2004-07-31

O Valor das Palavras

A surpresa mais agradável do ano lectivo de 2003/2004 do curso de cinema da Universidade Moderna foi a curta-metragem O Valor das Palavras. O filme conta-nos a história desafortunada de um jovem que, apesar de uma carreira académica brilhante, se vê forçado a arrumar carros para sobreviver. A obra foi acolhida com entusiasmo e mereceu os aplausos mais calorosos do público na noite de 29 de Julho. Apesar do excelente trabalho do realizador, creio que este é sobretudo um filme de argumentista: o meu colega de cinema Roberto Pereira. O tema abordado no seu guião é o mais actual e pertinente possível, os diálogos são memoráveis e o sentido de humor é tão certeiro quanto desconcertante. Por tudo isto, o público da noite de estreia rendeu-se e foi um joguete nas mãos do promissor argumentista. Parabéns, Roberto!

2004-07-29

Olá Valéria Mendez!

Justamente quando a Internet começava a ficar desinteressante, eis que a minha simpática conterrânea Valéria Mendez regressa com o seu magnífico blogue, mais as suas histórias, humor e, claro está, a saudosa Amália! Beijinhos, Valéria!

2004-07-25

O Insaciável


As metáforas alimentícias são inevitáveis quando se escreve sobre O Insaciável (1999). A realizadora Antonia Bird propõe-nos desta vez uma comédia canibal que é uma verdadeira delícia. A ementa inclui controvérsia, emoções fortes, actores memoráveis e uma extraordinária banda sonora, composta por Michael Nyman e Damon Albarn, o famoso vocalista dos Blur.

A história remonta a 1847, em plena guerra entre o México e os Estados Unidos. É neste cenário desditoso que encontramos Guy Pearce, envergando sem brio nem valentia o uniforme militar norte-americano. Com o intuito de se esquivar ao combate, o protagonista finge-se morto e, inadvertidamente, ingere algum sangue dos companheiros tombados. O manjar produz um efeito singular, dotando-o da argúcia e força física com que, sozinho, logrará tomar todo um posto inimigo. Mas Pearce não é nenhum herói. A discutível façanha valer-lhe-á o degredo para Forte Spencer, perdido no isolamento das montanhas californianas. Tudo decorre com aparente normalidade até à chegada misteriosa de Robert Carlyle. Como Pearce, também Carlyle se tornara canibal. No entanto, os seus propósitos são bem mais sinistros: um por um, os militares do forte vão soçobrando e enchendo o tacho, até que restam apenas os dois antagonistas canibais. Começa então o duelo pela sobrevivência, sem que à partida se distinga com nitidez quem é quem na hierarquia da cadeia alimentar…

Talvez como resultado das filmagens conturbadas, esta obra não está isenta de alguns erros escusados, dos quais serão referidos apenas três. Primeiro, os solavancos narrativos do segundo acto. É incontroverso entre argumentistas que o segundo acto de um filme é aquele cuja redacção é mais complexa e ingrata. O exemplo de O Insaciável confirma os piores receios: tudo é indigesto e sobretudo confuso. A solução seria a concentração das mortes de Arquette e do bom doutor num único e emocionante plano-sequência, ao jeito do genial Brian De Palma. Segundo, o subaproveitamento do excelente David Arquette: inexplicavelmente, o contributo do Actor americano queda-se por um punhado de falas e sem que a sua agenda sobrecarregada o justifique convincentemente. Terceiro, o corte para o grande plano do rosto de Guy Pearce no preciso e fundamental instante em que o canibal Jeffrey Jones resolve deter os propósitos de Carlyle. De uma assentada, o espectador vê-se não só privado de um dos momentos mais importantes do filme, como também de uma interpretação excepcional. Claro que se Jones fosse um actor incompetente a opção teria sido perfeitamente ajuizada; contudo, não era manifestamente esse o caso. Eis a demonstração de como um montador desastrado pode arruinar uma excelente interpretação. Seja como for, o balanço final de O Insaciável é francamente positivo e as inúmeras virtudes deste extraordinário filme suplantam em muito os seus vícios.

As reacções do público a O Insaciável dividiram-se entre a devoção e a repulsa. Muita da crispação deve-se todavia ao nojo que a referência ao canibalismo sempre suscita. Trata-se do mais estranho dos tabus, uma prática que consideramos tão repelente e horrífica que temos por inconcebível. Todavia, a História recente e a Antropologia demonstram que esta é uma realidade mais próxima e disseminada do que gostamos de pensar. Por exemplo, entre a tribo dos Umeda, o hábito bem ocidental de roer as unhas é repudiado pelas suas conotações canibalísticas. O rito da Eucaristia, também referido em O Insaciável, está intimamente ligado ao canibalismo: no momento da comunhão, a óstia e o vinho são literalmente o corpo e o sangue de Cristo. A Rússia é um país canibal por excelência. Vários episódios históricos comprovam-no, como o da prática maciça de canibalismo durante o cerco nazi de Leningrado em 1941 – uma prática a que, diz-se, nem os inquilinos do Kremlin se furtaram. Razões culturais ajudam a explicar esta apetência dos russos: quer pela sua abordagem pragmática da vida, quer pelas suas concepções particulares da alma. O canibalismo não é todavia privativo de um Povo: é apenas uma faceta obscura no comportamento da espécie mais brutal e destrutiva do planeta.

2004-07-23

Os livros que mudaram a minha vida

Por Vaca Malhada

«O assunto surgiu-me porque recentemente deu-me para reler aquele que eu julgo que foi o livro que mudou a minha vida. Tristemente descobri que o livro é uma merda. Talvez tivesse sido melhor se não o tivesse relido, ou talvez não…

Descobri que afinal não foi o livro, fui mesmo eu, ou as circunstâncias que me fizeram mudar de rumo.

Passo a explicar:

Era uma recém-adolescente parva (como devem ser todas as raparigas de 13 anos. Ouvia tudo o que era música que me vinha parar e que estivesse na moda. Andava no ballet, gostava de me vestir como a Barbie e as minhas amigas eram como eu, parvas e fúteis. Adorava o Elvis Presley e o Richard Gere porque eram bonitos, lia a Bravo, os policiais da Agatha Christie e a banda desenhada do Quino, porque quando fosse grande gostava de ser como a Mafalda – apesar de ser um bocado covarde para tomar posições).

Porque um amigo do meu irmão (um rapaz do grupo dos grunhos, mas com quem eu falava, porque era giro) gostava, comecei a ouvir Doors. Ele era fanático pelo grupo e como eu tinha um fraquinho por ele comecei a tentar saber tudo sobre eles e como não podia deixar de ser, li a biografia do Jim Morison.

Sim, foi esse o livro que acho que mudou o rumo da minha adolescência (não propriamente para melhor ou pior, mas para mais adolescente).

Apaixonei-me pelo Jim Morrison e decidi que ia ser como ele, ou pelo menos o mais próximo que conseguisse daquilo que eu achava que ele foi – degredo e literatura.

Comecei a fumar charros (até aí não me aproximava das drogas porque tinha medo), a ler as obras de Nietzsche, William Blake, Artaud, Hölderlin, Rimbaud, Verlaine, Óscar Wilde… e todos os livros que o Jim Morrison tinha lido. Assim como as biografias desses autores e os autores que os tinham influenciado. Passei pelo Freud, Jung, Wittgenstein, Sartre, Jean Genet, Marquês de Sade, Dante, Sófocles, Büchner, Brecht… Nas artes plásticas, estudei o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo, arte pop (era a única rapariga de 14 anos que sabia quem era o Max Reinhart e que via os filmes de Eisenstein e do Buñuel, que discutia as teorias da Gestalt e da escola da Bauhaus com o professor de educação visual do 8º ano – que pensava que eu era esquizofrénica)…

Pelo caminho também lia autores portugueses, mas só os que eram malucos ou depressivos (Régio, Antero de Quental, Florbela Espanca, Almada, Pessoa, Mário de Sá Carneiro – os meus preferidos eram os que se tinham suicidado).

Aos dezasseis anos era uma gótica perfeita. Tinha a mania que era culta e inteligente, arrogante, revoltada, deprimida e ouvia Sisters of Mercy, Joy Division, Bauhaus, Velvet Underground… Bebia como uma esponja quando estava com os amigos (misturas tipo absinto com mescal e macieira) e quando já estava muito bêbada vomitava de propósito para poder continuar a beber.

Em casa, os meus pais não gostavam da maneira como eu me vestia e das minhas atitudes, mas como tirava sempre óptimas notas não tinham desculpa para me chatear.

Até que a dada altura (primeiro porque tinha um tio uns anos pouco mais velho que eu que ouvia Fausto e Sérgio Godinho e que era fã do Miguel, e depois porque descobri que ele traduzia Beckett e que trouxe a música dos Joy Division para Portugal), comecei a ler Miguel Esteves Cardoso e descobri que a boa literatura e a boa música não têm que ser sérias ou deprimidas, podem ser sérias e bem-dispostas ou não e serem boas na mesma!!!

Então descobri o Caetano Veloso e Chico Buarque, os Trovante, o Jacques Brel, a Nina Simone e o jazz… Jorge Amado, Alberto Pimenta, Mia Couto, Luís Sepúlveda, Gabriel Garcia Marques, José Saramago, Aquilino Ribeiro, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade…

Devia ter uns 17 anos. Comecei a vestir-me com cores, cortei o cabelo. Já sorria e olhava para as pessoas que sorriam sem achar que eram inocentes e que sorriam porque não tinham consciência das agruras da vida…

Coincidiu também com a altura em que comecei a fazer teatro.

Coincidiu com o Cineclube de Guimarães.

Comecei a olhar para mim e a analisar-me, mais do que a construir-me. E cresci. Ultrapassei a idade das trevas das nossas vidas (a idade média – de mediana – pela qual cada um de nós tem de passar). E pronto.

Depois, já na universidade, voltei a ler muitos dos livros “pesados” que adorava e alguns achei-os chatos, outros excelentes, mas demasiadamente depressivos para conseguir gostar deles, outros não os percebi e nem percebi onde fui buscar interpretações que lhes dei na altura… enfim. Descobri também outros que não tinha lido na altura e que me fizeram muita falta como o Shakespeare. Descobri que há muito mais Beckett para além de À Espera de Godot… Descobri que sou uma Maria Lamechas e com muito orgulho…

Este último (a biografia do Jim Morrison) li a propósito do recente concerto dos Doors em Portugal, assim como revi o excelente filme do Oliver Stone. É uma biografia, fiel ou não, não interessa, mas a tradução é muito má (brasileira) e a escrita é muito primária. Reli-o milhões de vezes durante a minha adolescência. Era a minha bíblia. Mas acho que na altura eu não andava muito preocupada com literatura…

Uma coisa é certa, para mal, ou para bem, cedo ou tarde de mais, os livros que li também fizeram de mim o que sou hoje.

E não há volta a dar!!!!»

Love Boat

Love Exciting and New
Come aboard,
We're expecting you

The Love Boat
Soon will be making another run
The Love Boat
Promises something for everyone

Set a course for adventure
Your mind's on a new romance

And Love
Won't hurt anymore
It's an open smile
On a friendly shore

It's Love
Welcome aboard it's love

2004-07-20

Ute Lemper


Finalmente, pudemos ouvir e ver Ute Lemper ao vivo no Centro Cultural de Belém. O espectáculo de 19 de Julho foi memorável e a mais cosmopolita das divas conseguiu maravilhar o público lisboeta com a sua voz, elegância e uma proposta singular: em pouco menos de duas horas, percorrer o mundo inteiro através da magia da música. O Grande Auditório pôde assim agigantar-se e acolher as paragens mais diversas, desde as avenidas de Nova Iorque às ruelas de Jerusalém, com passagens obrigatórias por Paris, Moscovo e Amesterdão. O destino final foi, obviamente, Berlim mais a sua Potzdamerplatz, já com os corações transbordantes de histórias e poesia. Parabéns e até muito breve, Ute Lemper!

2004-07-16

Elogio da barata

A barata, conhecido insecto da ordem dos Dictiópteros, é um dos seres mais incompreendidos e injustiçados de toda a Criação. Nenhum bicho terá alguma vez suscitado um asco tão grande como a pequenita barata. Bem ou mal, ela é acusada de transmitir toda a sorte de doenças, como a tuberculose, a lepra, a cólera ou o tifo. O seu aspecto é considerado repulsivo. O seu cheiro é tido por nauseabundo. Diz-se que é nojenta e conspurca tudo por onde passa. A sua reputação é, em suma, vergonhosa.
 
Um episódio bem demonstrativo deste ódio visceral é o da célebre invasão das baratas radioactivas de Madagáscar. Em 1974, os investigadores do laboratório militar de Natick, nos Estados Unidos, decidiram livrar-se das baratas de Madagáscar que tinham utilizado como cobaias em experiências científicas e despejaram-nas numa lixeira local. Com a chegada do Inverno, legiões desses bichos migraram para as zonas residenciais mais próximas, que cedo ficaram a ser conhecidas como o bairro das baratas. Além de resistentes aos insecticidas comuns, as baratas eram enormes. Um dos residentes conta como dois desses bichos, cada um com cerca de dez centímetros de comprimento, saltaram de dentro da caixa de cereais directamente para a mesa de jantar. Face às reacções enfurecidas dos populares, o Exército recorreu então à utilização maciça de químicos como o DDT, cujos efeitos nocivos ainda hoje são sentidos.

A realidade, porém, é que a barata não é feia nem suja. Tal como a generalidade dos insectos, ela é um animal escrupuloso no que concerne à sua higiene pessoal, de modo a que os filamentos no seu exterior possam estar aptos à detecção de alimentos, água ou perigos. Existem cerca de 3000 espécies de baratas e apenas dez são consideradas pragas pela Organização Mundial de Saúde; todas as restantes são membros bem-vindos da biodiversidade do nosso planeta.

Aliás, os seres humanos devem imenso às baratas. Na literatura, elas foram as musas de alguns dos maiores génios de sempre, como William Burroughs. Na linguagem, inspiraram algumas das nossas expressões mais coloridas: fala-se de ‘barata tonta’ a respeito da pessoa desnorteada, sem organização nem serenidade para fazer as coisas, ou de ‘entregue às baratas’ para significar não receber, ou dar a si próprio, a devida atenção ou os cuidados necessários («deprimido, passou o dia entregue às baratas»). Na investigação científica, estudiosos da Universidade de Tóquio preparam baratas controladas à distância que permitirão, entre outros usos, salvar vítimas soterradas por derrocadas ou terramotos. 

No campo da medicina, os serviços da barata à humanidade são inestimáveis. Já na Grécia Antiga, os curandeiros indicavam um composto de entranhas de barata e óleo de rosas para as infecções dos ouvidos. Na China, baratas secas eram usadas no tratamento de doenças do foro intestinal. Em 1886, uma edição do New York Tribune dava conta do uso do chá de barata no tratamento do tétano. Mais recentemente, o lendário músico Louis Armstrong contava como na sua infância lhe eram servidos caldos com baratas cozidas de cada vez que adoecia, o que muitos julgam que poderá estar na origem da característica rouquidão da sua voz.

2004-07-11

Metropolis


Bem-vindos a Metropolis. Estamos no ano 2026 d.C. e a cidade estende os seus braços por uma vastidão interminável. No coração da urbe, acima do Estádio Olímpico e da floresta de arranha-céus, uma nova e colossal torre de Babel ergue-se vigilante e ombreia com as estrelas. Mas Metropolis oculta segredos assustadores. Enquanto que nos jardins suspensos os filhos dos poderosos se entregam ao ócio e a divertimentos dúbios, nos subterrâneos as sirenes anunciam às legiões de escravos a mudança de turnos. A revolta está, todavia, iminente e trará consigo o caos, a violência e a destruição.

Metropolis (1926) é um filme extraordinário de Fritz Lang e a mais espectacular das produções da Ufa. No entanto, à data da sua estreia esteve longe de ser uma obra de consensos. Sentimental e monumental em idênticas porções, a obra-prima expressionista de Lang tanto maravilhou pelo gigantismo da sua composição visual quanto escandalizou pela sua prolixidade, extravagância e heterogeneidade. O seu controverso argumento versava os mais díspares temas (pobreza nas cidades, conflitos sociais, choques de gerações, vícios e virtudes da tecnologia) de uma forma que parecia completamente gratuita e desgarrada. Estaríamos afinal perante «o mais tolo dos filmes», nas palavras de H. G. Wells, ou «o mais extraordinário e singular espectáculo alguma vez mostrado nos ecrãs»? Num ou noutro extremo afectivo, ninguém parecia ficar indiferente. A receita da polémica? Arranjam-se dez toneladas de terror, junta-se uma pitada de sentimentalismo, cozinha-se com uma abordagem social e misticismo quanto baste e por fim tempera-se com um orçamento milionário.

Metropolis foi e é um filme de dimensões ciclópicas. Terá custado cerca de cinco milhões de marcos e só nas iluminações e décors gastaram-se 400.000. A sua equipa técnica reunia os nomes mais prestigiados do cinema alemão: além do próprio Fritz Lang, também Karl Freund, Günther Rittau, Otto Hunte, Erich Kettelhut, Karl Vollbrecht e Änne Willkomm. Os números da produção são ainda hoje impressionantes: 620.000 metros de negativo, 1 milhão e 300 mil metros de película positiva, 750 actores secundários, 25.000 figurantes masculinos, 11.000 figurantes femininos, 1.000 carecas, 750 crianças, 100 negros, 25 chineses, 3.500 pares de sapatos, 75 cabeleiras postiças, 50 automóveis de modelo especial. Eugen Schüfftan foi incumbido dos efeitos especiais que permitiram simular a cidade do futuro, mas vários décors foram mandados fazer em Neubabelsberg. O célebre robot, encomendado ao grande escultor Schultz-Mittendorf, custou fortunas. Nunca um filme havia demorado tanto tempo a rodar (as filmagens iniciaram-se em Maio de 1925 e terminaram em Outubro de 1926) e a montar. Só a 10 de Janeiro de 1927 é que a sua grandiosa estreia teve lugar.

Já em Abril de 1927, a Ufa terá compreendido que Metropolis, projectado para gerar lucros de um milhão de marcos, acabaria por se tornar num fiasco financeiro. O filme terá sofrido a mesma sorte de muitos dos actuais blockbusters: um enorme esforço publicitário suscitou grande interesse e avultadas receitas de bilheteira nas suas primeiras semanas de exibição, mas assim que as notícias das suas falhas começaram a circular, o interesse do público desvaneceu. O advento do filme sonoro em 1927 com The Jazz Singer constituiu outro golpe profundo para Metropolis, obnubilado pelo entusiasmo do público em redor dos novos talkies.

Como grande aposta da Ufa, na tentativa de salvar a empresa das mãos dos seus competidores, Metropolis tinha falhado redondamente. Os produtores necessitavam de bodes expiatórios para este desastre e encontraram-nos em Fritz Lang e Erich Pommer, que foram publicamente responsabilizados pelos problemas financeiros da empresa. Lang protestou e exigiu a constituição de um tribunal arbitral para comprovar que os custos de produção haviam sido, na realidade, consideravelmente inferiores aos divulgados: cerca de cinco milhões de marcos. Mesmo que a Ufa estivesse correcta a propósito desta quantia, a verdadeira razão da sua ruína estava não em Metropolis mas sim na sua estratégia de gigantescas produções de filmes de arte, conjugadas com as políticas megalómanas da empresa. Metropolis era um sintoma e não a causa da ruína da Ufa.

Não obstante, a Ufa tirou daí as suas ilações e foi deliberado que quaisquer novas colaborações com o realizador deveriam estar sob apertado controlo orçamental. Abismado com as acusações, Lang opta por fundar a sua própria produtora, Fritz Lang Films, que produziu Spione (1928) e Frau im Mond (1929); a Ufa limitou-se a distribuir os seus últimos filmes mudos. Após mais um desentendimento respeitante ao uso de som em Frau im Mond, a separação foi definitiva. Com o falhanço de Metropolis bem presente, o conselho de administração da Ufa deliberou numa reunião em 1929 no sentido da cessação de todos os contactos com Fritz Lang; ao que parece, a ruptura terá mesmo chegado ao ponto de se ordenar aos membros da direcção da Ufa a frieza e distanciamento no tratamento pessoal com o realizador. Em 1929, terminava desta forma conturbada uma das mais prolíficas parcerias da história do cinema e, suprema ironia, devido a um filme que ainda hoje é celebrado como um dos maiores marcos da Sétima Arte.

2004-07-09

Inciting incident

«Pode chorar à vontade. Chorar faz bem e deita as porcarias todas cá para fora. Os homens que não choram são doentes, porque guardam as coisas más dentro deles e essas coisas más acumulam e provocam cancros. Você falou-me de uma relação. Eu sei que eu lhe disse para guardar segredo da sua doença, mas se vocês os dois estão mesmo a sério e querem começar uma vida em comum, o melhor é abrirem o jogo o quanto antes. Olhe para mim! Eu disse que você podia chorar, mas não disse que podia baixar a cabeça. Quero esse queixo bem levantado, sempre. E quando você não tiver força para subir, lembre-se: faça força para não descer.»

2004-07-04

Lost In La Mancha


Miguel de Cervantes, Terry Gilliam e Johnny Depp juntos parecem ser o dream team de qualquer produtor cinematográfico. Cervantes é o soldado romancista que Dostoievski descreveu como «o génio máximo da literatura universal»; Gilliam é o criador de alguns dos filmes mais filosóficos e visualmente sumptuosos de sempre, assim como dos magníficos bonecos animados que fizeram a imagem de marca dos Monty Python; Depp, o eterno menino bonito de Hollywood, é o actor mais carismático dos nossos dias e um profissional que, ao contrário de Brando, sabe escolher com inteligência e sensatez os projectos em que participa. A surpreendente realidade, porém, é que da conjugação de tanto talento resultou um dos maiores fiascos de sempre: o filme The Man Who Killed Don Quixote nunca chegou a ser terminado e ficou-se por um punhado desgarrado de imagens.

Lost in La Mancha (2002) é o excelente documentário que testemunha o esboroar deste projecto e se questiona sobre as razões de tão inusitado fracasso. Quando os seus jovens realizadores Keith Fulton e Louis Pepe chegaram aos estúdios de Quixote, em Madrid, estavam seguramente longe de imaginar o que estava para vir. As coisas até começaram bem, com as filmagens da investida dos gigantes, os ensaios das marionetas e as conferências apaixonadas dos actores em torno do guião – «quero sentir não apenas que interpreto, mas que sou verdadeiramente Dom Quixote», disse um inspirado Jean Rochefort.

O desastre estava, todavia, à espreita: a equipa multilingue logo se debateu com problemas de comunicação; os actores começaram a ausentar-se à medida que a produção se atrasava; tudo parecia ameaçar a ambiciosa empresa, desde cavalos mal treinados até à próstata problemática do protagonista ou um estúdio de som que não era verdadeiramente à prova de som. Ao sexto dia de rodagem, o pior acontece e uma tempestade obriga Terry Gilliam a arrumar definitivamente as câmaras. Felizmente para nós, o ex-Python fez jus à sua reputação de gajo porreiro e consentiu que tudo isto fosse filmado por Fulton e Pepe: «algum filme terá de sair de toda esta embrulhada e tudo indica que não vai ser o meu, por isso continuem a rodar!», chegou a afirmar Gilliam. O documentário veio a ser concluído com sucesso e é hoje considerado o primeiro un-making of da história da cinema!

A grande lição que deve ser retirada deste Lost In La Mancha é que o cinema é uma arte pragmática. Para fazer filmes são imprescindíveis não só boas ideias (e Gilliam tem-nas!), mas também meios avultados e racionalidade no seu emprego. É particularmente importante a pré-produção, fase em que se preparam todos os elementos necessários à feitura do filme: locais de filmagem, orçamento, guarda-roupa ou cenários. Bons planeamentos resultam em filmagens tranquilas e aqui terá residido o grande erro de Terry Gilliam. Por exemplo, enquanto que quase todas as produções reservam 10% dos seus orçamentos para um fundo de contingência, Gilliam não poupou um cêntimo que fosse, de modo a não sacrificar nada da sua visão; a teimosia viria a revelar-se fatal e obrigou a que as filmagens não pudessem ser suspensas, mesmo na iminência de uma tempestade.

As razões que estiveram na origem do fracasso desta aventura foram, por tudo isso e paradoxalmente, as mesmas que notabilizaram Gilliam: a sua megalomania e carácter impulsivo, sonhador, desfasado da realidade – numa palavra, quixotesco. Gilliam é um homem inteligentíssimo e terá seguramente aprendido a lição. Oxalá que o talentoso realizador continue no encalço dos seus moinhos de vento, mas, da próxima vez, que o faça com os pés mais assentes no chão!

2004-07-03

Até sempre, Marlon Brando!


Marlon Brando faleceu hoje, com 80 anos de idade. Perdemos desta forma um ser humano livre e digno e um artista excepcional, ao qual devemos algumas das melhores interpretações do cinema: recordo, sempre com renovada emoção, a confissão condoída de Há Lodo No Cais, a sensualidade felina do seu Stanley Kowalski ou o rosto cruel e amargurado de Vito Corleone, que parece arcar com o peso de todos os pecados do inferno. Brando foi também um activista assíduo dos direitos humanos, o que a imprensa invejosa e sensacionalista parece ter esquecido demasiadas vezes. Polémicas à parte, o seu talento está acima de tudo. Brando escreveu que gostava de ser actor por poder experimentar emoções e sentimentos que nos estão inacessíveis na realidade do quotidiano e, felizmente para nós, foi suficientemente generoso para querer compartilhá-los com o seu público. Obrigado e até sempre, Marlon!

2004-07-01

O Acossado


Todo o bom cinéfilo conhece e aprecia a história de O Acossado (1960), de Jean-Luc Godard. O argumento foi em boa medida improvisado à última da hora e era livremente inspirado numa história de gangsters da autoria de François Truffaut. Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) é um jovem rebelde procurado pela Justiça devido ao assassinato de um agente policial. Sem dinheiro, sozinho, liga-se amorosamente a Patricia Franchini (Jean Seberg), uma bela estudante universitária americana que aspira a ser jornalista. Michel rouba então um carro para conseguir obter o dinheiro que permita custear a fuga dos dois para Roma. Acaba todavia por ser denunciado por Patricia e morto a tiro pela polícia.

Um dos motivos mais recorrentes e apetecíveis deste argumento é o da incomunicabilidade dos dois protagonistas. Michel e Patricia pura e simplesmente não se entendem e são constantemente arreliados por dificuldades de comunicação. Ambos falham em compreender as atitudes do outro, que aliás quase nunca parecem ter motivação: por exemplo, nunca são verdadeiramente explicadas as razões da morte do agente policial por Michel – muito à semelhança do crime de Meursault em L’Etranger, de Albert Camus – ou da traição final de Patricia.

A incomunicabilidade entre os dois, em boa parte devida às suas diferentes proveniências sociais e culturais e ao calão cerrado do protagonista, mantém-se até à última cena. Não é certo o significado das derradeiras palavras de Michel («c’est vraiment dégueulasse!»), pois ficamos sem saber se a afirmação se reporta ou não a Patricia. Seja como for, Patricia não compreende o significado da frase: «Qu’est-ce que c’est dégueulasse?», limita-se a perguntar, olhando a câmara de frente e pressionando os lábios com o polegar, copiando o gesto que Michel por sua vez havia copiado de Bogart. O extraordinário desenlace de O Acossado permanece assim como um testemunho eloquente da apetência de Godard pelas palavras, do seu gosto pela ambiguidade e da elegância da sua cinécriture.