2005-04-04

Walter Murch

«É completamente improvável que a montagem cinematográfica deva existir. [...] Quando paramos para pensar nisso, é espantoso, porque em toda a existência humana (e, provavelmente, já milhões de anos antes) nós e os nossos antepassados temos visto o mundo de forma contínua. Todas as manhãs abrimos os olhos e nas 16 horas seguintes - levantamo-nos, tomamos o pequeno-almoço, vestimo-nos, saímos - cada passo que damos, cada momento que vivemos é registado sem cortes: o que vemos é um único 'plano' de 16 horas. É como se retirássemos a tampa da objectiva e deixássemos a câmara a filmar 16 horas seguidas. Por conseguinte, não teria sido surpreendente se as primeiras experiências de montagem tivessem provocado alguma espécie de enjôo a quem quer que fosse submetido a elas. Isso teria sido perfeitamente razoável! Porque nada na nossa evolução alguma vez antecipou algo como uma transição instantânea de uma realidade visual em movimento para outra.

A solução, julgo eu, para compreender porque é que a montagem cinematográfica é não só possível como tremendamente eficaz está no cariz cinematográfico dos sonhos, mais do que na realidade acordada. As pessoas têm registado os seus sonhos já desde há muitos milhares de anos, muito antes da invenção do cinema, e todos eles têm em comum estas mudanças súbitas de perspectiva para perspectiva, de lugar para lugar e de tempo para tempo. Os sonhos não têm nenhuma da inércia da realidade física: 'eu estava no meio da selva e logo a seguir estava no topo de um icebergue' - isto pode ser um sonho, mas também pode ser cinema. E é cinema! Eu acredito que o mecanismo secreto que permite que o cinema funcione e tenha sobre nós o poder que tem, é o facto de termos passado, provavelmente desde há milhões de anos, oito horas por dia das nossas vidas num estado de sonho que é caracteristicamente cinematográfico e por isso estarmos completamente familiarizados com esta versão da realidade.»


(in Declan McGrath, Editing & Post-Production, Screencraft, Roto Vision, UK, 2001, pp. 37-40)

Sem comentários: