2004-11-29

É preciso escrever mais

Para aqueles que, como eu, foram mordidos pelo bichinho da escrita, estes dois sítios são indispensáveis: o Escreva! e o Escrita Criativa.

Ivo Canelas e Gonçalo Waddington

Para mim, estudante de cinema alimentado a Cahiers e folhas da cinemateca, as grandes vedetas dos filmes foram sempre os realizadores e não os actores. Quem protagonizava verdadeiramente as obras cinematográficas e lhes dava alma era quem as dirigia, enquanto que os actores não passavam de intervenientes vaidosos, secundários e um pouco pervertidos ou, na tristemente célebre expressão de Hitchcock, eram «gado». Com os anos, a descoberta dos talentos fulgurantes de Klaus Kinski, Marlon Brando e Bette Davies fez mudar a minha opinião. Ainda para mais, pude recentemente produzir um pequeno filme chamado O Porteiro e trabalhar com um elenco excepcional que erradicou quaisquer sobras de preconceito que eu ainda guardasse. Todos os nossos actores e actrizes (todos, sem excepção!) foram excelentes e comprovaram uma velha teoria: a de que os grandes artistas são também seres humanos íntegros e generosos.

Dois desses actores que colaboraram connosco foram o Gonçalo Waddington e o Ivo Canelas e devemos a este dueto de gigantes o melhor momento de O Porteiro. Trata-se, obviamente, da cena 5, exterior, noite. Após uma troca de palavras azeda, a nossa querida Verinha Fontes entra no bar Dedalus e deixa sozinhos e sossegados os dois amigos. O tom de voz entre os rapazes suaviza-se então quase até ao sussurro, pois ambos querem trocar desabafos cúmplices e convém que ninguém ouça. De súbito, o nosso Ivo sai-se com um excelente «Tu andas com ela porquê?». O Ivo é rápido, mas o Gonçalo não lhe fica atrás. «Não sei, a minha mãe pergunta-me sempre a mesma coisa». Tudo isto é improvisado: a troca de palavras não consta em lado nenhum do guião e são os dois intérpretes que, num passe de mágica, a vão buscar ao reservatório inesgotável da sua criatividade.

A conversa prossegue e flui como um rio: as falas são claras, concisas e ditas (ou melhor, vividas) com toda a expressividade. Afinal, vai ou não haver casamento? Pelos vistos não vai, mas apenas porque o Ivo tem medo de abraçar um compromisso tão grande. Por isso, ele reage com todo aquele nervosismo (o gaguejar improvisado é mais um toque excelente!) quando é confrontado com os factos pelo amigo. Enfim, o que é preciso é calma, tudo se remedeia. Ao lermos o guião, o Gonçalo deveria agora simplesmente voltar ao bar e ir ter com a namorada, mas nem por isso acabam os improvisos. «Obrigado!», suspira ainda o Ivo com alguma ironia, enquanto o amigo prossegue com um passo gingão e as suas risadas jocosas em direcção ao bar. É como se os dois actores quisessem prolongar ao máximo o gozo evidente que sentem quando interpretam a cena na companhia um do outro. Tudo termina com aquele espantoso close up do rosto do Ivo Canelas, mais a Lisboa adormecida em segundo plano.

2004-11-22

É o fim do mundo!


A simpática Coelhinha Zazie deixou definitivamente de blogar após a extinção da Janela Indiscreta. É pena. Ainda para mais, o nosso Stephen King tenciona seguir-lhe o exemplo. Que será feito desta blogosfera?!

Para Além do Tejo

O público lisboeta tem andado a encher a alma com Para Além do Tejo, uma excelente peça do Teatro Meridional que é protagonizada por uma região inteira: o nosso querido Alentejo. O espectáculo, de poucas falas mas lindamente musicado por Fernando Mota, conta com as fabulosas actuações do Gonçalo Waddington (que também interpretou o Joel do nosso filme O Porteiro) e do Nuno Lopes, descalços e tudo. Apressem-se, porque esta maravilha está em exibição no Espaço Teatro da Garagem (Poço do Bispo, em Lisboa) só até 28 de Novembro. (Reservas: 218688550 / 217111562)

Lenny


«O que é obsceno? E o que é decente? Se eu tivesse que fazer uma escolha, eu preferia que o meu filho visse um filme pornográfico do que um filme normal, como o Rei dos Reis. Porquê? Porque o Rei dos Reis está cheio de mortes e eu não quero que o meu filho mate Cristo quando Ele voltar. Que é o que acontece em Rei dos Reis. Não há um único filme pornográfico em que alguém leve murros ou seja morto. Com sorte, vê-se alguém a ser amarrado ou a levar pancadinhas com um cinto, mas a maior parte das vezes aquilo que se vê durante hora e meia são abraços e beijinhos e suspiros... E depois, no fim do filme, quando aquele instrumento potencial de morte é revelado... a almofada! A almofada com a qual o gajo parece que vai sufocar a miúda, como num filme de terror! Mas ele agarra na almofada e coloca-a devagarinho debaixo do rabo da rapariga. E eles adormecem e ninguém se magoa ou morre. E é bonito. E assim acaba o filme.»

2004-11-17

Os degenerados

Esta semana, os ouvintes da Antena 2 puderam usufruir de uma hora inteira de grandes obras musicais censuradas pelo governo nazi no período compreendido entre 1933 e 1945: era a chamada música degenerada. O programa, chamado Acordar a Dois, foi exemplarmente conduzido pelo grande António Cartaxo e incluiu trechos de Korngold, Kurt Weil, Brecht e outros degenerados. Mais uma vez, Cartaxo não deixou os seus créditos de Erzähler por mãos alheias e presenteou os fãs com algumas histórias curiosas. Uma delas respeitou ao compositor Berthold Goldschmidt, autor de A Majestosa Capoeira, que acabaria por ser um dos pouquíssimos judeus que fugiram da Alemanha mediante o consentimento do próprio regime nazi. «Você foi à Rússia e quem vai à Rússia é comunista», afirmou-lhe em 1935 um oficial da Gestapo. O compositor negou, obviamente, a acusação. Para sua sorte, o inquiridor era, também ele, um apreciador de música e ambos trocaram comentários apaixonados sobre Schubert e Schumann. Comovido com a conversa, o oficial aconselhou-o então a sair imediatamente da Alemanha. No dia seguinte, Goldschmidt partiu para a Inglaterra, onde prosseguiu uma carreira brilhante e viveu até à linda idade de 97 anos.

2004-11-15

Aqui vou ser feliz!

Hoje, queria sugerir três excelentes blogues que farão a felicidade dos blogonautas cinéfilos: o Cinema Existencial, o Royale With Cheese e o belíssimo O Zombie Comeu O Meu Blogue.

Os sete filmes da minha vida

1. Metropolis
Prod.: Alemanha, 1927
Real.: Fritz Lang
Arg.: Fritz Lang e Thea von Harbou
Género: Ficção científica

2. O Padrinho I
Prod.: EUA, 1972
Real.: Francis Ford Coppola
Arg.: Mario Puzo e Francis Ford Coppola
Género: Drama



3. Oedipus Rex
Prod.: Itália, 1967
Real.: Pier Paolo Pasolini
Arg.: Luigi Scaccianoce (segundo o drama homónimo de Sófocles)
Género: Drama

4. O Homem da Câmara de Filmar
Prod.: URSS, 1929
Real.: Dziga Vertov
Arg.: Dziga Vertov
Género: Documentário

5. Les Diaboliques
Prod.: França, 1955
Real.: Henri-Georges Clouzot
Arg.: Henri-Georges Clouzot (segundo o romance Celle qui n'était plus, de Pierre Boileau e Thomas Narcejac)
Género: Thriller

6. A Laranja Mecânica
Prod.: Reino Unido, 1971
Real.: Stanley Kubrick
Arg.: Stanley Kubrick (segundo o romance homónimo de Anthony Burgess)
Género: Drama, ficção científica



7. Noite Escura
Prod.: Portugal, 2004
Real.: João Canijo
Arg.: João Canijo, Pierre Hodgson e Mayanna von Ledebur
Género: Drama

2004-11-12

Metropolis (iii)


Metropolis é não apenas uma síntese da obra de Fritz Lang, mas também de toda a Ufa e por arrastamento do cinema mudo alemão. O filme sumariou os vícios e virtudes da Ufa (e, coerentemente, diz-se que terá contribuído em grande medida para a sua queda) de uma forma que não pode ter sido mero fruto do acaso. Metropolis não foi apenas uma criação do génio de Lang; é também produto das políticas empresariais, técnicas de produção e estratégias de marketing que caracterizaram a maior produtora alemã de sempre.

O mais importante dos acontecimentos para a História do cinema alemão do pós-guerra teve lugar ainda durante o desenrolar do conflito mundial e consistiu na criação da empresa de produção Ufa (Universum Film Aktiengesellschaft) em 18 de Dezembro de 1917. Receando que a indústria cinematográfica alemã não estava fazendo a sua parte no sentido de conquistar os corações e mentes do povo alemão para o esforço de guerra, o comandante-em-chefe do Exército, Erich Ludendorff, reuniu banqueiros, empresários e representantes do Exército para formar uma grande produtora cinematográfica nacional. O poderio económico da Ufa era enorme e a empresa logrou expandir-se de uma forma voraz, quer vertical (comprando empresas distribuidoras e cinemas) quer horizontalmente (adquirindo o controlo das maiores produtoras, com a excepção assinalável da Decla de Erich Pommer, excluída até 1921).

Por entre o caos do após guerra, a Ufa fortaleceu-se continuamente. Apesar de se ter estruturado como uma organização militar, os banqueiros e industriais envolvidos estavam mais interessados no sucesso comercial, o que limitava qualquer simples agenda propagandística que Ludendorff pudesse ter em mente. Eram aqueles quem abriam os cordões à bolsa e no início dos anos 20, quando finalmente se fundiu com a Decla, a Ufa era na verdade um sucesso financeiro e poderia mesmo chegar a competir com o studio system de Hollywood no qual se havia modelado. Através do seu programa de fusões, uma série infindável de talentos foram convidados a ingressar nas suas fileiras: grandes vedetas como Asta Nielsen, Pola Negri e Emil Jannings, juntamente com realizadores como Lubitsch, Lang, Robert Wiene, F. W. Murnau e G. W. Pabst. Mas a Ufa não se limitava a copiar a organização de Hollywood: graças às vastas somas de dinheiro ao seu dispor, as suas estrelas puderam também começar a auferir salários equivalentes aos dos americanos, possibilitando, por algum tempo, a sua permanência na Alemanha.

O célebre Erich Pommer, produtor e director da Ufa, desempenhou um papel fundamental. Como dirigente da Decla, Pommer havia lançado as fundações do que ficaria conhecido como o expressionismo alemão, ao produzir Das Cabinet des Dr Caligari (1919); depois da fusão da Ufa com a Decla-Bioscop em 1921, Pommer assumiu o controlo da nova empresa antes de se tornar oficialmente o seu chefe de produção de 1923 a 1925. A missão de Pommer representava um duplo desafio. O seu primeiro objectivo consistia em produzir obras com potencial para exportação, uma vez que os filmes alemães posteriores a 1918 eram em boa medida um meio de restabelecer o prestígio da Alemanha, manchado com a guerra, através de títulos que granjeassem respeito no exterior. Ademais, em meados da década de 1920, os estúdios americanos tinham logrado penetrar nos mercados europeus através do aproveitamento dos seus recursos financeiros enormes, infraestruturas modernas, progressos tecnológicos, um star system populista e agressivas políticas expansionistas de distribuição. O público europeu delirava com as obras hollywoodescas da altura: filmes ligeiros, inconsequentes e divertidos, recheados de suspense, humor, aventura e o inevitável final feliz. Consequentemente, a indústria alemã via-se na contingência de produzir filmes maiores, melhores e ainda mais espectaculares.

Com vista a compensar esta concorrência interna e também a assegurar o sucesso no estrangeiro, Pommer adoptou um discurso fílmico alemão diverso, que já havia delineado nas suas produções Caligari e Genuine (1920), Destiny (1921) de Lang e Schloss Vogelöd (1921). Enquanto que os americanos abordavam temáticas predominantemente realistas, Pommer enveredou pela direcção oposta: o filme de arte estilizado. Aquilo que é geralmente referido como o discurso expressionista dos filmes alemães de meados da década de 1920, nunca representou pois um esteticismo ars gratia artis; Pommer antes encarava arte e apelo comercial como estando directamente relacionados na sua estratégia de produção. A sua convicção era a de que um filme artisticamente conseguido pode ser economicamente lucrativo; consequentemente, o objectivo da sua política de produção era desenvolver os mais elevados padrões artísticos de forma a obter ganhos comparáveis aos que outros conseguiam através da fabricação de sensações básicas para as massas. O leque de obras ia desde os exóticos filmes de aventuras como Die Spinnen (1919) de Fritz Lang, aos grandes dramas históricos como Madame Dubarry (1919) de Ernst Lubitsch (um dos primeiros filmes a fazer evidenciar o cinema alemão junto dos americanos). Na mesma altura, alguns argumentistas e realizadores preconizam um retorno ao realismo; esta experiência, foi teorizada por Carl Mayer sob a designação de Kammerspiel (literalmente, teatro de câmara) e incluiu filmes como Sylvester (1923) de Lupu Pick ou Der letzte Mann (1924) de Murnau. Finalmente, surgem os filmes expressionistas e até 1927 eram estes a grande bandeira do cinema alemão no estrangeiro (é todavia importante notar que não eram eles que dominavam o mercado interno).

O desenvolvimento desta filosofia de cinema simultaneamente artístico e comercial radicava na extraordinária habilidade de Pommer em descobrir e apoiar os realizadores mais adequados à concretização da sua visão. Oferecendo orçamentos massivos e prazos de produção quase ilimitados, Pommer possibilitou que realizadores como Wiene, Murnau, Lang, Dupont e von Gerlach desenvolvessem o seu estilo visual e introduzissem inovações estéticas e técnicas, uma política que se repercutiu no vasto leque e brilhantismo técnico das suas produções. O design marcante de Caligari, a composição pictórica de Die Nibelungen, os extraordinários cenários de Zur Chronik von Grieshuus (1925) de von Gerlach, a câmara móvel de Der letzte Mann (1924) de Murnau e os planos inovadores e ângulos expressivos de Varieté (1925) de Dupont nunca teriam sido possíveis sem o apoio financeiro, cumplicidade artística e paciência beneditina de Pommer.

Expressivamente, os próprios realizadores de Pommer estavam bem cientes que os filmes de arte que produziam eram uma reacção directa à ameaça representada pelo cinema de entretenimento americano, como Lang notava já em 1924:

«A Alemanha nunca teve e nunca terá acesso aos gigantescos recursos financeiros e humanos de que a indústria cinematográfica americana pode dispor. E esta é a nossa sorte. Precisamente porque é isto que nos obriga a responder a esta superioridade puramente material com a nossa superioridade espiritual [geistiges Übergewicht].»

Não obstante, Pommer era suficientemente profissional para reconhecer que nos anos 20, os padrões técnicos da indústria cinematográfica eram estabelecidos por Hollywood. Nesta medida, a ida de Pommer e Lang aos E.U.A. em 1924 tinha por intenção ser uma visita de estudo que daria a Lang a oportunidade de visitar os maiores estúdios norte-americanos e recolher impressões que poderia incorporar no seu próximo projecto fílmico. Nos estúdios da Universal, Warner Brothers e United Artists, Lang testemunhou em primeira mão os seus métodos de produção e recursos técnicos. Assistiu às filmagens de O Fantasma da Ópera da Universal e ficou impressionado com o gigantesco cenário no qual, conforme relatou mais tarde, a grande ópera de Paris havia sido reconstruída; em The Lost World, pôde estudar o uso inovador dos efeitos stop motion por Willis O'Brien. O que lhe desagradou, todavia, foi a temática dos argumentos da maioria dos filmes americanos, que na sua opinião eram caracterizados pela monotonia dos enredos e ignorância dos processos históricos.

É certo que no início da década de 1920, a Alemanha podia competir com os Estados Unidos da América e era particularmente influente na Europa. Mas isto não significa que Hollywood não representasse também uma potência importante. Primeiro, o sistema de Hollywood era o modelo que a Ufa até certa medida imitava, culminando com a visita de Pommer e Lang aos Estados Unidos para aprenderem com os mestres e estabelecerem contactos. À medida que a década avançava, tornava-se todavia progressivamente mais difícil para Weimar competir com os Estados Unidos. Cada vez mais estrelas eram atraídas para Hollywood à medida que as condições de trabalho na América começavam a superar as existentes na Alemanha. Ademais, uma percentagem crescente da indústria alemã era financiada pelas grandes companhias norte-americanas. A situação precipitou-se em meados dos anos 20 pois a Ufa quase chegou à bancarrota devido em parte aos custos de produção de Metropolis. Com a economia estabilizada, as dívidas contraídas tinham de ser pagas com dinheiro vivo que a Ufa não tinha. A Paramount interveio e a empresa foi salva. Mas o destino estava traçado para a produtora alemã, que entrou em lento declínio até ser finalmente tomada pelos nazis em 1933, ganhando então notoriedade com filmes de propaganda política, como Kolberg (1945) de Veit Harlan. A empresa viria a ser desmantelada em 1945, refundada na década de 1950 e posteriormente controlada por Bertelsmann.

Metropolis (ii)


A existência de Metropolis foi, desde o início, muito conturbada. Já desde a década de 1920, o filme foi sendo sujeito a sucessivas truncagens e adaptações e só por muito pouco é que não foi completamente destruído. Longe de assegurar uma maior potencialidade comercial, como era seu propósito, os cortes efectuados vieram apenas destruir a coesão narrativa no filme e aumentar a confusão. Actualmente, já não restam cópias do original estreado em 1927. A recuperação de Metropolis tem por isso constituído uma espécie de Santo Graal de arquivistas e restauradores em todo o mundo.

As metamorfoses do filme de Lang ao longo dos tempos foram tão radicais, que melhor seria falarmos de Metropolis como não um, mas vários filmes de diferentes autores. Com efeito, a que obra nos referimos quando falamos de Metropolis? O original filmado por Fritz Lang em Berlim no ano de 1926 e só aí exibido no início de 1927? A versão americana encurtada, remontada e com novos títulos, da responsabilidade de Channing Pollock? A segunda versão alemã, à imagem do modelo americano, que podia ser vista na Alemanha em finais de 1927? Esta mesma versão, novamente encurtada e com diferentes inter-títulos ingleses, que o Museu de Arte Moderna em Nova Iorque tornou acessível aos cinéfilos de muitos países desde antes da Segunda Grande Guerra? A versão sonora alemã dos anos 60, que remonta à anterior? A tentativa de reconstrução feita nesta altura pelo Museu do Cinema da então República Democrática Alemã? A interpretação pós-moderna de Giorgio Moroder colorida e musicada de 1984? A versão de Munique disponível em vídeo? O videoclip de Madonna Express Yourself?

A história das mutações de Metropolis remonta a Dezembro de 1925, quando produtores americanos mostravam grande interesse na Ufa: isto porque os problemas financeiros desta empresa ofereciam uma excelente oportunidade de enfraquecer o grande rival. Representantes da MGM e Paramount deslocaram-se a Berlim e negociaram um acordo no qual a Ufa obtinha um empréstimo de 4 milhões de dólares. Em contrapartida, a Ufa reservava uma quota de 75% do seu cinema para produções americanas e era obrigada a distribuir vinte filmes de cada contraparte por ano, para o que foi fundada a distribuidora Parufamet. Acresce que a Universal garantia à Ufa um empréstimo de 275 mil dólares, para o que a empresa tinha de aceitar cinquenta filmes da Universal por ano. Apesar de a Ufa ver reconhecido o acesso ao mercado americano como moeda de troca, não havia dúvida que estes contratos da Parufamet e Universal representavam a rendição incondicional da Ufa aos seus competidores americanos.

Ora, quando Metropolis foi distribuído em 1927, o contrato Parufamet assegurava que a Paramount e a MGM teriam um controlo considerável sobre a versão que seria exibida nos ecrãs americanos. Porque Pommer havia abandonado a Ufa no início de 1927 por entre acusações de negligência financeira, não havia nenhum dirigente criativo que impedisse a adulteração da produção. Os distribuidores americanos tinham portanto plena liberdade para «adaptar» o filme de forma a torná-lo mais apetecível ao gosto do seu público. A Parufamet comissionou o escritor Channing Pollock (juntamente com a sua equipa Julian Johnson e Edward Adams) para remodelar o filme, e o distribuidor não fez segredo das revisões. Também as alterações de Pollock suscitaram reacções ambíguas. A 13 de Março de 1927, o New York Times publicava mesmo um artigo descrevendo os grandes cortes efectuados de forma a tornar o filme mais apelativo; estas «revisões» foram mesmo «tidas como necessárias» e os produtores alemães acusados de revelarem uma «falta de interesse na verosimilhança dramática ou uma inacreditável ineptitude». Enquanto que a Variety de 16 de Março de 1927 elogiava os novos títulos de Pollock como tendo «uma dignidade de linguagem que em muito contribui para a espectacularidade do conjunto», outros comentadores viram as alterações como uma grande desvantagem, uma vez que os títulos eram vistos apenas como razoáveis e para o fim bastante estúpidos pelo seu reiterado sentimentalismo.

As mudanças de Pollock resultaram numa diminuição das 17 bobinas originais para apenas 10, reduzindo a sua dimensão original de 4.189 metros para apenas 2.841 metros, o que corresponde a 107 minutos de tempo de exibição. Ao americano é devida a remoção de todas as cenas do Clube Yoshiwara, onde o robot surge como uma vamp sedutora; quem sabe, talvez por julgar que as festas regadas a álcool aí celebradas não se compadeciam com o espírito dos tempos do proibicionismo americano. Foram também cortadas as cenas no Estádio Olímpico. Os cortes inflingidos eram tão consideráveis, que foi mesmo necessário criar novos inter-títulos, prontamente fornecidos por Pollock, do que resultaram mudanças a nível do enredo: não só um abafamento das questões sociais abordadas no filme, como também a mudança dos nomes das personagens e com isso a perda do seu simbolismo religioso (Joh / Jeová, Freder / pai e irmão, Maria / mãe e santa).

As alterações mais decisivas verificaram-se a respeito de um episódio fundamental do romance e filme original: a relação entre Rotwang, o inventor, e Fredersen, o líder da cidade. Na versão americana, Rotwang é uma caricatura do típico cientista louco com um ódio inexplicável por Fredersen e uma natureza intrinsecamente maligna e viciosa, uma caracterização que esbarra com a interpretação de Klein-Rogge, que frequentemente sugere uma alma atormentada, indecisa e remoída pelo desgosto. As formas femininas do robot não se justificam por nenhuma razão especial e Fredersen pede-lhe que tenha o rosto de Maria devido à iminente revolta dos operários. No romance e filme original, o líder da Cidade pretende incitar os trabalhadores à revolta (apesar de as suas verdadeiras motivações para tanto permanecerem ainda hoje mais ou menos inexplicadas); na versão americana revista, esta Maria artificial é utilizada para semear a discórdia entre os operários, mas por qualquer razão ignota, vira-se contra os seus criadores e prega a destruição, tornando por isso as suas acções perfeitamente arbitrárias. Na versão original, um dos planos cortados mostrava um belo busto feminino com o nome Hel, que em inglês se confunde com Hell (inferno); donde, a remoção da cena para evitar ambiguidades.

Estas modificações perturbaram gravemente a fluidez da narrativa. A misteriosa Hel desempenhava um papel fulcral: ela era a falecida mulher de Fredersen e mãe de Freder e havia tido uma relação amorosa com Rotwang; Fredersen fê-la abandoná-lo e tiveram um filho juntos, Freder. Contudo, Hel acabaria por falecer durante o parto. Rotwang sentiu-se traído e alimentou um ódio por Fredersen que resvalava para a insanidade; tornou-se igualmente obcecado em recriar Hel para si, ainda que apenas como uma escultura mantida no seu laboratório ou como um ser humano artificial - o robot que havia concebido. Na rebelião incitada pelo robot a sua vingança parece estar consumada: recriou Hel, que destrói a cidade de Fredersen; mas também tem pleno controlo sobre a mulher que julga tê-lo traído. Finalmente, ao dotar o robot do aspecto de Maria, ele poderá exercer a sua vingança não apenas sobre Fredersen mas também sobre o filho nascido de Hel e outro homem. A obra ganha assim novos contornos de uma história de ódio, crime e vingança, um tema central em toda a filmografia de Lang.

À época, Metropolis gerou igualmente uma série de diversas versões internacionais. Jornais ingleses da altura escrevem que o filme teria uma extensão de 3048 metros (ou 111 minutos), o que indica que uma outra versão estaria sendo preparada para o mercado britânico. Já o filme estreado em Portugal no ano de 1928 durava apenas 80 minutos. Estas mudanças profundas nas várias versões internacionais estavam longe de ser únicas; pelo contrário, espelham apenas as agressivas políticas de distribuição toleradas ou mesmo fomentadas pela Ufa e outras produtoras. De modo a aumentar as possibilidades de um filme no mercado internacional, as mudanças de títulos, nomes, inter-títulos e mesmo profundas revisões nas narrativas sem qualquer consideração pela coerência artística eram mais a regra que a excepção na década de 1920.

Quando veio o sonoro, Metropolis, como os outros filmes mudos, foi arrumado numa prateleira e só devido a alguns não foi pura e simplesmente queimado. Mas quando Hitler subiu ao poder e Lang se recusou a colaborar com o regime, as cópias deste e de outros filmes do autor foram destruídas. Quando no final dos anos 30, as cinematecas procuraram salvar o que restava do filme, não tinham mais que a versão truncada de Pollock; a partir dela se fizeram as cópias que circularam entre os anos 40 e os anos 80. Só que as obras-primas resistem a tudo e graças aos avanços tecnológicos e ao trabalho de homens como Enno Patalas, director da Cinemateca de Munique, inúmeros progressos foram feitos.

Não obstante, uma parte substancial de Metropolis parece estar irremediavelmente perdida: cerca de mil metros de película, aproximadamente mais de meia hora de filme, serão porventura irrecuperáveis. É o caso da sequência descrita por Balthasar no Blaues Heft de Fevereiro de 1927: «O operário [Nº 11711, depois de ter trocado de roupas com Freder] entra no carro. Uma jovem coquette passando num carro próximo - figura tremendamente sugestiva e maravilhosamente filmada - o anúncio de Yoshiwara, em suma um centro de prazer, fazem-lhe ferver o sangue.» Dois planos são descritos no cartão de censura do trailer promocional do filme: «Um jovem cobre-se de uma chuva de papéis» - folhetos publicitários de Yoshiwara - «em primeiro plano, um sem número de balões sobem nos ares e formam cabeças humanas; teclas de piano, casais de dançarinos, uma roleta, abraços, uma bailarina». Balthasar: «nos filmes 'absolutos' de Léger e Picabia, vimos já algo de semelhante aos efeitos especiais destes planos assombrosos, mas nada de tão brilhante, tão sintético, tão singular na sua caracterização reluzente e artificial.»

2004-11-10

Noite Escura

O explorador João Canijo propõe-nos, com o seu filme Noite Escura (2004), mais uma arrojada incursão no continente interminável do coração humano. Desta feita, o talentoso cineasta português enveredou pelo género trágico e foi buscar inspiração a um grandioso drama do grego Eurípides: Ifigénia em Áulis. Os fãs sempre tiveram uma admiração especial por esta tragédia do rei Agamémnon que, instigado pelos deuses, pela Grécia e pelos seus soldados, sacrifica a vida da sua própria filha. A pintura de sentimentos das diversas personagens é extraordinária: o amor à vida e heroísmo de Ifigénia, as hesitações dolorosas de Agamémnon, a dedicação feminina e maternal de Clitemnestra logo seguida do ódio ameaçador ao marido quando se sabe traída e a nobre altivez de Aquiles fizeram deste drama a maior obra-prima de Eurípides.

É muito significativo que tenha sido escolhida a tragédia grega. Trata-se, afinal, do «mais nobre e humano» dos géneros literários: nobre, porque fala de protagonistas que se precipitam na infelicidade em virtude não de uma culpa moral, mas de um erro; humano, porque humaniza e melhora os seus espectadores através do efeito trágico por excelência, que é o temor e compaixão por alguém que sofre. Canijo é, também ele, um notável tragediógrafo, pois tanto é o cineasta dos sentimentos mais elevados e nobres, como é o realizador do suor, do mofo, do sangue ressequido, dos escarros e doutros perfumes.

É também expressivo que o Autor escolhido tenha sido o grande Eurípides. O «poeta filósofo» foi, como todos os artistas inconformados, um homem profundamente incompreendido e injustiçado no seu tempo. A sua vida andou, infelizmente, envolta em ditos e anedotas que adulteraram a verdadeira fisionomia do poeta: a imagem cruel que dele nos dá Aristófanes é a de um homem de letras orgulhoso, solitário e confinado à sua gruta onde sonha e medita ao longo do dia «com os pés para o ar». A razão de tanta crispação estava sobretudo no seu desprezo pela tradição e pela mitologia nacional. Mas se esta sua ética fez de Eurípides um motivo de escárnio dos seus contemporâneos, foi também ela que assegurou a sua longevidade através dos séculos. Hoje, o fascínio pelo teatro euripidiano está mais actual que nunca e o realizador de Noite Escura sabe-o muito bem.

As afinidades entre as obras deste Eurípides e de João Canijo são tantas e tão flagrantes, que bem podemos afirmar, sem risco de exagero, que estamos perante uma das adaptações modernas mais rigorosas e verdadeiras de uma tragédia grega. Ambos os Autores são cronistas admiráveis das suas épocas, pois tal como Eurípides não ficou indiferente a coisa alguma do seu século e do seu meio, também Canijo é um excelente retratista do Portugal dos nossos dias. Ambos concedem primazia ao feminino, pois se Eurípides (que nada tinha de misógino e até nos faz simpatizar com as suas protagonistas mais controversas, como Fedra e Medeia) entregou à mulher o trono da sua tragédia, também o português nos deu Ana Bustorff (inesquecível em Sapatos Pretos!), Rita Blanco e Beatriz Batarda. Ambos são, enfim, artistas profundamente inovadores: o «filósofo do teatro» modificou os mitos mais do que qualquer outro tragediógrafo e transmutou notavelmente a concepção íntima do drama, enquanto que João Canijo engavetou gostosamente muitas das regras da gramática visual que aprendemos nas escolas de cinema.

O que parece afastar um pouco estes dois gigantes é o pessimismo incorrigível de João Canijo. Já Eurípides não é pessimista e a sua concepção da morte é prevalentemente optimista. Ifigénia, compreendendo a necessidade de sacrificar a sua vida para auxiliar a armada grega, consente em ser imolada à deusa Ártemis: com a sua morte, aplacará a deusa e conseguirá ventos favoráveis à frota dos Helenos. Mas enquanto que a vida da heroína euripidiana é salva no último instante, não há deus ex machina que valha à nova Ifigénia de Canijo: o seu sacrifício não só é completamente inútil, como deixará o mundo entregue à solidão mais desesperada e irremediável – a tal noite escura que dá o nome ao filme.

2004-11-06

O senhor da Mundiporta

Esta semana, um senhor da empresa Mundiporta consertou-me em alguns minutos o controlo remoto da entrada da garagem e fê-lo (pasme-se!) sem cobrar um cêntimo que fosse. Gostaria por isso de deixar aqui ao generoso técnico um muito obrigado pela sua eficiência e por ter restaurado a minha esperança na espécie humana.

2004-11-05

Kiss Me

Ai, ai, a Marisa Cruz! Vejam só que fresca vai ela, esvoaçando como uma brisa mais os seus olhos azuis, tailleurs cereja e vestidos de noiva. Como se colam à moça os nossos olhares de espanto sempre que passa ligeira na rua! O seu primeiro filme foi realizado por António da Cunha Telles, com diálogos soberbamente escritos pelo nosso Possidónio Cachapa (e outros) e intitula-se, algo redundantemente, Kiss Me.

2004-11-02

Alquimia


A alquimia é uma fonte inesgotável de fascínio e encantamento. Nenhum tema intrigou tanto e tão profundamente os sábios de todas as épocas e latitudes como a transmutação dos metais. Grandes pensadores como São Tomás de Aquino ou Isaac Newton dedicaram-lhe todo o seu talento e sabedoria. A literatura e as artes abraçaram-na desde sempre. A ciência moderna tem vindo, enfim, a demonstrar que muitos dos seus antigos ensinamentos são afinal verdadeiros e rigorosos. Tudo isto não significa, porém, que a arte de Hermes seja hoje um saber generalizado e facilmente acessível a todos ou que a Pedra Filosofal se tenha convertido numa espécie de bem do domínio público. Bem pelo contrário, a alquimia continua tão obscura e enigmática como nos tempos remotos de Hermes Trismegisto ou Maria a Profetisa.

A alquimia é uma arte divina, a mais valiosa das dádivas de Deus, e só deve ser praticada pelos adeptos sinceros e de coração puro. A sua Pedra Filosofal é a verdadeira quinta-essência universal, capaz de transmutar todos os metais em ouro; é também designada Medicina Universal ou Panaceia, pois remove as causas últimas das doenças, e Fonte da Juventude, pois ela é o bálsamo da Natureza que rejuvenesce o corpo e prolonga a vida para além da sua duração normal – é aliás curioso sublinhar que todos os verdadeiros alquimistas tiveram vidas invulgarmente longas para as suas épocas. Ora, é facilmente compreensível que um bem dessa grandeza não deva cair nas mãos erradas e que a alquimia seja por isso cuidadosa na ocultação dos seus segredos. «Tenho o mundo nas minhas mãos» é uma afirmação recorrentemente ouvida na boca dos poucos que conseguiram aceder ao milagre da transmutação. Conta-se que já em Junho de 1937, o escritor francês Jacques Bergier foi visitado por um estranho alquimista que, antes de ter desaparecido tão misteriosamente como surgiu, o alertou para os perigos da energia nuclear. Aliás, a desintegração do átomo e a investigação atómica foram já consideradas como uma «anti-alquimia» e a bomba atómica como «o oposto à Pedra Filosofal».

A arte alquímica inspirou numerosos livros, mas nenhum deles fala com clareza. Porque os adeptos sempre recearam as acusações de heresia ou os raptos por homens poderosos que os forçassem a produzir ouro, a simbologia desempenha um papel central nos seus escritos e imagens. Diz-se que estes textos «ocultam segredos abertamente», pois enquanto que os versados conseguem discernir o seu significado com clareza, todas as outras pessoas não vêem senão amontoados desconexos de palavras: para além dos símbolos caracteristicamente alquímicos, como o Leão Verde ou o Ouroboros, abundam os enigmas, os trocadilhos e assonâncias. É a chamada Linguagem dos Pássaros ou Linguagem Verde.

Vários filósofos herméticos têm sugerido um método que o estudioso sério pode utilizar como um fio de Ariane para encontrar um caminho através desta obscuridade labiríntica da linguagem alquímica: seleccionar os melhores livros; lê-los e relê-los, comparando os trechos onde eles concordam, pois aí há verdade para ser encontrada. Comparar também onde diferem e como diferem, pois mais descobertas serão feitas. Suspeitar sempre que eles pareçam falar com mais clareza e simplicidade; e meditar nas passagens em que são mais obscuros. Deste modo, o padrão da verdade emergirá gradualmente, tal como a marca de água de um papel colocado defronte da luz.

Só os livros, porém, não chegam. A teoria deve preceder a prática, mas a prática deve, por sua vez, testar a teoria. Apesar de alguns entendimentos em sentido contrário, como os de Jung ou Mary Ann Atwood, a verdade é que não pode haver alquimia sem operações físicas, tal como não pode haver peixes sem água. O laboratório é o local onde o alquimista realiza essas operações e dele devem constar os aparelhos essenciais à realização da Grande Obra, designadamente o forno, designado atanor, o ovo filosófico e a tigela; e como o fogo do forno deverá estar permanentemente aceso, é também indispensável um tubo de evacuação e uma chaminé, sendo pois necessário que a divisão utilizada, que tanto pode ser a cozinha, a cave ou outra qualquer, possua tais equipamentos. A esta divisão deve acrescer o oratório, lugar reservado às preces e à meditação – ainda que, por razões de espaço, nem sempre seja fácil instalá-lo. Note-se, aliás, que a palavra laboratorium é composta precisamente de labor e oratorium, pois o laboratório do alquimista é destinado em igual medida ao trabalho e à oração.

Um laboratório que acabou por se tornar célebre foi o do alquimista inglês John Kellerman, que Sir Richard Phillips descreveu no seu livro A Personal Tour Through the United Kingdom (1928). Phillips fala de uma casa isolada e extremamente desarrumada, repleta com os instrumentos e recipientes habituais. Apenas uma divisão era ocupada por Kellerman; todas as outras estavam fechadas a cadeado e tinham as janelas barricadas. John Kellerman contou que tinha conseguido produzir ouro e que se tinha oferecido para pagar a dívida externa do país: uma oferta que o Lorde Liverpool recusou em nome do rei. Idêntica oferta tinha sido feita ao governo francês, que também recusou. Afirmou ainda que todos os governos europeus sabiam da sua descoberta e que já tinha sido alvo de várias tentativas de assassinato, pelo que tinha todas aquelas preocupações com a segurança pessoal e andava sempre armado. Pouco tempo após a visita de Phillips, Kellerman desapareceu misteriosamente e nunca mais foi visto.

John Kellerman não é um caso único. Os alquimistas são seres forçosamente tímidos, esquivos e discretos – o que, nos nossos dias de mediatismo desenfreado, pode parecer particularmente excêntrico. Muitos Autores formularam listas dessas e doutras qualidades que devem possuir os verdadeiros alquimistas e que os distinguem dos intrujões comummente chamados de assopradores – uma referência aos foles que eram utilizados para manter aceso o fogo nos laboratórios. Um daqueles Autores foi Alberto o Grande, que resumiu no seu tratado De Alchimia as virtudes dos verdadeiros adeptos: ele deve ser discreto, calado e não revelar a ninguém o resultado do seu trabalho; ele deve morar sozinho numa casa isolada; ele deve escolher os dias e horas que lhe permitam trabalhar com discrição; ele deve possuir paciência, diligência e perseverança; ele deve realizar a obra segundo as regras previamente estabelecidas; ele deve usar apenas recipientes de vidro ou de barro envernizado; ele deve ser suficientemente rico para suportar as despesas da sua arte; ele deve evitar quaisquer contactos com príncipes e nobres. Este último preceito é particularmente importante, pois a relação entre alquimistas e poder político foi sempre conturbada. Já em 144 a.C., o Imperador chinês emitia um decreto proibindo expressamente a produção de ouro, no que foi mais tarde seguido pelo Imperador Diocleciano de Roma em 296 d.C., pelo Papa João XXII na sua bula de 1317 ou por Henrique IV de Inglaterra no ano de 1403.

Esta perseguição secular aos alquimistas esteve também na origem das suas viagens constantes e Portugal, país místico por excelência, foi um ponto de paragem preferencial. O grande Paracelso, que aos 14 anos deixou a casa paterna e começou uma série interminável de viagens para conquistar os seus graus na «Universidade Universal», também por cá passou, talvez em 1518. Outros alquimistas insignes como Arnaldo de Vilanova, Nicolau Flamel, Bernardo-o-Trevisano ou Raimundo Lúlio também deixaram a sua marca junto dos adeptos portugueses. O mais célebre destes será o «Rei Alphonso de Portugal», que surge referido como autor de dois tratados sobre alquimia e que se julga ser Afonso V: um rei culto, místico, cavaleiro e perdulário, que ficou a dever o seu cognome de O Africano às suas incursões contra os muçulmanos em África. Num desses textos, o rei sublinha o carácter cifrado e misterioso da linguagem alquímica e apela à discrição de todos quantos a consigam compreender.

Será então que todos estes escolhos devem demover os iniciantes da grande viagem alquímica? Sir Francis Bacon gostava de contar a este propósito a fábula do pai que deixou uma propriedade aos seus filhos dizendo que nela se encontrava um tesouro. Os filhos cavaram por todo o lado durante largas semanas sem nada encontrar, mas o campo assim trabalhado tornou-se muito mais fértil porque… era esse o tesouro! Ora, segundo este Autor, o mesmo sucede com a alquimia. A Pedra Filosofal está em toda a parte e ao alcance de todos, ricos ou pobres. Aceder-lhe é mais simples do que parece, mas exige do viajante perseverança, humildade e um espírito aberto ao maravilhoso por detrás das coisas do quotidiano. Sujeitemo-nos por isso com paciência a esta provação, que é na realidade uma iniciação: «apressa-te lentamente, pois a precipitação é obra do Diabo».