O que a blogosfera tem de melhor é a sua diversidade. Vejam bem este grupo de blogues, todos diferentes mas igualmente excelentes: a doce Ofeliazinha, o cinéfilo Matiné, o generalista Caso Bicudo e (mais uma vez nunca é demais!) a nossa querida Blue Shell.
2005-03-28
Mister Pink

O meu Reservoir Dog preferido é o Mister Pink (Steve Buscemi), porque é o mais cool (no seu duplo sentido de porreiro e frio) de todos eles. À primeira vista não parece, mas é mesmo. Não só porque ele é o responsável por alguns dos momentos mais inspirados do filme, mas também porque possui um pragmatismo, esperteza e capacidade de sobrevivência dignos de um rato (aliás, se olharmos bem, há qualquer coisa de rato na fisionomia de Buscemi…). No meio da confusão que se segue ao roubo gorado, este Mr Pink é o único assaltante suficientemente sereno para esconder o saque em lugar seguro, acalmar os colegas mais exaltados e perceber que há um traidor entre eles. E quando ele se recusa a dar uma gorjeta à empregada do café, não o faz por mesquinhez ou forretice, mas sim em coerência com esse sentido prático da vida. Qualquer pessoa que tenha atravessado tempos de penúria, compreende bem o gesto de Mister Pink e a sua argumentação. O próprio Quentin Tarantino, que fez dele uma espécie de alter-ego, já defendeu publicamente a sua personagem: «esse foi o meu credo durante muito tempo, porque quando eu ganhava o ordenado mínimo, ninguém me dava gorjetas. Eu desempenhava uma profissão que a sociedade não considerava merecedora de gorjetas». A simpatia do argumentista para com Mister Pink é manifesta: ele não só será o único protagonista poupado à matança, como o seu profissionalismo acabará por ser generosamente recompensado com uma mala cheia de diamantes.
2005-03-22
Jornal de Letras
O excelente Jornal de Letras celebrou por estes dias vinte e cinco anos de dedicação à cultura, à inteligência e ao bom gosto. Ao director José Carlos de Vasconcelos e a todos os seus colaboradores, os nossos parabéns!
2005-03-21
Like a Virgin

Um dos momentos mais reverenciados de Cães Danados (1992) é aquele em que os oito gatunos estão à mesa do café e discutem as implicações filosóficas da canção Like a Virgin, da Madonna. De um lado, Mr Blonde (Michael Madsen), um romântico da velha escola, segue a interpretação mais ortodoxa e fala de uma jovem frágil que conhece um homem sensível e experimenta o amor pela primeira vez. Do outro, Mr Brown (Quentin Tarantino) sugere que a letra da canção é na realidade uma metáfora para pilas grandes:
«Let me tell ya what ‘Like a Virgin’’s about. It’s about some cooze who’s a regular fuck machine. I mean, all the time, morning, day, night, afternoon, dick, dick, dick, dick, dick, dick, dick, dick, dick, dick, dick. […] Then one day she meet a John Holmes motherfucker, and it’s like, whoa baby. This mother fucker’s like Charles Bronson in ‘The Great escape’. He’s diggin’ tunnels. Now she’s getting’ this serious dick action, she’s feelin’ something she ain’t felt since forever. Pain. […] It hurts. It hurts her. It shouldn’t hurt. Her pussy should be Bubble-Yum by now. But when this cat fucks her, it hurts. It hurts like the first time. The pain is reminding a fuck machine what it was like to be a virgin. Hence, ‘Like a Virgin’.»
Madonna é uma fã do filme e reagiu à provocação com todo o fair play e simpatia – o que não deixa de ser um pouco surpreendente, se considerarmos que ela é descrita como uma verdadeira «máquina de sexo». Quando todos os olhares do público se viraram para ela numa projecção do filme a que assistiu, Madonna limitou-se a sorrir e a encolher os ombros. Mais tarde, a diva conheceu Tarantino pessoalmente e contou-lhe qual era o verdadeiro sentido da sua canção: «ela fala-nos de uma miúda que atravessou dificuldades e encontra finalmente um homem que a ama». Os dois artistas ficaram amigos e quando a cantora ofereceu ao cineasta um exemplar do livro Erotica, escreveu a seguinte dedicatória: «Para o Quentin. Não é sobre pilas, é sobre o amor. Madonna.»
Chucky
O boneco Chucky está de volta e o seu novo filme fala-nos, ao que parece, das suas tentativas para gerar um filho através da inseminação artificial. O trailer já anda aí à solta e é uma pérola de descaramento. Só para anglófilos: «Get a load of Chucky!»
Elipses
A elipse é o processo narrativo que se caracteriza pela supressão de elementos da acção para realçar outros e tem no cinema, meio que se rege pela economia e necessidade de síntese, um campo de aplicação privilegiado. A montagem, dividindo o tempo e o espaço narrativos em diversas partes (planos), veio facilitar essa operação e quanto mais elíptico for um filme, mais longe estará de uma estética literária ou teatral. O cinema está repleto de exemplos memoráveis de elipses. O que há de tão apetecível e sedutor nelas é a sua implicação do espectador: as elipses são lacunas, espaços vazios, pequenas ilhotas de liberdade semiótica que solicitam uma pluralidade de leituras. O realizador já não afirma, apenas sugere; não mostra a totalidade das coisas, mas apenas a sua parte mais significativa; e, finalmente, cria espaços de indeterminação, ambiguidade e criatividade que o seu público poderá explorar.
Um exemplo famoso (e fumoso…) de elipse é a que encontramos na sequência de abertura de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock. Tudo começa, coerentemente, muito acima do chão. Um criminoso foge para um telhado que domina uma altura imensa. Dois polícias estão no seu encalço e um deles é James Stewart. Ouvem-se tiros. Quando Stewart escorrega e se agarra por um triz a uma calha, o colega tenta auxiliá-lo mas cai para a sua morte. Tudo indica que Stewart vai seguir o mesmo destino: a chapa metálica que o segura dá sinais de ceder, mas um corte súbito transporta-o logo de seguida para o conforto da casa de Midge. A elipse é das mais enigmáticas, porque nunca nos é mostrado como é que o protagonista se salvou da morte. De certo modo, ele é o primeiro a voltar «d’entre les morts» (título do livro de Boileau e Narcejac que inspirou o filme) e a sua sobrevivência pertence à ordem do onírico. Tudo se passa como num sonho, como no despertar daqueles pesadelos frequentes em que sonhamos que vamos a cair. No final do filme, Stewart voltará a estar suspenso sobre o abismo, sem sabermos se irá cair ou novamente mergulhar na loucura.
Uma das razões que fez de Cães Danados (1992), de Quentin Tarantino, um heist movie tão surpreendente é a grandiosa elipse que está ao centro desta história sobre lealdade e um assalto gorado. Em nenhum momento nos é mostrado o roubo dos diamantes, mas unicamente aquilo que se passa antes e depois: o recrutamento dos gatunos, a fuga para o armazém ou a dramática execução de Mister Orange. Tarantino explica porquê: «alguns realizadores gostam de mostrar tudo. Eles não querem que o público especule sobre o que quer que seja; está tudo lá. Eu não penso assim. Eu já vi tantos filmes que me dá um gozo enorme manipulá-los. Cerca de nove em cada dez filmes que vemos, dão logo a entender nos seus primeiros dez minutos que tipo de filme é que são e o público apercebe-se no seu subconsciente disso e começa a virar para a esquerda quando o filme ainda se está a preparar para virar à esquerda; eles prevêem aquilo que vai acontecer a seguir. E o que eu gosto de fazer é utilizar essa informação contra eles.»
O grande David Mamet sempre gostou de fazer filmes sobre filmes e em Manobras na Casa Branca (1997) escolheu falar sobre os produtores. Tradicionalmente, eles eram meros assalariados aos quais se atribuíam projectos, orçamentos, elencos e equipas técnicas, mas o moderno Dustin Hoffman destas Manobras é muito mais do que isso: uma mistura de empresário astuto, contabilista prudente, diplomata flexível e criador artístico visionário. Em suma, um filho da mãe esperto. No final, ele consegue salvar a candidatura do Presidente dos Estados Unidos, mas ainda não está satisfeito: «Acha que eu fiz isto tudo pelo dinheiro? Eu fiz isto pelo reconhecimento! […] Eu sou o produtor, se não fosse por mim não se teria conseguido nada. Eu é que fiz tudo e num tempo recorde. Veja isto. Isto é uma porra de uma fraude e parece 100 % verdade. É o meu melhor trabalho de sempre, porque é tão honesto. Pela primeira vez na minha vida, eu não vou ser intrujado. Eu quero o meu crédito!» Claro que Hoffman nunca chegará a obter o crédito e a cena seguinte conduz-nos de um salto às suas exéquias fúnebres. A morte do protagonista deverá ter sido tudo menos tranquila, mas, felizmente para nós, Mamet não quis sujar as mãos e a sua elipse final poupar-nos-á a esse espectáculo penoso.
Um exemplo famoso (e fumoso…) de elipse é a que encontramos na sequência de abertura de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock. Tudo começa, coerentemente, muito acima do chão. Um criminoso foge para um telhado que domina uma altura imensa. Dois polícias estão no seu encalço e um deles é James Stewart. Ouvem-se tiros. Quando Stewart escorrega e se agarra por um triz a uma calha, o colega tenta auxiliá-lo mas cai para a sua morte. Tudo indica que Stewart vai seguir o mesmo destino: a chapa metálica que o segura dá sinais de ceder, mas um corte súbito transporta-o logo de seguida para o conforto da casa de Midge. A elipse é das mais enigmáticas, porque nunca nos é mostrado como é que o protagonista se salvou da morte. De certo modo, ele é o primeiro a voltar «d’entre les morts» (título do livro de Boileau e Narcejac que inspirou o filme) e a sua sobrevivência pertence à ordem do onírico. Tudo se passa como num sonho, como no despertar daqueles pesadelos frequentes em que sonhamos que vamos a cair. No final do filme, Stewart voltará a estar suspenso sobre o abismo, sem sabermos se irá cair ou novamente mergulhar na loucura.
Uma das razões que fez de Cães Danados (1992), de Quentin Tarantino, um heist movie tão surpreendente é a grandiosa elipse que está ao centro desta história sobre lealdade e um assalto gorado. Em nenhum momento nos é mostrado o roubo dos diamantes, mas unicamente aquilo que se passa antes e depois: o recrutamento dos gatunos, a fuga para o armazém ou a dramática execução de Mister Orange. Tarantino explica porquê: «alguns realizadores gostam de mostrar tudo. Eles não querem que o público especule sobre o que quer que seja; está tudo lá. Eu não penso assim. Eu já vi tantos filmes que me dá um gozo enorme manipulá-los. Cerca de nove em cada dez filmes que vemos, dão logo a entender nos seus primeiros dez minutos que tipo de filme é que são e o público apercebe-se no seu subconsciente disso e começa a virar para a esquerda quando o filme ainda se está a preparar para virar à esquerda; eles prevêem aquilo que vai acontecer a seguir. E o que eu gosto de fazer é utilizar essa informação contra eles.»
O grande David Mamet sempre gostou de fazer filmes sobre filmes e em Manobras na Casa Branca (1997) escolheu falar sobre os produtores. Tradicionalmente, eles eram meros assalariados aos quais se atribuíam projectos, orçamentos, elencos e equipas técnicas, mas o moderno Dustin Hoffman destas Manobras é muito mais do que isso: uma mistura de empresário astuto, contabilista prudente, diplomata flexível e criador artístico visionário. Em suma, um filho da mãe esperto. No final, ele consegue salvar a candidatura do Presidente dos Estados Unidos, mas ainda não está satisfeito: «Acha que eu fiz isto tudo pelo dinheiro? Eu fiz isto pelo reconhecimento! […] Eu sou o produtor, se não fosse por mim não se teria conseguido nada. Eu é que fiz tudo e num tempo recorde. Veja isto. Isto é uma porra de uma fraude e parece 100 % verdade. É o meu melhor trabalho de sempre, porque é tão honesto. Pela primeira vez na minha vida, eu não vou ser intrujado. Eu quero o meu crédito!» Claro que Hoffman nunca chegará a obter o crédito e a cena seguinte conduz-nos de um salto às suas exéquias fúnebres. A morte do protagonista deverá ter sido tudo menos tranquila, mas, felizmente para nós, Mamet não quis sujar as mãos e a sua elipse final poupar-nos-á a esse espectáculo penoso.
2005-03-17
Um tiro no escuro
O realizador Leonel Vieira acaba de estrear Um tiro no escuro (2005), que conta com um elenco notável: Joaquim de Almeida, Vanessa Machado, Filipe Duarte, Miguel Borges, João Lagarto e, claro está, o grande Ivo Canelas. Que maravilha de actor, este Canelas! No nosso filme O Porteiro, o Ivo interpretou com todo o brilhantismo um protagonista indeciso e sentimental. Agora, a comprovar a sua versatilidade espantosa, ele é o Brocas, um ex-presidiário oleoso, charrado e movido ao som dos Mão Morta. Ah, e esperem só pela surpresa que ele vos reserva lá mais para o fim do filme!
Depressão
Para mim, ao contrário do que preconizavam os poetas românticos, um texto deve sair de uma assentada e na sua forma definitiva, porque só assim se escreve com verdade. Detesto fazer correcções ou aditamentos às minhas crónicas. As emendas são uma vergonha e representam uma capitulação miserável perante a minha falta de talento.
2005-03-16
Stephen King
Uma paragem obrigatória no roteiro da blogosfera: as Estações Diferentes, do português Stephen King.
2005-03-14
Os lisboetas
Um dos traços comportamentais mais marcantes dos lisboetas é a sua elegância no vestir. O verdadeiro alfacinha não esquece a sua camisola da Burberry's, a camisa Lacoste ou os sapatinhos italianos e seja em que circunstância for: no passeio de domingo, no hipermercado, no shopping. No café, eis-me aqui de calções e sapatilhas cambadas, como um macaco jogado no meio dos dandies da capital.
2005-03-11
2005-03-08
Os críticos
Os críticos de cinema portugueses são francamente maus. Quase todos são seres pedantes, ignorantes da história do cinema e desconhecedores do que são os bastidores de um filme. Muitos escrevem sem brilho e objectividade. Outros ainda, menosprezam quase tudo o que seja produzido em Portugal, porque só é bom aquilo que é estrangêro. Claro que também há excepções, como os sempre excelentes e sabedores João Lopes, Lauro António e Bénard da Costa, além de vários blogues cinéfilos de enorme interesse, mas a maioria das coisas que lemos na imprensa dita tradicional estão muito abaixo do medíocre. Todos os que conhecem as redacções dos nossos jornais, sabem como é que as coisas se passam: «se não sabes fazer nada, vais para a crítica de cinema». É pena, pois a crítica não é uma figura menor e a sua influência junto do público está longe de ser despicienda.
Escrever uma crítica de cinema não é uma tarefa simples e as dificuldades começam com a complexidade do seu objecto: os filmes. Afinal, do que devemos falar quando falamos de um filme: o argumento? A montagem? Os actores? Mais: apesar de os puristas limitarem a crítica aos aspectos formais e a investigação académica às implicações culturais, o ponto ideal estará algures entre esses dois extremos. Tudo visto, teremos de concordar com Jean Cocteau quando afirmava que a musa do cinema «é excessivamente rica». O crítico deve começar por traçar uma estratégia de abordagem e seleccionar aquilo que lhe interessa de entre toda esta riqueza; aliás, o termo crítica deriva do verbo grego krinõ, que significa precisamente separar, distinguir, julgar. Depois, há que integrar com criatividade e sentido aquilo que se escolheu.
Outra particularidade está no carácter pragmático do cinema. Um filme é um empreendimento que resulta do encontro de forças muito diversas – produção, tecnologia e distribuição – e o crítico deve por isso munir-se de cuidados acrescidos. Nenhum filme é mau ou bom por causa das suas limitações de orçamento, mas é necessário ajustar expectativas: não é o mesmo julgar uma grande produção de Hollywood e um pequeno filme independente. No caso das produções africanas ou sul-americanas, o seu aspecto rudimentar poderá ser tanto um efeito secundário das dificuldades orçamentais quanto uma afirmação ideológica consciente e deliberada. O caso ainda recente do excelente filme angolano O Herói (2004), de Zé Zé Gamboa, foi expressivo: muitos críticos da nossa terra torpedearam a obra com toda a espécie de adjectivos desagradáveis, enquanto que lá fora, o filme acumulou prémios. Porque a versão exibida cá e lá foi rigorosamente a mesma, temos de concluir que os nossos críticos erraram e não conseguiram compreender a importância (que é coisa substancialmente diferente de gostar ou não gostar) desta primeira longa-metragem angolana.
Mas não basta compreender. Na sua obra-prima A Noite Americana (1973), Truffaut fala da distância abissal entre a idealização de um filme e a concretização dessa ideia; o mesmo se pode dizer da escrita sobre cinema, pois as boas ideias não são suficientes, é preciso saber expressá-las bem. Ora, a crítica é um texto caracteristicamente argumentativo que se dirige ao grande público consumidor de filmes; é isso que a distingue de outras formas de análise do cinema, como o ensaio crítico ou o ensaio teórico. O público privilegiado de uma crítica é por isso composto não por estudiosos, mas leigos que vêem os filmes por gosto. Insensíveis a esta evidência, os críticos que lemos minam os seus textos com um palavreado excessivamente técnico, muitas vezes sem qualquer rigor e de forma ininteligível para a generalidade dos leitores.
Escrever uma crítica de cinema não é uma tarefa simples e as dificuldades começam com a complexidade do seu objecto: os filmes. Afinal, do que devemos falar quando falamos de um filme: o argumento? A montagem? Os actores? Mais: apesar de os puristas limitarem a crítica aos aspectos formais e a investigação académica às implicações culturais, o ponto ideal estará algures entre esses dois extremos. Tudo visto, teremos de concordar com Jean Cocteau quando afirmava que a musa do cinema «é excessivamente rica». O crítico deve começar por traçar uma estratégia de abordagem e seleccionar aquilo que lhe interessa de entre toda esta riqueza; aliás, o termo crítica deriva do verbo grego krinõ, que significa precisamente separar, distinguir, julgar. Depois, há que integrar com criatividade e sentido aquilo que se escolheu.
Outra particularidade está no carácter pragmático do cinema. Um filme é um empreendimento que resulta do encontro de forças muito diversas – produção, tecnologia e distribuição – e o crítico deve por isso munir-se de cuidados acrescidos. Nenhum filme é mau ou bom por causa das suas limitações de orçamento, mas é necessário ajustar expectativas: não é o mesmo julgar uma grande produção de Hollywood e um pequeno filme independente. No caso das produções africanas ou sul-americanas, o seu aspecto rudimentar poderá ser tanto um efeito secundário das dificuldades orçamentais quanto uma afirmação ideológica consciente e deliberada. O caso ainda recente do excelente filme angolano O Herói (2004), de Zé Zé Gamboa, foi expressivo: muitos críticos da nossa terra torpedearam a obra com toda a espécie de adjectivos desagradáveis, enquanto que lá fora, o filme acumulou prémios. Porque a versão exibida cá e lá foi rigorosamente a mesma, temos de concluir que os nossos críticos erraram e não conseguiram compreender a importância (que é coisa substancialmente diferente de gostar ou não gostar) desta primeira longa-metragem angolana.
Mas não basta compreender. Na sua obra-prima A Noite Americana (1973), Truffaut fala da distância abissal entre a idealização de um filme e a concretização dessa ideia; o mesmo se pode dizer da escrita sobre cinema, pois as boas ideias não são suficientes, é preciso saber expressá-las bem. Ora, a crítica é um texto caracteristicamente argumentativo que se dirige ao grande público consumidor de filmes; é isso que a distingue de outras formas de análise do cinema, como o ensaio crítico ou o ensaio teórico. O público privilegiado de uma crítica é por isso composto não por estudiosos, mas leigos que vêem os filmes por gosto. Insensíveis a esta evidência, os críticos que lemos minam os seus textos com um palavreado excessivamente técnico, muitas vezes sem qualquer rigor e de forma ininteligível para a generalidade dos leitores.
Rasputine

«É óbvio que sou um ladrão. Mas aquilo que roubo, gasto. Faço o dinheiro circular. Há montes de pessoas que vivem graças áquilo que eu gasto depois de um roubo.»
Marina Seminova

«Sim, dancei e bebi com os meus homens. De vez em quando, é preciso sabermos divertir-nos. Sobretudo se, depois, podemos rezar para obter o perdão do Senhor.»
2005-03-07
Victor Espadinha
A programação da Rádio Radar (97.8) está ainda melhor graças à presença assídua de Victor Espadinha, o nosso maior galanteador. Segundo Espadinha, para quem desejo é sinónimo de potência, os segredos para uma relação de sucesso são três: respeito mútuo, saber esconder o ciúme e não confessar as infidelidades.
All That Jazz
«Se eu fosse Deus – e às vezes penso que sou, depende daquilo que se está a fumar… Ok, se eu fosse Deus, toda a gente vivia eternamente. Enfim, podia haver uma ou duas excepções, como o meu agente, que me enfiou nesta espelunca. Sabem, a morte está na moda. Livros, artigos de revista, programas de televisão, o Ken e a Barbie com um pacto suicida. Há uma senhora que escreveu um livro, a Dra. Kübler-Ross, com hífen. Essa senhora, sem o benefício da própria morte, dividiu o processo da morte em cinco fases: ira, negação, negociação, depressão e aceitação. Parece uma firma de advogados judeus: ‘Bom dia, daqui fala Ira, Negação, Negociação, Depressão & Aceitação, em que lhe posso ser útil?’»
2005-03-02
Prazer Inculto
Um dos blogues mais inspirados de toda a Internet acaba de completar dois anos de idade: o Prazer Inculto, do nosso Possidónio Cachapa. Parabéns, Mestre!
2005-03-01
O Código Da Vinci na RTP1
A controvérsia em redor de O Código Da Vinci continua acesa e a RTP1 decidiu dedicar-lhe todo o serão de ontem, com um debate e um documentário sobre o tema. O documentário foi esclarecedor e uma boa síntese da questão de Jesus e Maria Madalena. Já o debate que se seguiu, com Carreira das Neves, Anselmo Borges, Helena Barbas e João César das Neves, foi menos objectivo. Todos os quatro participantes disseram o mesmo e falaram a uma só voz contra «os perigos» do romance de Dan Brown - excepção feita a uma nesga de controvérsia a respeito do estatuto da mulher no seio da Igreja Católica. Mesmo assim, sobreviveram algumas ideias importantes: Borges criticou a misoginia da Igreja e Helena Barbas falou doutamente sobre a erradicação sistemática do Feminino dos textos sagrados.
2005-02-28
Óscares 2005
Foi realmente uma noite maravilhosa para os Óscares e, em jeito de balanço, aqui ficam duas palavrinhas: uma, de satisfação pelo brilharete do nosso Jamie Foxx; e a outra, de irritação por mais uma derrota imerecida do grande Marty Scorcese.
Suchard Express
Hoje, gostaria de falar um pouco da célebre bebida achocolatada Suchard Express, à venda em qualquer bom supermercado. Não se trata de uma manobra publicitária mais esquiva ou envergonhada, até porque a empresa Suchard tem ao seu dispor meios bem mais eficazes de divulgar os seus produtos. Nem quero desconsiderar as outras marcas de achocolatados, igualmente excelentes (Nesquik, Ovomaltine ou Cola Cao, por exemplo). Faço-o apenas como forma de agradecimento pela ajuda que o Express me prestou naquelas semanas infernais em que a febre me acorrentou à cama e a amigdalite congestionava as minhas goelas: nada, a bem dizer nada, conseguia descer pela garganta a não ser essa formosa bebida.
Isto não surpreende se lermos a informação nutricional impressa no rótulo da embalagem do Suchard, pois logo verificamos que o seu valor alimentício é imenso. Entre outros nutrientes prestigiados, avultam a vitamina B1, essencial ao funcionamento da cabeça e do coração, a vitamina B6, que estimula a criação de anticorpos, e a vitamina B12, essa autêntica fonte de juventude que favorece a regeneração dos tecidos e o crescimento do corpo. A tudo isto, acresce que beber o Express é uma experiência prazenteira como poucas: o seu sabor é requintado e um digno embaixador do melhor chocolate suíço.
Devemos a criação desta bebida preciosa ao Senhor Pierre Suchard, cuja história é a de um típico self-made man. Tudo começou em 1825, com a inauguração de uma pequena confeitaria na Suiça. O sucesso foi imediato e não parou. Em 1883, a pequena loja de guloseimas já se tornou na maior empresa produtora de chocolate do seu país e uma marca de referência mundial. Nos anos 60, surge finalmente o nosso Suchard Express: uma bebida nutritiva, deliciosa e fácil de preparar. A publicidade descreve-a como «um achocolatado único, marcado pelo sabor inconfundível da tradição do chocolate» e tem toda a razão! Obrigado, Pierre Suchard!
Isto não surpreende se lermos a informação nutricional impressa no rótulo da embalagem do Suchard, pois logo verificamos que o seu valor alimentício é imenso. Entre outros nutrientes prestigiados, avultam a vitamina B1, essencial ao funcionamento da cabeça e do coração, a vitamina B6, que estimula a criação de anticorpos, e a vitamina B12, essa autêntica fonte de juventude que favorece a regeneração dos tecidos e o crescimento do corpo. A tudo isto, acresce que beber o Express é uma experiência prazenteira como poucas: o seu sabor é requintado e um digno embaixador do melhor chocolate suíço.
Devemos a criação desta bebida preciosa ao Senhor Pierre Suchard, cuja história é a de um típico self-made man. Tudo começou em 1825, com a inauguração de uma pequena confeitaria na Suiça. O sucesso foi imediato e não parou. Em 1883, a pequena loja de guloseimas já se tornou na maior empresa produtora de chocolate do seu país e uma marca de referência mundial. Nos anos 60, surge finalmente o nosso Suchard Express: uma bebida nutritiva, deliciosa e fácil de preparar. A publicidade descreve-a como «um achocolatado único, marcado pelo sabor inconfundível da tradição do chocolate» e tem toda a razão! Obrigado, Pierre Suchard!
2005-02-25
Acordar para a Vida
«Depressão, lutas, motins, homicídios. Todo este horror. Somos atraídos por esse estado quase orgíaco criado pela destruição e pela morte. Está em todos nós, deleitamo-nos com ele. Os media tentam entristecer estas coisas, pintando-as de tragédias humanas. Mas a função dos media nunca foi eliminar os males do mundo. Persuadem-nos, isso sim, a aceitar esses males e a viver com eles. Os poderes instituídos querem que sejamos observadores passivos. Tens um fósforo? E não nos deram outras opções, excepção feita ao episódico e puramente simbólico e participativo acto de votar. Queres o fantoche da direita ou o fantoche da esquerda? Sinto que chegou a hora de projectar as minhas imperfeições e frustrações em esquemas socipolíticos e científicos. Que se ouça a minha falta de voz.»
Sala de Pânico
O thriller Sala de Pânico (2002), do excelente David Fincher, pertence àquela categoria pouco abonatória de obras cinematográficas que François Truffaut baptizou como «grandes filmes doentes»: obras-primas abortadas, empresas ambiciosas que sofrem erros de percurso graves. No caso de Sala de Pânico, o mal esteve sobretudo no argumento de David Koepp, mas algumas medidas profiláticas muito simples poderiam ter evitado a dita doença ou, pelo menos, aliviado os seus sintomas. Uma primeira possibilidade, não explorada, seria levar ainda mais além a unidade de lugar: porque não situar os dois primeiros actos exclusivamente no interior da sala blindada? A opção é arrojada, mas resultaria em mais emoção, mais suspense e mais empatia com as duas heroínas aprisionadas. As aselhices do guionista prosseguiram com os três vilões ineptos e trapalhões, que dificilmente poderiam constituir uma ameaça credível. Finalmente, fundamentar o divórcio de Jodie Foster na infidelidade do marido (em vez da sempre pertinente violência doméstica) foi outro erro, pois fez da protagonista uma mulher neurótica e pueril e indigna de encabeçar um filme de Fincher.
2005-02-24
O Sentido da Vida

«Aqui está o sentido da vida. Não é nada de especial. Tentem ser bons. Evitem comer gorduras. Leiam um bom livro de vez em quando. Passeiem. Tentem viver em paz e harmonia com pessoas de todos os credos e nações. Finalmente, algumas imagens gratuitas de pénis para chatear a censura e esperançosamente espalhar controvérsia, que é o único modo de fazer ir ao cinema os saturados de vídeo. Entretenimento familiar? Tretas. Eles querem obscenidades. Pessoas a fazerem coisas umas às outras com serras eléctricas. Bábás esfaqueadas por candidatos presidenciais maricas com agulhas de tricotar. Vigilantes a estrangular galinhas. Críticos de teatro armados a exterminar cabras mutantes. Onde é que está o divertimento nos filmes?»
2005-02-22
Aristides de Sousa Mendes

Ainda há muitos portugueses que não sabem quem foi Aristides de Sousa Mendes. Porém, o nosso País deve-lhe imenso. As suas decisões enquanto cônsul de Portugal em Bordéus representaram, muito provavelmente, a maior acção de salvamento por um único indivíduo durante o Holocausto. Tudo começou em Maio de 1940, quando Sousa Mendes foi confrontado com um dilema doloroso: obedecer às ordens de Salazar e negar os vistos portugueses aos refugiados que chegavam a Bordéus, ou seguir o apelo da sua consciência e emitir os vistos que significavam a diferença entre a vida e a morte para muitas pessoas, sobretudo judeus. Sousa Mendes tinha tudo a perder: o apreço do regime de Lisboa, uma carreira diplomática de 30 anos e sobretudo a segurança dos 12 filhos que tinha a seu cargo. Mesmo assim, optou pelo mais difícil e, ao arrepio das advertências que chegavam do gabinete de Salazar, decidiu ajudar os fugitivos que se acumulavam à porta do seu consulado.
Quando Aristides de Sousa Mendes regressou a Portugal em 9 de Julho de 1940, aguardava-o uma ironia terrível: o diplomata, que havia auxiliado milhares de refugiados, tornava-se agora, também ele, num refugiado. Salazar, que nunca teve sequer a dignidade de conceder uma audiência ao cônsul, foi implacável e não lhe perdoou a audácia. Depois de um processo disciplinar miserável, veio o desemprego, a pobreza e o desespero. Nos momentos de maior angústia, Sousa Mendes foi forçado a recorrer à sopa dos pobres judaica para poder alimentar a família. Mais: finda a guerra, Salazar colheu com enorme hipocrisia os louros do auxílio a milhares de estrangeiros, um mérito que na realidade nunca pertenceu ao regime mas sim a Sousa Mendes e ao povo português. O cônsul morreu a 3 de Abril de 1954, arruinado mas de consciência tranquila, no Hospital da Ordem Terceira, uma clínica gratuita para os pobres dirigida pelos Franciscanos.
2005-02-20
A humildade
Há dias, uma telespectadora telefonou ao nosso Manuel Luís Goucha e disse que gostava do apresentador porque ele era «muito humilde». Nunca compreendi muito bem esta obsessão que os portugueses têm com a humildade. Na América, as vedetas posam radiosas para as câmaras em frente dos seus bólides e casarões em Beverly Hills. Em Portugal, pelo contrário, é uma vergonha ter vaidade naquilo que se faz.
Dar o Arroz
Se A Bomba tivesse uma secção de links, os primeiros da lista seriam os excelentes blogues do Arroz de Estragão: Muitas Coisas, Entreter e Muitas Coisas Plus.
2005-02-14
Bernardo Motta e O Código Da Vinci
O blogonauta Bernardo Motta é um crítico implacável do best seller mundial O Código Da Vinci, de Dan Brown, e explica porquê no sítio O mistério de Rennes-le-Château. O enigma chegou ao conhecimento de Motta na década de 80 e incluía um tesouro, um padre francês excêntrico e uma conspiração política internacional: enfim, um isco mais que apetecível para este devorador de mistérios, que nos oito anos que se seguiram encetou uma grande investigação. Os resultados estão à vista de todos no seu excelente sítio, que se lê de um trago e com imenso proveito. Mas este católico militante não se limitou a investigar, pois aos factos e documentos minuciosamente analisados, juntou também os seus comentários mordazes a respeito das teses dos que apelida de «mistificadores». O sucesso do romance de Dan Brown, inspirado nas ocorrências de Rennes-le-Château, viria a conferir ainda mais pertinência à pesquisa de Bernardo Motta.
O mundo já conhece bem o enredo sinuoso deste Código Da Vinci. O curador Jacques Saunière é assassinado em plena Grande Galeria do Louvre, mas a bala alojada na barriga não o impede de deixar algumas mensagens codificadas. O simbologista Robert Langdon e a criptóloga Sophie Neveu, neta de Saunière, são chamados ao local do crime, mas logo passam de investigadores a principais suspeitos. Porém, o verdadeiro homicida é Silas, um monge ao serviço do bispo Aringarosa da Opus Dei, que consegue escapar incógnito. Na posse das pistas que Saunière deixou com as pinturas de Da Vinci, Sophie e Langdon fogem do museu. O que se segue é uma frenética peregrinação pelos lugares mais misteriosos de França, Inglaterra, Escócia e novamente a França, em busca da linhagem sagrada e secreta de Jesus Cristo e Maria Madalena.
O que dizer destas duas obras, igualmente fascinantes mas inconciliáveis nas conclusões em que aportam? A tentação imediata é afirmar que as críticas de Motta são um pouco injustas, porque este é apenas um produto de entretenimento e que a Dan Brown, como a todos os Autores de ficção, tudo deve ser permitido. Isto é rigorosamente verdadeiro, mas não nos diz grande coisa. Aquilo que realmente nos interessa é distinguir, de entre o vastíssimo manancial de factos referidos neste livro, o joio ficcional do trigo comprovadamente histórico e verdadeiro e, já agora, esclarecer quais serão as verdadeiras intenções do criador de O Código Da Vinci.
Existe, porém, um elemento perturbador, que Motta refere com toda a argúcia, pois Dan Brown precedeu o corpus do seu romance de indicações preambulares que asseguram a autenticidade de algumas figuras do seu romance: o Priorado do Sião, a Opus Dei e as obras de arte mencionadas no livro. A controvérsia está, concretamente, em saber se isto representa uma discreta adesão de Brown ao controverso Priorado e à sua oposição ao Vaticano. Se considerarmos que a existência histórica do Priorado é indesmentível (aliás, existem doações régias que a comprovam), veremos que, afinal de contas, o Autor não merece qualquer crítica e foi suficientemente prudente nas suas afirmações: designadamente, porque não se pronuncia sobre qual o objecto e real influência do Priorado do Sião fundado em 1099 (e em particular, se esteve ou não na origem dos Templários), a ligação entre esta organização e a registada com o mesmo nome em 1956 ou a seriedade dos propósitos do actual Priorado.
A crítica que se segue é a da pretensa aversão do romance ao catolicismo. Numa das passagens mais controversas do livro, Brown escreve: «Durante trezentos anos de caça às bruxas, a Igreja queimara nas fogueiras uns estarrecedores cinco milhões de mulheres. A propaganda e a orgia de sangue tinham resultado. O mundo actual era uma prova viva disso mesmo. As mulheres, outrora celebradas como a metade essencial da iluminação espiritual, tinham sido banidas dos templos de todo o mundo». A verdade, porém, é que O Código Da Vinci não ataca nenhum credo religioso, muito menos o catolicismo. Alguns críticos aproveitaram algumas afirmações do vilão Leigh Teabing, completamente desgarradas e retiradas do seu contexto, e pretenderam ver nelas a afirmação das convicções do próprio Brown, o que é um absurdo completo e intelectualmente desonesto. Se quisermos descortinar as verdadeiras convicções do Autor, deveremos antes atender às palavras do protagonista Robert Langdon, o seu herói e alter-ego, que, por mais de uma vez, se refere aos actuais dirigentes católicos como homens piedosos e íntegros.
Outros críticos, mais moderados, desvalorizam o romance mas denunciam o ataque ao catolicismo que transparece nas entrevistas de Brown. Bernardo Motta, por exemplo, fala das suas propostas revolucionárias para a reforma do cristianismo. Mais uma vez, é um exagero. As entrevistas de Dan Brown são claras, lúcidas e estão acessíveis a todos no seu sítio na Internet.
Será que Brown, não sendo um opositor do catolicismo, é todavia um crítico da Opus Dei? Parecem apontar nesse sentido as suas referências ao cilício, à mortificação corporal (uma «constante recordação dos sofrimentos de Cristo») e à polémica sede bilionária erguida no número 243 da Lexington Avenue, em Nova Iorque. O mesmo se diga das suas personagens, ficcionais mas sinistras, do bispo Aringarosa e do monge albino que vai acumulando cadáveres à sua passagem: antes de ser executada por esse Silas, a corajosa irmã Sandrine Bieil diz-lhe «Jesus tinha apenas uma mensagem verdadeira e não vejo essa mensagem na Opus Dei». Também provocou grande controvérsia a canonização supersónica do seu fundador Josemaría Escrivá, falecido em 1975: a 17 de Maio de 1992, foi beatificado por João Paulo II e proclamado santo dez anos depois, a 6 de Outubro de 2002. Mais uma vez, não há nenhum ataque oculto de Brown, pois não só Aringarosa é na realidade um homem que age manipulado e em desespero, como a sua Opus Dei e a Igreja Católica são, no final, absolvidas de qualquer culpa. O verdadeiro responsável é Teabing, que «explorara o Vaticano e a Opus Dei, duas entidades que acabaram por revelar-se completamente inocentes» (sic).
A opinião de Langdon (aliás, Brown) relativamente ao Priorado do Sião também confirma a objectividade do Autor de O Código Da Vinci: «não tomo qualquer posição relativamente às acções do Priorado». Esta organização, por vezes conhecida como Ordem do Sião ou Ordem da Nossa Senhora do Sião, é uma sociedade secreta fundada em 1099 durante a Primeira Cruzada. Dan Brown fala de uma tripla tarefa do Priorado: proteger os documentos Sangreal, proteger o túmulo de Maria Madalena e manter a linhagem de Cristo, que subsiste através dos poucos descendentes Merovíngios que chegaram aos nossos dias e são os pretendentes legítimos do trono francês. Será este o grande segredo ciosamente conservado ao longo dos séculos pelos membros do Priorado e que poderia abalar os alicerces tanto do Estado como da Igreja? Mesmo admitindo que sim, existem à partida dificuldades de monta à prossecução dos objectivos políticos: não só pelo problema de transformar a França republicana na monarquia que foi rejeitada há mais de um século, mas também, e mesmo supondo que a dinastia Merovíngia pudesse ser provada, porque essa mesma dinastia não teria qualquer direito ao trono, já que a nação francesa não existia durante a era dos Merovíngios.
Para os cépticos, o Priorado existe apenas desde os anos 50 e é formado por um grupo de monárquicos sem poder efectivo e com a mania das grandezas. As dúvidas começam com a fonte primacial de informação a respeito desta organização, que consiste nos chamados Dossiers secrets: sete documentos depositados na Biblioteca Nacional de Paris entre 1964 e 1967, que contêm sobretudo registos concernentes ao mistério de Rennes-le-Château e à suposta obsessão Merovíngia da sociedade, cujos membros são descritos como «os apoiantes de todas as heresias […] passando pelos cátaros e os templários até à maçonaria» ou «agitadores secretos contra a Igreja». O mistério ainda mais se adensa quando olhamos para aquele que foi, até recentemente, o rosto visível do actual Priorado: Pierre Plantard (1920-2000). A sua biografia é tortuosa e tanto regista períodos de grandes dificuldades financeiras, como uma acção decisiva no curso da História europeia. Foi Plantard que, sob o pseudónimo de Capitão Way, esteve por detrás da organização dos Comités de Salvação Pública que promoveram o regresso ao poder em 1958 do General Charles De Gaulle – o qual viria depois a agradecer essa colaboração numa carta datada de 29 de Julho de 1958. Plantard, que nunca alegou ser descendente de Jesus, confessou em 1993 que tinha inventado o Priorado do Sião. Hoje, a organização está a cargo de Gino Sandri, que Motta descreve como «um pateta».
Muito antes de Plantard e Sandri, este Priorado teria contado com um Grão-Mestre particularmente ilustre: o grande Leonardo Da Vinci, cujo extraordinário fresco A Última Ceia ocupa um lugar central na trama do romance de Dan Brown. Porque Da Vinci não era um cristão e porque incluiu mensagens secretas nas suas obras, muitos têm tentado dar um sentido às aparentes anomalias desta sua pintura: a inexistência de um cálice ou uma taça de vinho, o que é estranho se considerarmos que este é o momento em que Jesus inicia o sacramento do pão e do vinho; a exiguidade de pão (que Jesus identificou com o seu próprio corpo) partido, que poderá ocultar alguma mensagem subtil sobre a verdadeira natureza do sofrimento de Cristo; a figura de João Baptista é na realidade a de uma mulher, cujos trajes reflectem o de Jesus, pois enquanto que um veste uma túnica azul e um manto vermelho, o outro veste uma túnica vermelha e um manto azul, de estilo idêntico; a forma de um M aberto que Jesus e esta mulher constituem em conjunto; ambos são ameaçados por um dedo em riste, embora pareçam alheios a essas ameaças e perdidos no mundo dos seus pensamentos; Judas, que se admite ter por modelo o próprio Leonardo, inclina-se e vira completamente as costas ao Redentor; e, finalmente, a célebre mão sem corpo que segura uma adaga. Muitas destas anomalias são, porém, facilmente explicáveis, se considerarmos que Leonardo representou a última ceia segundo São João: por isso, sem Eucaristia (daí que não exista cálice) e com o «discípulo amado». Curiosamente, Brown e os Autores em seu redor parecem ter menosprezado os escritos de Leonardo, que são um autêntico viveiro de mensagens codificadas e ocultistas.
A aldeia de Rennes-le-Château, que empresta o seu nome ao sítio de Motta, ocupa um lugar primacial neste drama (ou farsa…) do Priorado do Sião. Segundo a lenda, o padre François-Bérenger Saunière (1852-1917) fez uma descoberta extraordinária durante as obras de renovação da sua delapidada igreja paroquial do século X, que lhe permitiu enriquecer imensamente e financiar alguns investimentos estranhos. Diz-se que entre 1896 e a sua morte em 1917 terá gasto 23 milhões de francos; que tinha também contas bancárias em Paris, Perpignan, Toulouse e Budapeste e investiu fortemente em acções e títulos do Estado; que recebia faustosamente na sua Villa Béthanie os ricos e famosos, como a diva Emma Calvé, políticos e membros de famílias imperiais; e que na altura da sua morte, estava empenhado em novos e ambiciosos projectos que custariam no mínimo 8 milhões de francos, como uma estrada de acesso à aldeia ou uma torre com 70 metros de altura da qual pretendia chamar os fiéis à oração. A especulação tem variado, ao longo dos anos, quanto à verdadeira natureza da descoberta de Saunière: um segredo alquímico, a Arca da Aliança, o tesouro do templo de Jerusalém, o Santo Graal ou o próprio túmulo de Jesus. O Priorado afirma que Saunière descobriu pergaminhos contendo informação genealógica que prova a sobrevivência da dinastia merovíngia e que certos indivíduos têm direito a reclamar o trono de França, como Pierre Plantard. Contudo, ninguém à margem do Priorado viu esses pergaminhos e tudo o que conhecemos são cópias que, no dizer de Bernardo Motta, foram forjadas: aliás, Philippe Chérisey, associado de Plantard, admitiu ter sido o autor da falsificação.
Qual seria então a origem da fortuna de Saunière? Crê-se que o padre estava a ser pago do exterior por serviços que implicavam a sua estada em Rennes-le-Château e tudo indica que esse financiador fosse o próprio Priorado do Sião. O interesse da organização na localidade era antigo: para além do que consta dos Dossiers secrets, Plantard possuía terrenos na proximidade da aldeia e ali comprou um talhão do cemitério. Seja como for, o comportamento esquivo do padre demonstra que ele buscava alguma coisa que era suficientemente importante para justificar um grande secretismo: os demorados passeios pelas imediações, as viagens prolongadas e mais ou menos furtivas a locais afastados e as misteriosas escavações no cemitério local. Apesar do desagrado da população, Saunière começou a escavar no cemitério à noite e apagou as inscrições da pedra vertical e da placa que cobria a sepultura de Marie de Nègre d’Ables, uma mulher nobre da região falecida a 17 de Janeiro de 1781, presumivelmente para destruir a informação que ela continha.
Motta entende que não existe mistério nenhum em Rennes-le-Château e que Saunière ganhou o dinheiro apenas com o tráfico de missas. Esta é, todavia, uma explicação que suscita muitas dúvidas. A riqueza de Saunière parece ter sido adquirida subitamente: é apenas em 1891 que, de forma inusitada, começam os seus projectos ambiciosos e excentricidades e isto não se compadece muito com a explicação da venda das missas. As perplexidades prosseguem se nos questionarmos sobre como é que Saunière teria conseguido granjear um tão grande número de encomendas. Motta fala em anúncios publicados nos jornais, mas essa parece ser uma estratégia demasiado arriscada e que colocaria a trapaça à vista de toda a gente, mesmo contando com a protecção do bispo de Carcassonne, Félix-Arsène Billard. Finalmente, a alegada «indústria de missas» não explica a irregularidade dos ganhos de Saunière, que atravessou períodos financeiramente difíceis logo seguidos de gastos vultuosos. O mistério permanece, por isso, por resolver…
A imparcialidade de Dan Brown é corroborada não só por aquilo que escreve, mas também pelo seu silêncio, pois o romancista evitou cautelosamente muitas das teses mais controversas dos Autores que abordaram este mistério de Rennes-le-Château. A sua fonte de inspiração privilegiada, o best seller dos anos 80 O Sangue de Cristo e o Santo Graal, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, foi bem mais além em matéria de arrojo. Os três Autores, cuja simpatia pelas pretensões do Priorado do Sião é manifesta, esclarecem quais são as intenções do livro: «demonstrar que Jesus não morreu de facto crucificado, mas deu origem a uma linhagem que ainda hoje está entre nós. O seu objectivo não é desacreditar Jesus, mas pelo contrário dar-nos outra perspectiva, a seu ver mais completa, da sua figura como filho de Deus». Curiosamente, o moderno Priorado nunca confirmou nem desmentiu as conclusões de O Sangue de Cristo e o Santo Graal.
Ainda mais arrojadas são as investigações dos britânicos Lynn Picknett e Clive Prince, esses campeões das conclusões apressadas, cujo fascínio pelo Santo Sudário de Turim conduziu à investigação vertiginosa descrita em O Segredo dos Templários. Eis algumas das suas afirmações mais ousadas: Jesus não era o filho de Deus nem de religião judaica – embora, etnicamente, possa ter sido judeu – e seria provavelmente um adepto de magia egípcia; João Baptista não reconheceu Jesus como Messias, nomeou Simão, o Mago, como seu sucessor e viria posteriormente a ser assassinado, provavelmente a mando dos seguidores de Jesus; Maria Madalena era uma sacerdotisa companheira de Jesus num casamento sagrado e a natureza sexual da relação de ambos é atestada em muitos dos textos gnósticos, que a Igreja impediu que fossem incluídos no Novo Testamento.
Claro que tudo isto é especulativo e os Autores são suficientemente lúcidos para o acentuarem no seu livro, mas parecem dar uma no cravo e outra na ferradura quando falam dos «frutos amargos» que cresceram à sombra das ideias falsas a respeito das origens do cristianismo. Por exemplo, ao voltar as costas às suas raízes egípcias, a Igreja perdeu a compreensão fundamental do arquétipo da igualdade dos sexos, porque Ísis era sempre contrabalançada pelo seu consorte Osíris e vice-versa – um conceito que encorajava o respeito igualmente devido a homens e mulheres. Além disso, ao negar os seus antecedentes egípcios, a Igreja rejeitou também, e com especial violência, todo o conceito de sexo como sacramento, com consequências terríveis para a nossa cultura: repressão em grande escala e inumeráveis crimes contra as mulheres e crianças. Mais ainda: a crença de que o judaísmo e o cristianismo eram rivais conduziu a atrocidades regulares contra os judeus, sob a dupla acusação de responsabilidade pela morte de Jesus e recusa do seu messianismo. Também os pagãos foram vítimas preferenciais da hostilidade da Igreja, mas se Jesus fosse realmente pagão, então este fervor cristão seria não só uma nova negação da humanidade comum mas também dos princípios do seu fundador.
Para nós, portugueses, cristãos, católicos e cheios de medo do pecado, estas conclusões parecem inverosímeis e até fantasiosas, mas não será que a mesma coisa se poderia dizer das nossas crenças religiosas de sempre? O que a nossa Bíblia ensina é que Jesus foi o Filho de Deus e de uma Virgem, que encarnou como judeu, que João Baptista era o seu precursor e subordinado espiritual e que Maria Madalena foi uma mulher de reputação duvidosa que Jesus curou e converteu. Mas todo o estudo bíblico implica especulação e os Evangelhos são documentos vagos, ambíguos e muitas vezes contraditórios. No decurso dos últimos dois mil anos, as pessoas discutiram e até travaram guerras sobre o significado de determinadas passagens em particular. A própria existência histórica de Jesus já tem sido várias vezes posta em causa por escritores e investigadores.
O Concílio Vaticano II, na constituição Dei Verbum, responde a estas dúvidas com a defesa intransigente dos seus Evangelhos: «A santa mãe Igreja defendeu e defende firme e constantemente que estes quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus, durante a sua vida terrena, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, até ao dia em que subiu ao céu (cf. Act. 1,1-2)».
O Novo Testamento deixa, todavia, por explicar a revelação (ou suposição) mais surpreendente e sumarenta do Código Da Vinci: o casamento de Jesus e Maria Madalena, do qual teria resultado uma filha. Quanto à misteriosa Madalena, a sua imagem de prostituta arrependida é falsa e não tem nada a ver com a sua história narrada nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João: a efabulação surgiu em 591 d.C., quando o papa Gregório, o Grande, proferiu um sermão na Páscoa em que declarou que a prostituta de Lucas 7 era a Maria Madalena de Lucas 8; porém, e porque não há razão alguma para fazer tal associação, o Vaticano corrigiu em 1969 essa deturpação. O seu papel na história de Jesus e dos discípulos poderá, na realidade, ser bem mais relevante do que tradicionalmente se julga. Como salienta Esther A. De Boer em Maria Madalena: uma sacerdotisa deusa?, incluído no livro Verdade ou Ficção?, Madalena foi a «única testemunha das três circunstâncias que, segundo São Paulo, constituem os fundamentos da fé cristã (1Cor15,3-4): a crucifixão, a sepultura e a ressurreição de Jesus». Os Evangelhos Gnósticos vão ainda mais longe e contam que Jesus concedeu a Madalena o título de Apóstola dos Apóstolos e de Mulher Que Conhece Tudo e afirmou que ela se ergueria acima de todos os outros discípulos e governaria o Reino da Luz, que estava prestes a chegar. Quanto ao casamento de Jesus e Madalena, Brown refere, por mais de uma vez, que ele «é um facto historicamente registado», o que é uma falsidade completa. Não há senão indícios desse casamento: os jovens judeus da época já deveriam estar casados quando completassem vinte anos de idade, era normal que todos os mestres tivessem uma esposa e as bodas de Caná poderão ser um encobrimento do casamento de Jesus.
O que é indiscutível é que a Igreja falhou em não dar à mulher o seu lugar de direito no ministério cristão. Isto sucede ao arrepio do que praticava a Igreja primitiva, pois os discípulos de Jesus também incluíam mulheres e Marcos refere pelo menos quatro delas: Maria Madalena, Maria, a mãe de Tiago, Maria, a mãe de José, e Salomé. Brown aponta o Concílio de Niceia em 325 d.C. como o grande momento de afastamento do Feminino e o critério da conformidade com a regra de fé, que fundamentou a exclusão dos Evangelhos Gnósticos, parece comprovar essa intenção de autodefesa do patriarcado. Os críticos contrapõem que não há provas de que os Evangelhos Gnósticos tenham sido discutidos e excluídos em Niceia, que apenas ratificou o que a Igreja já praticava até então. Contudo, uma descoberta muito importante foi feita em 1958 pelo Dr. Morton Smith na biblioteca de Mar Saba: uma carta de Clemente de Alexandria, sacerdote da igreja do século II, que continha fragmentos do chamado Evangelho Secreto de Marcos. Esta versão era muito semelhante à canónica, mas continha os ensinamentos esotéricos de Jesus, que não se destinavam a serem revelados aos cristãos comuns e foram por isso rasurados. Esta descoberta revela muito sobre os anos de formação da Igreja Católica e os métodos utilizados pelos padres da Igreja para instituírem o dogma cristão, pois ficou demonstrado que os textos eram editados e que mesmo obras reconhecidas como tendo valor igual aos Evangelhos canónicos eram negadas aos crentes comuns.
Como explicar o actual desprestígio do catolicismo e este interesse revigorado por Madalena, pelo gnosticismo e pelas questões do espírito? O teólogo Erwin Lutzer, no seu livro A fraude do Código Da Vinci, sugere uma análise interessante: «Hoje em dia, é notório que as pessoas procuram conectar-se ao mundo metafísico. Caminhe por uma livraria e verá muitas prateleiras dedicadas à busca espiritual. Temos livros e programas de televisão que falam sobre cura e espiritualidade, autoconhecimento e espiritualidade, e, lógico, sexo e espiritualidade. Existem muitos caminhos, e todos são convidados a escolher um caminho próprio para a realização pessoal. Milhões de pessoas que jamais ouviram falar da palavra gnosticismo são seguidoras das suas doutrinas básicas». Lutzer esqueceu-se, todavia, de referir um ponto importante: a proverbial intolerância da Igreja Católica relativamente à concorrência religiosa, que tanto contribui para o seu descrédito e que esteve na origem de alguns dos episódios sombrios da nossa História.
Um sintoma desta propensão totalitária da Igreja para o exclusivismo é a crença corrente entre muitos cristãos de que a sua fé não foi influenciada por qualquer outra filosofia ou religião. Novamente, Lutzer: «a fé cristã tem as suas raízes firmadas em factos históricos, não em mitologia. A igreja primitiva opunha-se ao paganismo de forma resoluta e fez todo o possível para garantir que a Igreja não adoptasse os seus mitos e práticas […] Embora muitas pessoas acreditem que todas as religiões do mundo são essencialmente a mesma coisa, existindo apenas diferenças superficiais, veremos que a verdade é justamente o oposto: o cristianismo é essencialmente distinto, sendo apenas superficialmente semelhante a outras religiões e filosofias. É na verdade algo bastante original».
Este entendimento parece ser discutível se considerarmos o lugar de onde Jesus iniciou a sua missão: a Galileia. A ideia corrente é que a Galileia pertencia à Palestina, a religião corrente da Palestina era o judaísmo e por isso todos os galileus deviam ter sido judeus, mas nada poderia estar mais errado. A Galileia da época era uma zona rica e fértil, com vastas associações comerciais com as outras culturas do mundo helenístico e que se encontrava no centro de uma rede de rotas comerciais que conduziam à Síria, Babilónia e Egipto. Era a pátria de gentes de muitas proveniências e as principais influências religiosas eram nativas, palestinianas, pagano-semitas, gregas, persas, fenícias e egípcias. Alguns elementos foram indiscutivelmente importados do paganismo, como a escolha do dia 25 de Dezembro para festejar o nascimento de Jesus. Já o reconhecimento da integração de outros aspectos pagãos parece ser mais controverso: afirma-se que Cristo nasceu num estábulo, à semelhança de Hórus; como Dionísio, transformou a água em vinho; como Esculápio, ressuscitou homens e deu vista aos cegos; como Átis e Adónis, foi chorado e festejado por mulheres; e como Mitra, ressuscitou de um túmulo na rocha.
O mundo já conhece bem o enredo sinuoso deste Código Da Vinci. O curador Jacques Saunière é assassinado em plena Grande Galeria do Louvre, mas a bala alojada na barriga não o impede de deixar algumas mensagens codificadas. O simbologista Robert Langdon e a criptóloga Sophie Neveu, neta de Saunière, são chamados ao local do crime, mas logo passam de investigadores a principais suspeitos. Porém, o verdadeiro homicida é Silas, um monge ao serviço do bispo Aringarosa da Opus Dei, que consegue escapar incógnito. Na posse das pistas que Saunière deixou com as pinturas de Da Vinci, Sophie e Langdon fogem do museu. O que se segue é uma frenética peregrinação pelos lugares mais misteriosos de França, Inglaterra, Escócia e novamente a França, em busca da linhagem sagrada e secreta de Jesus Cristo e Maria Madalena.
O que dizer destas duas obras, igualmente fascinantes mas inconciliáveis nas conclusões em que aportam? A tentação imediata é afirmar que as críticas de Motta são um pouco injustas, porque este é apenas um produto de entretenimento e que a Dan Brown, como a todos os Autores de ficção, tudo deve ser permitido. Isto é rigorosamente verdadeiro, mas não nos diz grande coisa. Aquilo que realmente nos interessa é distinguir, de entre o vastíssimo manancial de factos referidos neste livro, o joio ficcional do trigo comprovadamente histórico e verdadeiro e, já agora, esclarecer quais serão as verdadeiras intenções do criador de O Código Da Vinci.
Existe, porém, um elemento perturbador, que Motta refere com toda a argúcia, pois Dan Brown precedeu o corpus do seu romance de indicações preambulares que asseguram a autenticidade de algumas figuras do seu romance: o Priorado do Sião, a Opus Dei e as obras de arte mencionadas no livro. A controvérsia está, concretamente, em saber se isto representa uma discreta adesão de Brown ao controverso Priorado e à sua oposição ao Vaticano. Se considerarmos que a existência histórica do Priorado é indesmentível (aliás, existem doações régias que a comprovam), veremos que, afinal de contas, o Autor não merece qualquer crítica e foi suficientemente prudente nas suas afirmações: designadamente, porque não se pronuncia sobre qual o objecto e real influência do Priorado do Sião fundado em 1099 (e em particular, se esteve ou não na origem dos Templários), a ligação entre esta organização e a registada com o mesmo nome em 1956 ou a seriedade dos propósitos do actual Priorado.
A crítica que se segue é a da pretensa aversão do romance ao catolicismo. Numa das passagens mais controversas do livro, Brown escreve: «Durante trezentos anos de caça às bruxas, a Igreja queimara nas fogueiras uns estarrecedores cinco milhões de mulheres. A propaganda e a orgia de sangue tinham resultado. O mundo actual era uma prova viva disso mesmo. As mulheres, outrora celebradas como a metade essencial da iluminação espiritual, tinham sido banidas dos templos de todo o mundo». A verdade, porém, é que O Código Da Vinci não ataca nenhum credo religioso, muito menos o catolicismo. Alguns críticos aproveitaram algumas afirmações do vilão Leigh Teabing, completamente desgarradas e retiradas do seu contexto, e pretenderam ver nelas a afirmação das convicções do próprio Brown, o que é um absurdo completo e intelectualmente desonesto. Se quisermos descortinar as verdadeiras convicções do Autor, deveremos antes atender às palavras do protagonista Robert Langdon, o seu herói e alter-ego, que, por mais de uma vez, se refere aos actuais dirigentes católicos como homens piedosos e íntegros.
Outros críticos, mais moderados, desvalorizam o romance mas denunciam o ataque ao catolicismo que transparece nas entrevistas de Brown. Bernardo Motta, por exemplo, fala das suas propostas revolucionárias para a reforma do cristianismo. Mais uma vez, é um exagero. As entrevistas de Dan Brown são claras, lúcidas e estão acessíveis a todos no seu sítio na Internet.
Será que Brown, não sendo um opositor do catolicismo, é todavia um crítico da Opus Dei? Parecem apontar nesse sentido as suas referências ao cilício, à mortificação corporal (uma «constante recordação dos sofrimentos de Cristo») e à polémica sede bilionária erguida no número 243 da Lexington Avenue, em Nova Iorque. O mesmo se diga das suas personagens, ficcionais mas sinistras, do bispo Aringarosa e do monge albino que vai acumulando cadáveres à sua passagem: antes de ser executada por esse Silas, a corajosa irmã Sandrine Bieil diz-lhe «Jesus tinha apenas uma mensagem verdadeira e não vejo essa mensagem na Opus Dei». Também provocou grande controvérsia a canonização supersónica do seu fundador Josemaría Escrivá, falecido em 1975: a 17 de Maio de 1992, foi beatificado por João Paulo II e proclamado santo dez anos depois, a 6 de Outubro de 2002. Mais uma vez, não há nenhum ataque oculto de Brown, pois não só Aringarosa é na realidade um homem que age manipulado e em desespero, como a sua Opus Dei e a Igreja Católica são, no final, absolvidas de qualquer culpa. O verdadeiro responsável é Teabing, que «explorara o Vaticano e a Opus Dei, duas entidades que acabaram por revelar-se completamente inocentes» (sic).
A opinião de Langdon (aliás, Brown) relativamente ao Priorado do Sião também confirma a objectividade do Autor de O Código Da Vinci: «não tomo qualquer posição relativamente às acções do Priorado». Esta organização, por vezes conhecida como Ordem do Sião ou Ordem da Nossa Senhora do Sião, é uma sociedade secreta fundada em 1099 durante a Primeira Cruzada. Dan Brown fala de uma tripla tarefa do Priorado: proteger os documentos Sangreal, proteger o túmulo de Maria Madalena e manter a linhagem de Cristo, que subsiste através dos poucos descendentes Merovíngios que chegaram aos nossos dias e são os pretendentes legítimos do trono francês. Será este o grande segredo ciosamente conservado ao longo dos séculos pelos membros do Priorado e que poderia abalar os alicerces tanto do Estado como da Igreja? Mesmo admitindo que sim, existem à partida dificuldades de monta à prossecução dos objectivos políticos: não só pelo problema de transformar a França republicana na monarquia que foi rejeitada há mais de um século, mas também, e mesmo supondo que a dinastia Merovíngia pudesse ser provada, porque essa mesma dinastia não teria qualquer direito ao trono, já que a nação francesa não existia durante a era dos Merovíngios.
Para os cépticos, o Priorado existe apenas desde os anos 50 e é formado por um grupo de monárquicos sem poder efectivo e com a mania das grandezas. As dúvidas começam com a fonte primacial de informação a respeito desta organização, que consiste nos chamados Dossiers secrets: sete documentos depositados na Biblioteca Nacional de Paris entre 1964 e 1967, que contêm sobretudo registos concernentes ao mistério de Rennes-le-Château e à suposta obsessão Merovíngia da sociedade, cujos membros são descritos como «os apoiantes de todas as heresias […] passando pelos cátaros e os templários até à maçonaria» ou «agitadores secretos contra a Igreja». O mistério ainda mais se adensa quando olhamos para aquele que foi, até recentemente, o rosto visível do actual Priorado: Pierre Plantard (1920-2000). A sua biografia é tortuosa e tanto regista períodos de grandes dificuldades financeiras, como uma acção decisiva no curso da História europeia. Foi Plantard que, sob o pseudónimo de Capitão Way, esteve por detrás da organização dos Comités de Salvação Pública que promoveram o regresso ao poder em 1958 do General Charles De Gaulle – o qual viria depois a agradecer essa colaboração numa carta datada de 29 de Julho de 1958. Plantard, que nunca alegou ser descendente de Jesus, confessou em 1993 que tinha inventado o Priorado do Sião. Hoje, a organização está a cargo de Gino Sandri, que Motta descreve como «um pateta».
Muito antes de Plantard e Sandri, este Priorado teria contado com um Grão-Mestre particularmente ilustre: o grande Leonardo Da Vinci, cujo extraordinário fresco A Última Ceia ocupa um lugar central na trama do romance de Dan Brown. Porque Da Vinci não era um cristão e porque incluiu mensagens secretas nas suas obras, muitos têm tentado dar um sentido às aparentes anomalias desta sua pintura: a inexistência de um cálice ou uma taça de vinho, o que é estranho se considerarmos que este é o momento em que Jesus inicia o sacramento do pão e do vinho; a exiguidade de pão (que Jesus identificou com o seu próprio corpo) partido, que poderá ocultar alguma mensagem subtil sobre a verdadeira natureza do sofrimento de Cristo; a figura de João Baptista é na realidade a de uma mulher, cujos trajes reflectem o de Jesus, pois enquanto que um veste uma túnica azul e um manto vermelho, o outro veste uma túnica vermelha e um manto azul, de estilo idêntico; a forma de um M aberto que Jesus e esta mulher constituem em conjunto; ambos são ameaçados por um dedo em riste, embora pareçam alheios a essas ameaças e perdidos no mundo dos seus pensamentos; Judas, que se admite ter por modelo o próprio Leonardo, inclina-se e vira completamente as costas ao Redentor; e, finalmente, a célebre mão sem corpo que segura uma adaga. Muitas destas anomalias são, porém, facilmente explicáveis, se considerarmos que Leonardo representou a última ceia segundo São João: por isso, sem Eucaristia (daí que não exista cálice) e com o «discípulo amado». Curiosamente, Brown e os Autores em seu redor parecem ter menosprezado os escritos de Leonardo, que são um autêntico viveiro de mensagens codificadas e ocultistas.
A aldeia de Rennes-le-Château, que empresta o seu nome ao sítio de Motta, ocupa um lugar primacial neste drama (ou farsa…) do Priorado do Sião. Segundo a lenda, o padre François-Bérenger Saunière (1852-1917) fez uma descoberta extraordinária durante as obras de renovação da sua delapidada igreja paroquial do século X, que lhe permitiu enriquecer imensamente e financiar alguns investimentos estranhos. Diz-se que entre 1896 e a sua morte em 1917 terá gasto 23 milhões de francos; que tinha também contas bancárias em Paris, Perpignan, Toulouse e Budapeste e investiu fortemente em acções e títulos do Estado; que recebia faustosamente na sua Villa Béthanie os ricos e famosos, como a diva Emma Calvé, políticos e membros de famílias imperiais; e que na altura da sua morte, estava empenhado em novos e ambiciosos projectos que custariam no mínimo 8 milhões de francos, como uma estrada de acesso à aldeia ou uma torre com 70 metros de altura da qual pretendia chamar os fiéis à oração. A especulação tem variado, ao longo dos anos, quanto à verdadeira natureza da descoberta de Saunière: um segredo alquímico, a Arca da Aliança, o tesouro do templo de Jerusalém, o Santo Graal ou o próprio túmulo de Jesus. O Priorado afirma que Saunière descobriu pergaminhos contendo informação genealógica que prova a sobrevivência da dinastia merovíngia e que certos indivíduos têm direito a reclamar o trono de França, como Pierre Plantard. Contudo, ninguém à margem do Priorado viu esses pergaminhos e tudo o que conhecemos são cópias que, no dizer de Bernardo Motta, foram forjadas: aliás, Philippe Chérisey, associado de Plantard, admitiu ter sido o autor da falsificação.
Qual seria então a origem da fortuna de Saunière? Crê-se que o padre estava a ser pago do exterior por serviços que implicavam a sua estada em Rennes-le-Château e tudo indica que esse financiador fosse o próprio Priorado do Sião. O interesse da organização na localidade era antigo: para além do que consta dos Dossiers secrets, Plantard possuía terrenos na proximidade da aldeia e ali comprou um talhão do cemitério. Seja como for, o comportamento esquivo do padre demonstra que ele buscava alguma coisa que era suficientemente importante para justificar um grande secretismo: os demorados passeios pelas imediações, as viagens prolongadas e mais ou menos furtivas a locais afastados e as misteriosas escavações no cemitério local. Apesar do desagrado da população, Saunière começou a escavar no cemitério à noite e apagou as inscrições da pedra vertical e da placa que cobria a sepultura de Marie de Nègre d’Ables, uma mulher nobre da região falecida a 17 de Janeiro de 1781, presumivelmente para destruir a informação que ela continha.
Motta entende que não existe mistério nenhum em Rennes-le-Château e que Saunière ganhou o dinheiro apenas com o tráfico de missas. Esta é, todavia, uma explicação que suscita muitas dúvidas. A riqueza de Saunière parece ter sido adquirida subitamente: é apenas em 1891 que, de forma inusitada, começam os seus projectos ambiciosos e excentricidades e isto não se compadece muito com a explicação da venda das missas. As perplexidades prosseguem se nos questionarmos sobre como é que Saunière teria conseguido granjear um tão grande número de encomendas. Motta fala em anúncios publicados nos jornais, mas essa parece ser uma estratégia demasiado arriscada e que colocaria a trapaça à vista de toda a gente, mesmo contando com a protecção do bispo de Carcassonne, Félix-Arsène Billard. Finalmente, a alegada «indústria de missas» não explica a irregularidade dos ganhos de Saunière, que atravessou períodos financeiramente difíceis logo seguidos de gastos vultuosos. O mistério permanece, por isso, por resolver…
A imparcialidade de Dan Brown é corroborada não só por aquilo que escreve, mas também pelo seu silêncio, pois o romancista evitou cautelosamente muitas das teses mais controversas dos Autores que abordaram este mistério de Rennes-le-Château. A sua fonte de inspiração privilegiada, o best seller dos anos 80 O Sangue de Cristo e o Santo Graal, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, foi bem mais além em matéria de arrojo. Os três Autores, cuja simpatia pelas pretensões do Priorado do Sião é manifesta, esclarecem quais são as intenções do livro: «demonstrar que Jesus não morreu de facto crucificado, mas deu origem a uma linhagem que ainda hoje está entre nós. O seu objectivo não é desacreditar Jesus, mas pelo contrário dar-nos outra perspectiva, a seu ver mais completa, da sua figura como filho de Deus». Curiosamente, o moderno Priorado nunca confirmou nem desmentiu as conclusões de O Sangue de Cristo e o Santo Graal.
Ainda mais arrojadas são as investigações dos britânicos Lynn Picknett e Clive Prince, esses campeões das conclusões apressadas, cujo fascínio pelo Santo Sudário de Turim conduziu à investigação vertiginosa descrita em O Segredo dos Templários. Eis algumas das suas afirmações mais ousadas: Jesus não era o filho de Deus nem de religião judaica – embora, etnicamente, possa ter sido judeu – e seria provavelmente um adepto de magia egípcia; João Baptista não reconheceu Jesus como Messias, nomeou Simão, o Mago, como seu sucessor e viria posteriormente a ser assassinado, provavelmente a mando dos seguidores de Jesus; Maria Madalena era uma sacerdotisa companheira de Jesus num casamento sagrado e a natureza sexual da relação de ambos é atestada em muitos dos textos gnósticos, que a Igreja impediu que fossem incluídos no Novo Testamento.
Claro que tudo isto é especulativo e os Autores são suficientemente lúcidos para o acentuarem no seu livro, mas parecem dar uma no cravo e outra na ferradura quando falam dos «frutos amargos» que cresceram à sombra das ideias falsas a respeito das origens do cristianismo. Por exemplo, ao voltar as costas às suas raízes egípcias, a Igreja perdeu a compreensão fundamental do arquétipo da igualdade dos sexos, porque Ísis era sempre contrabalançada pelo seu consorte Osíris e vice-versa – um conceito que encorajava o respeito igualmente devido a homens e mulheres. Além disso, ao negar os seus antecedentes egípcios, a Igreja rejeitou também, e com especial violência, todo o conceito de sexo como sacramento, com consequências terríveis para a nossa cultura: repressão em grande escala e inumeráveis crimes contra as mulheres e crianças. Mais ainda: a crença de que o judaísmo e o cristianismo eram rivais conduziu a atrocidades regulares contra os judeus, sob a dupla acusação de responsabilidade pela morte de Jesus e recusa do seu messianismo. Também os pagãos foram vítimas preferenciais da hostilidade da Igreja, mas se Jesus fosse realmente pagão, então este fervor cristão seria não só uma nova negação da humanidade comum mas também dos princípios do seu fundador.
Para nós, portugueses, cristãos, católicos e cheios de medo do pecado, estas conclusões parecem inverosímeis e até fantasiosas, mas não será que a mesma coisa se poderia dizer das nossas crenças religiosas de sempre? O que a nossa Bíblia ensina é que Jesus foi o Filho de Deus e de uma Virgem, que encarnou como judeu, que João Baptista era o seu precursor e subordinado espiritual e que Maria Madalena foi uma mulher de reputação duvidosa que Jesus curou e converteu. Mas todo o estudo bíblico implica especulação e os Evangelhos são documentos vagos, ambíguos e muitas vezes contraditórios. No decurso dos últimos dois mil anos, as pessoas discutiram e até travaram guerras sobre o significado de determinadas passagens em particular. A própria existência histórica de Jesus já tem sido várias vezes posta em causa por escritores e investigadores.
O Concílio Vaticano II, na constituição Dei Verbum, responde a estas dúvidas com a defesa intransigente dos seus Evangelhos: «A santa mãe Igreja defendeu e defende firme e constantemente que estes quatro Evangelhos, cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus, durante a sua vida terrena, realmente operou e ensinou para salvação eterna dos homens, até ao dia em que subiu ao céu (cf. Act. 1,1-2)».
O Novo Testamento deixa, todavia, por explicar a revelação (ou suposição) mais surpreendente e sumarenta do Código Da Vinci: o casamento de Jesus e Maria Madalena, do qual teria resultado uma filha. Quanto à misteriosa Madalena, a sua imagem de prostituta arrependida é falsa e não tem nada a ver com a sua história narrada nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João: a efabulação surgiu em 591 d.C., quando o papa Gregório, o Grande, proferiu um sermão na Páscoa em que declarou que a prostituta de Lucas 7 era a Maria Madalena de Lucas 8; porém, e porque não há razão alguma para fazer tal associação, o Vaticano corrigiu em 1969 essa deturpação. O seu papel na história de Jesus e dos discípulos poderá, na realidade, ser bem mais relevante do que tradicionalmente se julga. Como salienta Esther A. De Boer em Maria Madalena: uma sacerdotisa deusa?, incluído no livro Verdade ou Ficção?, Madalena foi a «única testemunha das três circunstâncias que, segundo São Paulo, constituem os fundamentos da fé cristã (1Cor15,3-4): a crucifixão, a sepultura e a ressurreição de Jesus». Os Evangelhos Gnósticos vão ainda mais longe e contam que Jesus concedeu a Madalena o título de Apóstola dos Apóstolos e de Mulher Que Conhece Tudo e afirmou que ela se ergueria acima de todos os outros discípulos e governaria o Reino da Luz, que estava prestes a chegar. Quanto ao casamento de Jesus e Madalena, Brown refere, por mais de uma vez, que ele «é um facto historicamente registado», o que é uma falsidade completa. Não há senão indícios desse casamento: os jovens judeus da época já deveriam estar casados quando completassem vinte anos de idade, era normal que todos os mestres tivessem uma esposa e as bodas de Caná poderão ser um encobrimento do casamento de Jesus.
O que é indiscutível é que a Igreja falhou em não dar à mulher o seu lugar de direito no ministério cristão. Isto sucede ao arrepio do que praticava a Igreja primitiva, pois os discípulos de Jesus também incluíam mulheres e Marcos refere pelo menos quatro delas: Maria Madalena, Maria, a mãe de Tiago, Maria, a mãe de José, e Salomé. Brown aponta o Concílio de Niceia em 325 d.C. como o grande momento de afastamento do Feminino e o critério da conformidade com a regra de fé, que fundamentou a exclusão dos Evangelhos Gnósticos, parece comprovar essa intenção de autodefesa do patriarcado. Os críticos contrapõem que não há provas de que os Evangelhos Gnósticos tenham sido discutidos e excluídos em Niceia, que apenas ratificou o que a Igreja já praticava até então. Contudo, uma descoberta muito importante foi feita em 1958 pelo Dr. Morton Smith na biblioteca de Mar Saba: uma carta de Clemente de Alexandria, sacerdote da igreja do século II, que continha fragmentos do chamado Evangelho Secreto de Marcos. Esta versão era muito semelhante à canónica, mas continha os ensinamentos esotéricos de Jesus, que não se destinavam a serem revelados aos cristãos comuns e foram por isso rasurados. Esta descoberta revela muito sobre os anos de formação da Igreja Católica e os métodos utilizados pelos padres da Igreja para instituírem o dogma cristão, pois ficou demonstrado que os textos eram editados e que mesmo obras reconhecidas como tendo valor igual aos Evangelhos canónicos eram negadas aos crentes comuns.
Como explicar o actual desprestígio do catolicismo e este interesse revigorado por Madalena, pelo gnosticismo e pelas questões do espírito? O teólogo Erwin Lutzer, no seu livro A fraude do Código Da Vinci, sugere uma análise interessante: «Hoje em dia, é notório que as pessoas procuram conectar-se ao mundo metafísico. Caminhe por uma livraria e verá muitas prateleiras dedicadas à busca espiritual. Temos livros e programas de televisão que falam sobre cura e espiritualidade, autoconhecimento e espiritualidade, e, lógico, sexo e espiritualidade. Existem muitos caminhos, e todos são convidados a escolher um caminho próprio para a realização pessoal. Milhões de pessoas que jamais ouviram falar da palavra gnosticismo são seguidoras das suas doutrinas básicas». Lutzer esqueceu-se, todavia, de referir um ponto importante: a proverbial intolerância da Igreja Católica relativamente à concorrência religiosa, que tanto contribui para o seu descrédito e que esteve na origem de alguns dos episódios sombrios da nossa História.
Um sintoma desta propensão totalitária da Igreja para o exclusivismo é a crença corrente entre muitos cristãos de que a sua fé não foi influenciada por qualquer outra filosofia ou religião. Novamente, Lutzer: «a fé cristã tem as suas raízes firmadas em factos históricos, não em mitologia. A igreja primitiva opunha-se ao paganismo de forma resoluta e fez todo o possível para garantir que a Igreja não adoptasse os seus mitos e práticas […] Embora muitas pessoas acreditem que todas as religiões do mundo são essencialmente a mesma coisa, existindo apenas diferenças superficiais, veremos que a verdade é justamente o oposto: o cristianismo é essencialmente distinto, sendo apenas superficialmente semelhante a outras religiões e filosofias. É na verdade algo bastante original».
Este entendimento parece ser discutível se considerarmos o lugar de onde Jesus iniciou a sua missão: a Galileia. A ideia corrente é que a Galileia pertencia à Palestina, a religião corrente da Palestina era o judaísmo e por isso todos os galileus deviam ter sido judeus, mas nada poderia estar mais errado. A Galileia da época era uma zona rica e fértil, com vastas associações comerciais com as outras culturas do mundo helenístico e que se encontrava no centro de uma rede de rotas comerciais que conduziam à Síria, Babilónia e Egipto. Era a pátria de gentes de muitas proveniências e as principais influências religiosas eram nativas, palestinianas, pagano-semitas, gregas, persas, fenícias e egípcias. Alguns elementos foram indiscutivelmente importados do paganismo, como a escolha do dia 25 de Dezembro para festejar o nascimento de Jesus. Já o reconhecimento da integração de outros aspectos pagãos parece ser mais controverso: afirma-se que Cristo nasceu num estábulo, à semelhança de Hórus; como Dionísio, transformou a água em vinho; como Esculápio, ressuscitou homens e deu vista aos cegos; como Átis e Adónis, foi chorado e festejado por mulheres; e como Mitra, ressuscitou de um túmulo na rocha.
2005-02-12
Um blogue mágico
O nosso Thomas Mann teria seguramente aprovado este magnífico blogue: A Montanha Mágica, do Luís.
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