmente, os alunos não desarmam neste combate, pois estão bem cientes da justeza das suas razões. No seu frenesim legiferante, o poder político tem aprovado nos últimos anos várias leis que visam não o desenvolvimento e o bem-estar das famílias, mas única e exclusivamente os cortes na despesa pública. Contudo, há áreas que não podem ser encaradas como uma mera despesa do Estado mas sim como um investimento para o bem comum e a educação é precisamente uma dessas áreas. Aliás, o Ensino Superior é um excelente investimento público: o contributo para o PIB médio nacional por parte de um trabalhador com um curso superior é quase três vezes superior ao de um detentor de uma formação básica.
2004-05-03
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