2004-05-14

Édipo estava inocente!


Quando a peste disseminou a morte e a pobreza entre os habitantes de Tebas, estes endereçaram as suas súplicas ao Rei Édipo. Afinal, já antes o seu valoroso soberano havia salvo a Cidade da temível Esfinge. Condoído do sofrimento do seu Povo, Édipo afirma ter enviado o seu cunhado Creonte consultar a Pitonisa de Delfos, sacerdotisa de Apolo, deus da profecia e da cura. Respondeu Apolo que o causador da peste era o assassino de Laio, que vivia impune no reino: era preciso matá-lo ou expulsá-lo de Tebas. Édipo propõe-se descobrir o criminoso. Contudo, o adivinho Tirésias vem a revelar que o reponsável de todos os males é o próprio Édipo, que havia assassinado o seu pai Laio e contraído um casamento incestuoso com a mãe Jocasta. Cego pela cólera, Édipo expulsa Tirésias por entre acusações de conspiração e prossegue as investigações. A chegada de um mensageiro anunciando a morte do rei Pólibo, que Édipo sempre havia tomado por pai, trar-lhe-á alguma tranquilidade. Mas será breve a alegria do tebano, pois o testemunho do antigo servo de Laio patenteará toda a verdade. Jocasta precipita-se para o interior do palácio, onde se suicida por enforcamento. Édipo cega-se e parte para o exílio.

Como é característico de todas as obras geniais e grandiosas, também Rei Édipo de Sófocles tem suscitado inúmeras interpretações e discussões. Seria intenção do Autor pôr em relevo o valor das profecias divinas, que começavam a ser um tanto menosprezadas no seu tempo? Quereria demonstrar o poder dos deuses perante o Homem? Mostrar a oposição entre aparência e realidade objectiva? Tratar-se-á de uma tragédia de culpa? Ou será antes uma tragédia fatalista, sendo Édipo envolvido sem o saber? Ou ainda uma «análise trágica», como lhe chamou Schiller, acrescentando que toda a motivação dramática está contida no início da peça e apenas se vai desenrolando? Ou um drama sobre a cegueira do homem e a desesperada insegurança da condição humana, ao mesmo tempo que sobre a grandeza do mesmo homem, que o leva a procurar a verdade a todo o custo e a aceitar as suas consequências?

Como Sófocles não explicita quais as razões da severidade da sorte reservada a Édipo, uma das questões mais energicamente debatidas é a da culpa do protagonista: será que tamanha infelicidade é a punição de uma falta moral? Um mundo de razões aponta todavia para que o veredicto possa ser apenas um: Édipo estava inocente! Dessa razões, bastará referir aqui apenas três: as intenções de Édipo; o consenso doutrinário em redor da não culpabilidade; a confirmação da inocência na peça Édipo em Colono.

Primeiro, as motivações do protagonista, que afastam qualquer juízo de censurabilidade. Ao matar Laio, fê-lo em legítima defesa. Quando desposou a mãe Jocasta e com ela teve quatro filhos, desconhecia a sua verdadeira identidade. Aliás, não só Édipo não é mau, como tudo fez para evitar a prática dos crimes. Quando o oráculo lhe revelou a sua triste sorte, fugiu espavorido dos pais e exilou-se voluntariamente para sempre, apesar de bem lhe custar essa separação; no diálogo com Jocasta, depois de se certificar (erroneamente, embora) que não matara o pai, continua a aterrá-lo a possibilidade de incesto com a mãe; e quando finalmente descobre a triste realidade, vaza os próprios olhos e deixa Tebas.

Segundo, a opinião generalizada dos críticos, que vai no sentido da inocência de Édipo. Actualmente, a grande maioria dos comentadores da tragediologia helénica exime de culpabilidade moral protagonistas como Édipo, Antígona, Alceste, Ifigénia e tantos outros. É certo que Édipo, como todos os homens, também cometeu erros: não por ser incestuoso e parricida, mas por ser arrebatado, irreflectido e impulsivo. No entanto, as faltas em que efectivamente incorreu, como a irritabilidade contra Tirésias e a desconfiança injusta contra Creonte, são de pouca monta e facilmente explicáveis pelo estado de nervosismo em que se encontrava.

Terceiro, a peça Édipo em Colono, escrita anos mais tarde pelo mesmo Sófocles, que confirma esta inocência. Os estudiosos consideram esta obra como complemento lógico de Rei Édipo e referem que a sua leitura é indispensável para a plena compreensão desta tragédia. O protagonista clama aí pela sua inocência: «Matei, tirei a vida, mas sem saber que o fazia. Segundo a lei, estou inocente; ao cometer o crime, ignorava que o cometia» (547-548). Também o Coro de aldeões de Colono, ao ter conhecimento de quem era Édipo, não hesita em ilibá-lo: «Já que tantos males lhe advieram imerecidamente, seria justo que a divindade o reabilitasse» (1565-1566).

A este respeito, uma teoria interessante vê nestas duas peças um reflexo da evolução do Direito. O Rei Édipo seria do tempo em que os Gregos não distinguiam, para efeitos de castigo, entre os actos criminosos culpados ou não; por isso, as intenções e motivos de Édipo não são tidos em conta. O Édipo em Colono teria sido já elaborado dentro de um diferente modo de pensar, donde resultaria uma interpretação diferente do mito.

Como explicar então o rol de desgraças que se abateu sobre Édipo? Na verdade, tal sorte corresponde não à punição de uma culpa pessoal de Édipo, mas sim do seu pai Laio. Este, quando era preceptor de Crisipo, filho do rei Pélope, deixou-se levar por amores libidinosos e raptou a criança. O pai, ultrajado e traído na sua confiança e hospitalidade, proferiu contra Laio uma imprecação terrível: «Laio, Laio, oxalá que nunca tenhas um filho; ou se chegares a tê-lo, que venhas a perecer às suas mãos!» Esta prece foi atendida. Não existe por isso culpa de Édipo, mas apenas solidariedade moral com o seu pai, cuja culpabilidade foi, essa sim, real, pessoal e grande.

Claro que esta possibilidade de transmissão das penas dos pais para os filhos está actualmente arredada dos sistemas jurídicos modernos. No entanto, era uma crença generalizada nos povos primitivos, como nos indo-iranianos, nos incas e particularmente no povo judeu. Também na mentalidade helénica já vinha de longe esta crença popular da maldição da raça e de os filhos pagarem pelos erros dos pais. Sófocles reagiu contra esta concepção, mas não deixou de a evocar nas suas tragédias, para cujos efeitos dramáticos ela se prestava admiravelmente.

Do que ficou dito, resulta igualmente que Sigmund Freud não tinha razão ao falar em complexo de Édipo. Em 1900, Freud publicou Die Traumdeutung (O Significado do Sonho), onde evocou pela primeira vez o mito de Édipo. O Autor via no amor da criança por um dos pais e no ódio pelo outro a solução para os impulsos psíquicos que determinarão o aparecimento ulterior de nevroses. Essa atracção ou hostilidade tanto se podem manifestar em indivíduos normais, como em nevrópatas. Para Freud, o mito edipiano é a confirmação de tal descoberta. No entanto, tal entendimento é de rigor discutível, pois o soberano de Tebas sempre demonstrou repugnância e uma quase impossibilidade psíquica de ser incestuoso.

Se adoptarmos o entendimento de que Édipo é inocente, como devemos fazer, a peça de Sófocles revela-se em toda a sua grandiosidade. É a tragédia de um homem recto e bem intencionado que, procurando fugir ao crime e praticar a piedade, acaba por se precipitar nas mais espantosas desgraças. Na vida, nada é garantido. Tudo é incerto e frágil entre os homens. Tudo passa, tudo muda e nem os justos estão isentos das vicissitudes que inerem à sua condição humana. É esta a grande lição não só de Rei Édipo, mas de todo o género trágico.

2 comentários:

Anónimo disse...

otima analise!!!

L'étoile du matin disse...

Flávio, o destino para os gregos antigos era inflexível e inevitável. Tentar evitá-lo apenas o precipitava. O homem estava irremediávelmente preso ao que era, ao fio condutor de sua vida, sem que pudesse ter realmente A grande escolha. Tudo o que fazia o conduzia a cumprir o seu destino. Ainda é assim em grande medida para quase todos nós em todo o mundo. A mitologia grega se destacou entre todas por sua compreensão e profundidade atemporais do que é ser humano. Os trágicos gregos eram... gregos, ou seja, involun tariamente herdeiros desta cultura posto que faziam parte dela. Era seu destino.

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