Um dos episódios mais fascinantes e misteriosos da Odisseia de Homero é o da chegada ao País dos Lotófagos (os que comem a flor de lótus). Ulisses e seus companheiros levantaram ferro da costa da Trácia, desceram à costa do Peloponeso, ladearam os seus promontórios e navegaram para a costa ocidental de Ítaca. Ao décimo dia de navegação, desembarcaram então nessa terra de gentes amistosas que lhes deram de comer a flor de lótus. Os marinheiros ficaram todavia de tal maneira narcotizados que já não queriam saber de voltar para a sua pátria. Ulisses teve de levá-los à força para os barcos e ordenar que partissem com rapidez.
Alguns estudiosos tentaram localizar este país na Tripolitânia, no Noroeste da Líbia. Contudo, o mérito principal de Homero será sempre o de poeta genial e não o de geógrafo, historiador ou cronista: a muitas informações verdadeiras e rigorosas, o príncipe da poesia grega juntou uma boa parte de imaginação e de histórias populares. Por isso, o melhor será concluir que os Lotófagos da Odisseia não têm pátria no mundo real. Mas se este Povo é uma criação puramente lendária, tão imaginário como o Ciclope ou a feiticeira Circe, já a flor de lótus é bem real. Na Índia, é simultaneamente sagrada e útil. No 3º milénio a. C. já é referida como existente nas margens do rio Indo, onde é venerada pelos Hinduístas e Budistas: quando Buda nasceu, logo floriu uma flor de lótus na terra que ele tocou pela primeira vez. A ela se atribuem diversas qualidades relativas à saúde, sorte, beleza, fertilidade, divindade, ressurreição e pureza. Terá sido todavia o lótus do Egipto que serviu de inspiração para Homero. Os micénicos mantiveram contacto com os egípcios durante duzentos ou trezentos anos: os seus produtos chegaram ao Nilo e ao Assuão. Os comerciantes de Micenas tinham por isso muito que contar e entre os seus relatos estaria o de que os egípcios viviam de uma flor chamada lótus.
O carácter misterioso do lótus terá servido na perfeição os propósitos de Homero, cujo auditório escutaria tal história como se fosse realidade. E essa flor é apenas um de entre os muitos objectos mágicos que abundam nesta Odisseia: Helena tem um droga calmante, trazida do Egipto, que faz parar o sofrimento e a dor (IV, 219-232); Circe tem uma poção que transforma os homens em porcos; e, contra os seus efeitos, Hermes dá a Ulisses o môlu, a planta de raiz negra e de flor branca, muito dura para arrancar e que o deve preservar de todos os sortilégios e que por vezes é comparada à mandrágora (X, 302-306). Em Homero, o mágico, o belo e o exótico estão em todo o lado!
A chegada ao País dos Lotófagos é um dos exemplos mais frisantes da criatividade indómita de Homero, assim como do seu entusiasmo pela vida e compreensão da natureza humana. A ingestão do lótus provocava a amnésia e este esquecimento é uma ambição antiga: abre a possibilidade de começar de novo, de renascer, de apagar o passado. Quem de nós é que enjeitaria esta oportunidade de provar o doce lótus e com isso passar uma esponja sobre todos os males e erros do passado? Não surpreende por isso que só a muito custo é que Ulisses tenha conseguido arrancar os seus companheiros daquele estado de êxtase e fazê-los regressar: «e eu fui obrigado a trazê-los à força e debulhados em lágrimas para as naus; puxei por eles e atei-os ao fundo da embarcação, sob os bancos; e entretanto insistia com os outros companheiros que me tinham permanecido fiéis para que se instalassem depressa nas suas naves ligeiras, receando que algum deles ao saborear o lótus se esquecesse do regresso». Esquecer e começar de novo: é tentador, não é?
1 comentário:
muito bom!!!!
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