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Cypher é a personagem mais controversa do filme The Matrix (1999). Os seus actos parecem ainda mais odiosos que os das máquinas, porque supostamente revelam astúcia e mesquinhez. Cypher desiste do combate por Zion e denuncia os seus companheiros. Em troca, pretende apenas esquecer o seu passado e viver dentro de um programa que lhe proporcione uma vida mais confortável. À mesa de um restaurante virtual e enquanto saboreia a imitação de um bife, ele esclarece quais são as suas intenções: «I know this steak doesn’t exist. I know that when I put it in my mouth, the Matrix is telling my brain that it is juicy and delicious. After nine years, you know what I realize? Ignorance is bliss.»
A opção de Cypher parece chocante e inaceitável. Os seus opositores apontam-lhe duas grandes objecções. A primeira é o seu servilismo. Uma pessoa ligada a uma máquina de experiências ficaria manietada, porque seria apenas o recipiente passivo de experiências previamente programadas. Estaria privada não só de alterar a sua vida e o mundo, mas também de ser insólita e plenamente criativa, de poder inventar novos mundos. Não seria, para usar a expressão do saudoso Professor Agostinho da Silva, inteiramente livre. A segunda objecção consiste no egoísmo dessa decisão. Cypher agiria de forma egoísta, ao fazer do seu próprio prazer o objectivo mais importante da vida e ao preferir as meras sensações às experiências genuínas.
Se pensarmos um pouco mais, chegaremos à conclusão que estas objecções são injustas. Cypher quer apenas tornar a sua vida melhor. É uma aspiração natural, sobretudo se considerarmos que ele viveu quase uma década em condições difíceis e perigosas no deserto do real. Tão natural, aliás, que os seus companheiros da nave Nebuchadnezzar partilham dos mesmos desejos: também o íntegro e leal Mouse discorda de Dozer quando este diz que a ração de combate tem tudo o que o corpo necessita; não tem, porque não proporciona o prazer que é essencial à vida humana. Parece absurdo dizer que uma vida tão insípida como esta é livre. A existência no mundo virtual, pelo contrário, pode ser incrivelmente sedutora. Não só porque as máquinas conseguiram criar uma realidade rigorosamente idêntica à nossa, mas também porque melhoraram essa realidade em muitos aspectos: por exemplo, a pobreza foi erradicada. E porque os habitantes da Matrix não sabem nem têm possibilidade de saber que vivem numa máquina, a sua existência nada tem de censurável.
Tudo isto significa que Cypher não é mau. Ele não é um vilão porque o seu comportamento não ofende os padrões morais e ideológicos da nossa sociedade, embora seja um antagonista, já que as suas escolhas o contrapõem ao protagonista do filme. Neo representa o filósofo autêntico. Ele sobrepõe o que pensa ser a busca da verdade a todas as outras coisas: quando Morpheus lhe dá a escolher entre o comprimido vermelho que permite aceder à verdadeira natureza das coisas e o comprimido azul que mantém inalterada a sua percepção do mundo, Neo opta por enfrentar o deserto do real. A sua decisão teria sido aplaudida por Platão, que identifica felicidade com autenticidade, assim como Camus, Heidegger ou Sartre. Também John Stuart Mill afirmou que «é melhor ser um humano descontente que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates descontente que um tolo satisfeito.» Já a opção de Cypher pelo prazer e pelo sonho faz dele não um filósofo, mas um poeta. As críticas feitas à sua escolha não se distinguem muito das que têm sido feitas à poesia e são igualmente injustas.