2006-04-23
Donnie Darko
Donnie Darko (2001) é um filme ambíguo e complexo. O argumento parece demasiado confuso, pois preocupa-se mais em colocar questões fascinantes do que fornecer respostas claras. Isto faz da obra de estreia de Richard Kelly uma raridade em Hollywood, já que os guionistas americanos prezam muito os enredos claros, coerentes e bem ordenados. Porém, tudo em Donnie Darko tem uma explicação. Na verdade, este filme sobre viagens no tempo é uma espécie de quebra-cabeças gigante. As soluções estão lá todas escondidas como ovos de Páscoa, mas é preciso saber procurar nos sítios certos.
A referência à Breve História do Tempo, de Stephen Hawking, é uma pista importante. O livro fornece uma explicação para a evolução do Universo e procura uma teoria unitária que concilie duas teorias parciais fundamentais: a mecânica quântica e a teoria da relatividade geral. A relatividade determina que o tempo não está completamente separado nem é independente do espaço, mas sim combinado com ele, para formar um objecto chamado espaço-tempo. Isto permite, teoricamente, as viagens através do tempo. Hawking admite mesmo que haja pontes ou atalhos, chamados buracos de verme, para chegar às regiões mais distantes do espaço-tempo. Ao regressarmos ao passado através de uma dessas pontes, estaríamos a criar um universo alternativo e faríamos com que o tempo fluísse em dois cursos paralelos.
A viagem no tempo é teoricamente possível, mas apresenta dificuldades práticas tremendas. Não só porque os buracos de verme são instáveis e só existem por períodos muito breves, mas também porque as quantidades de combustível necessárias para uma viagem dessas são imensas. Então, como conseguiu Donnie Darko recuar ao passado? O livro A Filosofia das Viagens no Tempo dá-nos a resposta: tudo decorre num Universo Tangente em que o nosso protagonista foi escolhido como Receptor Vivo para devolver um Artefacto ao Universo Primário. Ora, o Receptor Vivo é muitas vezes abençoado com poderes sobrenaturais, que incluem força acrescida, telepatia e a habilidade de manipular o fogo e a água. Isto explica que Donnie tenha conseguido inundar a escola, incendiar a casa e enfiar o machado na estátua de bronze.
As acções de Donnie Darko são guiadas por Frank, o misterioso Coelhinho Gigante. Toda a mise en scène do realizador Richard Kelly parece indiciar que o Coelho é uma personagem maléfica: a voz distorcida, as sombras que o envolvem e os actos de destruição (o incêndio e a inundação) que ele desencadeia. Porém, Frank não tem nada de maligno. Ele é, na verdade, um mensageiro regressado do futuro e a sua intenção é auxiliar Donnie a resgatar a Humanidade da destruição pelo Universo Tangente. E se Frank obriga o jovem herói a cometer alguns actos de violência, é apenas para que seja colocada em movimento a extraordinária sequência de acontecimentos que levará à salvação do mundo: a inundação da escola leva ao encontro do protagonista e da sua namorada; juntos, eles poderão então entregar-se em sacrifício.
Frank não está só, pois todos os outros habitantes da cidade também auxiliam o protagonista. Eles são os chamados Manipulados Vivos e fornecem continuamente pistas para a solução do mistério: a professora de inglês refere a expressão Cellar Door, que conduzirá o protagonista à casa da Avó Morte; a partida da mãe permite a realização da fatídica festa de bruxas; e até os dois rufias são fundamentais, pois acabam por provocar o atropelamento. No final, todos eles sobreviverão e estarão reunidos na magnífica sequência ao som da canção Mad World.
Resta saber quem é o grande responsável pela manipulação de todas estas personagens. Uma possibilidade é que ela tenha partido de uma civilização mais evoluída que a nossa: os sonhos de Donnie mostram-nos uma cidade do futuro inundada em água e o próprio Stephen Hawking escreveu que uma tecnologia avançada poderia utilizar com sucesso os buracos de verme. Outra possibilidade é a intervenção divina, que também é sugerida pelo filme. Esta solução tem consequências teológicas: Deus não seria um Grande Relojoeiro que dá corda ao mundo e se afasta para nunca mais intervir, mas é, pelo contrário, um criador que pode mudar de ideias e actuar no seu Universo através de milagres.
2006-04-17
2006-04-11
Olho de Fogo
Finalmente, o nosso Presidente Alberto João Jardim tem um adversário à altura: o excelente e controverso Olho de Fogo.
2006-04-05
Agostinho da Silva
O Professor Agostinho da Silva foi um defensor do direito à preguiça. O saudoso filósofo acreditava numa sociedade sem economia, na qual as pessoas pudessem expressar livremente os seus talentos em vez de serem apanhadas numa estrutura organizada que acaba sempre por ser repressiva: «Que o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo e o mundo poeta para ele, de tal modo que nunca mais ninguém se preocupe por fazer tal ou tal obra». Mais uma vez: «Que o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo». Estas ideias podem parecer um pouco estranhas, sobretudo hoje, que tanto se fala na necessidade dos portugueses serem mais produtivos. Porém, elas estão mais pertinentes do que nunca e demonstram que a filosofia de Agostinho da Silva continua lúcida e actual – um pensamento vivo, no dizer feliz do excelente documentário de João Rodrigo Mattos.
O Professor Agostinho não está só, pois as suas ideias sobre o ócio surgem a jusante de uma longa tradição de filósofos da preguiça. Platão, Marivaux, Rousseau, Cícero, Xenofonte, Aristóteles, Lao-tseu foram enérgicos defensores das virtudes da malandrice. A Antiga Grécia inventou a filosofia e, com isso, o direito à vida contemplativa. Com São Tomás de Aquino, o Ocidente cristão reconhece pela primeira vez a necessidade de um tempo para o repouso e o prazer, um tempo durante o qual se pudesse dormir, descansar, brincar. Mas o maior teórico da preguiça continua a ser o francês Paul Lafargue, discípulo e genro de Marx, que denuncia «o amor ao trabalho» como «uma estranha loucura» responsável por «misérias individuais e sociais que, há dois séculos, atormentam a triste humanidade».
Todos estes pensadores concordam que nem toda a inactividade é verdadeiro ócio. Só é defensável a preguiça que se traduza em inacção criativa, uma ideia que o Professor Agostinho também afirmou expressamente: «O tempo livre, quando não se enche com coisa nenhuma, torna-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo. É a razão por que morre tanto reformado já que, deixando de ter o seu emprego, se não encontrar novos objectivos na vida, a morte seguir-se-á rapidamente». Tudo o que não propicia a redescoberta da individualidade é uma impostura: não há nada de particularmente interessante na chamada power nap (a sesta dinâmica) que os americanos inventaram ou na obsessão quase doentia daqueles casais que insistem em passar revista a todos os livros, filmes e espectáculos que estejam na moda.
A ligação da preguiça ao pensamento criativo faz dela uma questão política e muito problemática. A industrialização engenhocou toda uma nova cultura do tempo, que repartiu o quotidiano em três partes desiguais: o trabalho, o sono e, residualmente, o lazer. O movimento sindical tem encetado uma luta de décadas no sentido da igualização destes três tempos, mas o trabalho permaneceu no imaginário colectivo como o grande objectivo da existência humana. Daí o cariz subversivo da preguiça: se os novos princípios do progresso transformam os homens em escravos da profissão e maníacos do lucro, então a preguiça converte-se em verdadeiro princípio revolucionário. E a luta dos ociosos começa lentamente a ganhar um carácter organizado e transnacional, graças à constituição de autênticos sindicatos da preguiça nos mais diversos países: Bélgica, Alemanha, Estados Unidos e até o diligente Japão. Em França, organizações como os Chômeurs heureux ou o Parti Oisif preconizam a «erradicação do trabalho para suprimir o desemprego». Travesseiros ao alto!
O Professor Agostinho não está só, pois as suas ideias sobre o ócio surgem a jusante de uma longa tradição de filósofos da preguiça. Platão, Marivaux, Rousseau, Cícero, Xenofonte, Aristóteles, Lao-tseu foram enérgicos defensores das virtudes da malandrice. A Antiga Grécia inventou a filosofia e, com isso, o direito à vida contemplativa. Com São Tomás de Aquino, o Ocidente cristão reconhece pela primeira vez a necessidade de um tempo para o repouso e o prazer, um tempo durante o qual se pudesse dormir, descansar, brincar. Mas o maior teórico da preguiça continua a ser o francês Paul Lafargue, discípulo e genro de Marx, que denuncia «o amor ao trabalho» como «uma estranha loucura» responsável por «misérias individuais e sociais que, há dois séculos, atormentam a triste humanidade».
Todos estes pensadores concordam que nem toda a inactividade é verdadeiro ócio. Só é defensável a preguiça que se traduza em inacção criativa, uma ideia que o Professor Agostinho também afirmou expressamente: «O tempo livre, quando não se enche com coisa nenhuma, torna-se absolutamente insuportável, destruindo o indivíduo por completo. É a razão por que morre tanto reformado já que, deixando de ter o seu emprego, se não encontrar novos objectivos na vida, a morte seguir-se-á rapidamente». Tudo o que não propicia a redescoberta da individualidade é uma impostura: não há nada de particularmente interessante na chamada power nap (a sesta dinâmica) que os americanos inventaram ou na obsessão quase doentia daqueles casais que insistem em passar revista a todos os livros, filmes e espectáculos que estejam na moda.
A ligação da preguiça ao pensamento criativo faz dela uma questão política e muito problemática. A industrialização engenhocou toda uma nova cultura do tempo, que repartiu o quotidiano em três partes desiguais: o trabalho, o sono e, residualmente, o lazer. O movimento sindical tem encetado uma luta de décadas no sentido da igualização destes três tempos, mas o trabalho permaneceu no imaginário colectivo como o grande objectivo da existência humana. Daí o cariz subversivo da preguiça: se os novos princípios do progresso transformam os homens em escravos da profissão e maníacos do lucro, então a preguiça converte-se em verdadeiro princípio revolucionário. E a luta dos ociosos começa lentamente a ganhar um carácter organizado e transnacional, graças à constituição de autênticos sindicatos da preguiça nos mais diversos países: Bélgica, Alemanha, Estados Unidos e até o diligente Japão. Em França, organizações como os Chômeurs heureux ou o Parti Oisif preconizam a «erradicação do trabalho para suprimir o desemprego». Travesseiros ao alto!
Subscrever:
Mensagens (Atom)