Trabalhar com o Manoel de Oliveira é sempre um prazer enorme. Tudo corre na perfeição: não há gritarias, os horários são cumpridos ao segundo e no final todos estão contentes com um trabalho bem feito. É a diferença entre um grande mestre do cinema como o Oliveira e as baratas tontas do costume.
2006-01-31
2006-01-30
Almeida Garrett
Depois de 1854, o nosso Almeida Garrett morre uma segunda vez com a destruição da sua casa em Campo de Ourique. Para construir, ao que parece, apartamentos de luxo, onde os vereadores poderão dar a foda das três da tarde.
2006-01-27
Adeus Lenine!
A dimensão privada da história é muitas vezes esquecida. Até recentemente, a historiografia científica e pragmática pouco dizia sobre a repercussão dos acontecimentos históricos na esfera privada e quem quisesse saber algo a esse respeito teria de ler biografias de pessoas desconhecidas. Porém, a plena compreensão da história implica o conhecimento desses dois domínios – público e privado – e da interacção entre eles. A destituição de Bismarck poderá ter sido decisiva para a Alemanha, mas dificilmente será uma data importante na biografia do alemão comum: nenhuma família foi separada, nenhuma amizade se destruiu e a vida seguiu o seu curso. Já a construção do muro de Berlim representou uma revolução no quotidiano de milhões de pessoas. Há duas obras célebres que a abordaram brilhantemente: uma, é o filme Adeus Lenine! (2003), de Wolfgang Becker; a outra, é o romance O Saltador do Muro (1982), de Peter Schneider.
As páginas iniciais do livro de Schneider descrevem uma vista aérea de Berlim. Observada do céu, a Colossal apresenta-se como uma unidade orgânica e nada indicia que nela confinam dois continentes políticos. Porém, a dividi-la está o muro que, «com o seu fantástico trajecto em ziguezague, aparece como o produto monstruoso de uma fantasia anárquica». O formidável paredão constitui a fronteira mais vigiada e difícil de atravessar em todo o mundo, mas alguns berlinenses não se conformam com esse estado de coisas. Por exemplo, os famosos saltadores. É o caso de Lutz e os irmãos Willy, três cinéfilos do Leste que arriscam a vida para poderem ver filmes do Charles Bronson no Ocidente; ou do quarentão Kabe, que salta para o lado oriental «por uma necessidade doentia de transpor o muro». Tudo isto reforça aquela impressão inicial de verdadeira unidade, mas O Saltador do Muro deixa o leitor com uma interrogação inquietante: ainda que o muro de betão venha a cair, há muitos outros muros interiores que devem ser derrubados.
Adeus Lenine! é uma espécie de sequela cinematográfica do romance de Peter Schneider. As afinidades entre o filme e o livro são evidentes: o mesmo sentido de humor absurdo percorre como uma seiva vital as duas obras; ambas abordam a chamada questão alemã sem os preconceitos e ideias caricaturadas do costume; e ambas dão primazia à história do quotidiano.
O filme começa com mais uma travessia do muro: o saltador consegue escapar para o Ocidente, mas tem de deixar a mulher e os dois filhos no lado Leste. Sozinha, a mãe substitui o marido pelo Estado socialista. Não é uma troca completamente irrazoável: o acordo dá-lhe segurança, habitação e emprego, além do que ela acredita convictamente no princípio «de cada um conforme as capacidades, a cada um segundo as necessidades» sobre o qual assenta a Alemanha socialista. Em contrapartida, a nossa protagonista terá de prescindir da sua individualidade, pois os 500.000 informantes da Stasi tornam o quotidiano da RDA reprimido e desconfiado: antes de deixar a boca, cada palavra é minuciosamente ponderada; um sorriso na altura errada ou um olhar inconveniente podem originar perigosas suspeitas e acusações; e até alguns gestos, tons de voz ou peças de roupa podem ser interpretados como sinais de orientações políticas subversivas.
Apesar da repressão policial, a mentalidade pragmática e austera dos alemães de Leste acomodou-se a essa ideologia que glorificava a classe trabalhadora, elogiava a diligência e pregava a obediência à autoridade de um partido único. A reunificação exigirá que esses 16 milhões de pessoas reformulem abruptamente todo um modo de vida. Ao contrário dos irmãos e irmãs do Ocidente, os alemães orientais nunca tiveram a oportunidade de se adaptar psicologicamente ao regime democrático e partem para a aventura da reunificação em situação de clara desvantagem. Esfriada a euforia inicial, há uma sensação nítida de perda e a crispação prolifera entre Ossis e Wessis: o protagonista de Adeus Lenine! insulta o funcionário dos câmbios chamando-o de «ocidental de merda» e o cunhado do Ocidente responde que «vocês, os alemães de Leste, nunca estão satisfeitos». Afinal, a premonição de Peter Schneider estava correcta...
Alguns muros parecem mesmo ser insuperáveis. O vínculo da mãe à antiga RDA é tão profundo, que uma não pode sobreviver sem a outra. A protagonista morre pouco após a extinção do seu país e as recordações dessas duas mães confundem-se no espírito do jovem herói do filme: «O país que a minha mãe deixou foi o país em que ela acreditou. E nós mantivemo-lo vivo até ao seu último suspiro. Um país que nunca existiu desta forma. Um país que, para mim, estará sempre associado à minha mãe». Esta nostalgia é, ainda hoje, comungada por muitos alemães do Leste e alguns deles acreditam até na possibilidade de um regresso parcial ao passado ou terceira via: uma solução compromissória que reunisse o melhor do capitalismo e do socialismo. Se há no mundo algum povo capaz de concretizar com sucesso uma utopia dessas, é o alemão.
2006-01-16
Bocage (v)
Agora que estreou a série Bocage na RTP, o realizador Fernando Vendrell já pode exclamar: «Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!» Parabéns ao elenco, à equipa técnica e... a mim também, que lá estou no papel de Mosca!
2006-01-13
Jel
A revelação televisiva do ano é o Jel (assim mesmo, com jota). Semana após semana, o intrépido DJ e humorista arriscou a vida (literalmente!) para nos proporcionar os melhores momentos da Revolta dos Pastéis de Nata.
2006-01-09
Botequins bloguísticos
Alguns estabelecimentos da blogosfera onde se está muito bem: No Café, a Tasca da Cultura e o botequim do extraordinário Nuno Markl.
2006-01-06
Ota
300 anos antes da polémica Ota, já o filósofo Voltaire fornecia os argumentos contra a construção do novo aeroporto: «On arrive à la mort aussi bien en manquant de tout qu'en jouissant de ce qui peut rendre la vie agréable. Le sauvage du Canada subsiste et atteint la vieillesse comme le citoyen d'Angleterre qui a cinquante mille guinées de revenu. Mais qui comparera jamais le pays des Iroquois à l'Angleterre? Que la république de Raguse et le canton de Zug fassent des lois sumptuaires: ils ont raison, il faut que le pauvre ne dépense point au-delà de ses forces; mais j'ai lu quelque part: 'Sachez surtout que le luxe enrichit un grand État, s'il en perd un petit.'»
2006-01-04
Um Violino no Telhado
Segundo Um Violino no Telhado (1971), o segredo da longevidade do povo judaico está nas suas tradições. A tese do filme é enunciada logo na sua memorável sequência de abertura: «Um violinista no telhado. Parece uma loucura, não é? Mas aqui, na nossa pequena aldeia de Anatevka, pode dizer-se que cada um de nós é um violinista no telhado. A tentar arranhar uma melodia agradável e simples sem partir o pescoço. Não é fácil. Talvez perguntem porque é que ficamos lá em cima se é tão perigoso? Bem, ficamos porque Anatevka é a nossa casa. E como mantemos o equilíbrio? Isso, posso dizer-vos numa palavra: tradição». As tradições sempre foram a «pátria portátil» dos judeus e uma fonte de força nos momentos mais difíceis da sua História. Porém, o mundo não pára e a evolução dos tempos vai pôr em questão o sentido e a viabilidade de muitos desses costumes.
O primeiro teste às convicções do protagonista surge com o noivado da sua filha mais velha. Seguindo a tradição, o pai escolheu o noivo e decidiu-se pelo velho talhante da aldeia. Para uma família pobre como é a do nosso herói, é difícil casar uma filha e qualquer pretendente que tenha duas pernas e um coração ainda a bater não é coisa que se despreze. Mais: o talhante é rico, trabalhador e honesto, ainda que seja idoso e lhe falte a erudição (kuppah). Porém, a jovem está apaixonada por outro homem e não quer casar com os restos velhos de ninguém. Um grande problema, sobretudo porque os dois jovens já se tinham comprometido em segredo. O pai tem de decidir e acede às pretensões da filha: mesmo que o futuro genro seja uma migalha de homem, os filhos são o bem mais precioso de um judeu e a sua felicidade é um verdadeiro mandamento (mitzvá).
A sequência do casamento é notável pela sua riqueza de pormenores. O realizador detém-se longamente sobre os rituais e pequenos gestos, que são plenos de significado espiritual: a cerimónia decorre ao ar livre, como um prenúncio de que o casamento será abençoado com tantas crianças quantas sejam as estrelas do céu; os nubentes estão sob uma tenda (chupá), que simboliza o novo lar que está a ser criado; e o rabi administra as bênções sobre a taça de vinho, símbolo da alegria e contentamento. A cerimónia termina com um costume estranho, quando o noivo quebra um copo de vidro com o pé: isto recorda que a alegria deve ser moderada pela memória das catástrofes do povo e que a felicidade dos judeus nunca estará completa enquanto o Templo de Jerusalém permanecer destruído.
A quebra do copo revela-se tristemente premonitória quando o casamento é interrompido pela investida dos militares russos sobre a aldeia. É um pogrom que não poupa ninguém e reduz Anatevka a um amontoado de escombros. O plano picado que conclui a sequência é memorável: por entre a destruição, o protagonista questiona o céu sobre o sentido de toda aquela violência. Isto suscita duas observações. A primeira reporta-se à relação dialéctica que os judeus mantêm com a sua divindade. Questionar faz parte da condição judaica e, como se vê, nem Deus escapa ao interrogatório: o nosso protagonista não só conversa com o Senhor, como chega a argumentar com Ele, seguindo o exemplo de Abraão. A segunda observação respeita ao dilema moral da injustiça no mundo. Afinal, se o Deus judaico é amoroso e Todo-Poderoso, como é que se justifica que aconteçam coisas más como estas às pessoas inocentes? Esta é a mais fundamental dificuldade humana com Deus e a Bíblia não a esquece. O Livro de Job, que descreve o percurso de um justo que passa da felicidade à miséria, ensina que os desígnios divinos estão para lá da nossa compreensão. Mais tarde, os filósofos judeus resumiram esta ideia: «se eu pudesse compreender Deus, eu seria Deus».
Até a destruição da aldeia parece insignificante aos olhos do protagonista, quando descobre que a filha mais nova casou secretamente com um gentio. Novamente, o leitmotiv da tradição: o casamento com alguém exterior à fé é inaceitável e o último dos tabus, pois «um pássaro pode amar um peixe, mas onde construiriam uma casa juntos?» As palavras do protagonista recordam-nos o milagre de Chanuká (Festa da Dedicação do Templo) ou Festa das Luzes: tal como o óleo que alimentou a lâmpada do Templo nunca se mistura com os outros líquidos, também os judeus sempre recusaram a assimilação. Num dos momentos mais emocionantes do filme, o protagonista terá de reunir toda a sua força para aceitar a filha de volta e proferir aquelas palavras decisivas: «que Deus te acompanhe».
A maior provação de todas está reservada para o final, quando a população de Anatevka é expulsa por decreto do czar. A triste procissão de judeus errantes representa, por sinédoque, o sofrimento e desenraizamento de todo um povo e sublinha a completa ausência de sentido do anti-semitismo. Nada justifica o degredo desta comunidade pacífica, trabalhadora e estabelecida há mais de três séculos, tal como nada justifica a perseguição milenar aos judeus. Mas esta gente tem o hábito de sobreviver. Os judeus escorraçados de Anatevka são, na verdade, os mais afortunados: muitos deles escaparão com vida e alguns conseguirão até realizar o sonho de «fazer a América». O violinista, agora com os pés bem assentes no chão, estará sempre a zelar por eles e, enquanto a sua música continuar a ser ouvida, nada terão a temer.
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