O que faz de Corto Maltese um dos protagonistas mais interessantes do mundo da banda desenhada é o seu carisma. Corto é, antes de mais e indiscutivelmente, um herói: alguém que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outros e que consegue escapar incólume e de um modo exemplar às situações mais insólitas. Mas enquanto que uns dependem de engenhocas sofisticadas e outros de poderes telepáticos, o marinheiro de La Valetta precisa apenas de carisma: a capacidade quase mágica de reunir irresistivelmente os outros em seu redor, ser ouvido por eles e metê-los num chinelo e (aqui é que está a magia) fazer tudo isso naturalmente. Impor-se sem se impor, é essa a poção mágica de Corto Maltese. Não é o seu físico, embora o corpo desempenhe aqui um papel fundamental, não no sentido da força muscular, mas num sentido místico. Nem é o seu proverbial descomprometimento, que lhe permite transaccionar com todas as gentes de todas as inclinações ideológicas e proveniências geográficas e que faz dele, no léxico das Nações Unidas, um verdadeiro observador. É, na realidade, tudo uma questão de carisma.
Esse carisma de Corto Maltese tem-lhe permitido arranjar amigos (fez muitos e de muitas nacionalidades), mas também suplantar inimigos como o temível Roman von Ungern-Sternberg. O Barão Louco, espécie de negativo do próprio Corto, é uma personalidade igualmente ambígua: ele tanto é capaz de recitar Coleridge, como de mandar fuzilar dois dos seus tenentes apenas porque se ausentaram por algumas horas para ir às putas. O sonho do barão: marchar nas pisadas de Gengis Khan, para conquistar a China, depois a Sibéria e avançar até Moscovo. Corto cruzou-se com ele quando perseguia um comboio carregado de ouro e não guarda seguramente boas recordações desse dia. Os dois trocaram apenas alguns monossílabos azedos, mas foi o suficiente para que o marinheiro conseguisse conquistar o respeito e alguma confiança do Barão. Ungern é um sanguinário, mas também um místico suficientemente lúcido para compreender que tem os dias contados. Por isso e porque sabe que Corto é tão aventureiro quanto ele, oferece-lhe o seu império. Mas o marinheiro recusa. O barão, a quem repugnam os bajuladores covardes, admira-lhe a audácia e deixa-o partir em paz mais os seus companheiros.
Também é o carisma de Corto que explica o seu prestígio junto do belo sexo, porque as mulheres sempre apreciaram os temperamentos fortes. Uma delas é a jovem Pandora Groovesnore, por quem o nosso herói se apaixonou em pleno Pacífico: «estás muito bonita! Fazes-me lembrar um tango de Arola que eu ouvia no cabaré Parda Flora, em Buenos Aires». Quanto a Tracy Eberhard, é uma mulher literalmente caída do céu: Corto encontrou-a numa ilha das Caraíbas e salvou-lhe a vida ao retirá-la dos destroços do avião despenhado. Foi também um desastre de aviação que uniu Corto a Marina Seminova, embora o marinheiro se tenha mostrado invulgarmente irritado nessa ocasião. Não era para menos: afinal, a duquesa havia mandado abater, quase desportivamente, o avião onde ele e o americano Jack Tippit viajavam. Mas talvez nenhuma mulher o tenha marcado tanto e tão profundamente como Louise Brookszowyc: é ela que salva a vida de Corto em Veneza e que, dois anos depois, motivará a sua partida atribulada para Buenos Aires. Estas e todas as outras companheiras de Corto Maltese são admiráveis, sedutoras e, tal como ele, carismáticas. Evidentemente, Pratt é um admirador declarado da metade mais sensível da humanidade: «um mundo sem mulheres seria uma coisa terrível!»
13 comentários:
Flávio, para além de teres aqui um belo e precioso texto, tens também um convite no Muitas Coisas.
Um abraço.
Uma adaptação disto ao cinema é que era bem :P!
Cumprimentos cinéfilos
Nossa Senhora_! Ora aqui está um texto bem delineado e bem escrito.O menino devia era escrever cronicas para a PREMIÈRE !!!
Adorei.
Abraço
Fadista Valeria Mendez, do blog com o mesmo nome.
O problema de ter amigos porreiros é precisamente este: estragam-nos com mimos, mesmo quando não os merecemos. Obrigado a todos!
Não sou grande conhecedor dessa BD em particular, mas gostei do texto. Muito bem-conseguido, os elogios são merecidos...
Pois também sou daquelas que não resiste ao encanto do Corto Maltese. De vez em quando volto a ler uma aventura dele. E agora com o teu coentário está-me a dar vontade de reler. Era uma ideia lê-lo na perspectiva do papel que as mulheres aí desempenham. Vou ver se tenho tempo e engenho para tal tarefa..
Pois também sou daquelas que não resiste ao encanto do Corto Maltese. De vez em quando volto a ler uma aventura dele. E agora com o teu coentário está-me a dar vontade de reler. Era uma ideia lê-lo na perspectiva do papel que as mulheres aí desempenham. Vou ver se tenho tempo e engenho para tal tarefa..
Desculpa o duplicado,não sei como foi.
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O texto esta fenomenal. Corto sempre foi o meu herói. Impressiona-me a sua personalidade e as aventuras serem contadas aliadas a um facto ou situação verídica. gostaria de ve-lo como personagem real num filme de Hollywood.correia
Obrigado pela simpatia, Kinlim. Também adoro o Corto, só lamento ter comprado a edição em folhetins do Público e não os álbuns completos. Um grande abraço.
Corto é amigo dos amigos!
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