O realizador Wim Wenders afirmou em tempos que «o mundo é a cores mas o preto e branco é mais realista». O problema é que ele não tinha um blogue. Até aqui, e por discutibilíssima opção estética minha, A Bomba só incluía imagens sem cor. Porém, e graças a uma sugestão preciosa da nossa querida Ofeliazinha, resolvi renovar a pintura e substituir quase todas as anteriores imagens descoloridas por outras que reluzem em toda a sua glória cromática. Espero que, desta forma, o blogue fique melhor (ou menos mau…).
2005-04-27
2005-04-26
Corto Maltese
O que faz de Corto Maltese um dos protagonistas mais interessantes do mundo da banda desenhada é o seu carisma. Corto é, antes de mais e indiscutivelmente, um herói: alguém que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outros e que consegue escapar incólume e de um modo exemplar às situações mais insólitas. Mas enquanto que uns dependem de engenhocas sofisticadas e outros de poderes telepáticos, o marinheiro de La Valetta precisa apenas de carisma: a capacidade quase mágica de reunir irresistivelmente os outros em seu redor, ser ouvido por eles e metê-los num chinelo e (aqui é que está a magia) fazer tudo isso naturalmente. Impor-se sem se impor, é essa a poção mágica de Corto Maltese. Não é o seu físico, embora o corpo desempenhe aqui um papel fundamental, não no sentido da força muscular, mas num sentido místico. Nem é o seu proverbial descomprometimento, que lhe permite transaccionar com todas as gentes de todas as inclinações ideológicas e proveniências geográficas e que faz dele, no léxico das Nações Unidas, um verdadeiro observador. É, na realidade, tudo uma questão de carisma.
Esse carisma de Corto Maltese tem-lhe permitido arranjar amigos (fez muitos e de muitas nacionalidades), mas também suplantar inimigos como o temível Roman von Ungern-Sternberg. O Barão Louco, espécie de negativo do próprio Corto, é uma personalidade igualmente ambígua: ele tanto é capaz de recitar Coleridge, como de mandar fuzilar dois dos seus tenentes apenas porque se ausentaram por algumas horas para ir às putas. O sonho do barão: marchar nas pisadas de Gengis Khan, para conquistar a China, depois a Sibéria e avançar até Moscovo. Corto cruzou-se com ele quando perseguia um comboio carregado de ouro e não guarda seguramente boas recordações desse dia. Os dois trocaram apenas alguns monossílabos azedos, mas foi o suficiente para que o marinheiro conseguisse conquistar o respeito e alguma confiança do Barão. Ungern é um sanguinário, mas também um místico suficientemente lúcido para compreender que tem os dias contados. Por isso e porque sabe que Corto é tão aventureiro quanto ele, oferece-lhe o seu império. Mas o marinheiro recusa. O barão, a quem repugnam os bajuladores covardes, admira-lhe a audácia e deixa-o partir em paz mais os seus companheiros.
Também é o carisma de Corto que explica o seu prestígio junto do belo sexo, porque as mulheres sempre apreciaram os temperamentos fortes. Uma delas é a jovem Pandora Groovesnore, por quem o nosso herói se apaixonou em pleno Pacífico: «estás muito bonita! Fazes-me lembrar um tango de Arola que eu ouvia no cabaré Parda Flora, em Buenos Aires». Quanto a Tracy Eberhard, é uma mulher literalmente caída do céu: Corto encontrou-a numa ilha das Caraíbas e salvou-lhe a vida ao retirá-la dos destroços do avião despenhado. Foi também um desastre de aviação que uniu Corto a Marina Seminova, embora o marinheiro se tenha mostrado invulgarmente irritado nessa ocasião. Não era para menos: afinal, a duquesa havia mandado abater, quase desportivamente, o avião onde ele e o americano Jack Tippit viajavam. Mas talvez nenhuma mulher o tenha marcado tanto e tão profundamente como Louise Brookszowyc: é ela que salva a vida de Corto em Veneza e que, dois anos depois, motivará a sua partida atribulada para Buenos Aires. Estas e todas as outras companheiras de Corto Maltese são admiráveis, sedutoras e, tal como ele, carismáticas. Evidentemente, Pratt é um admirador declarado da metade mais sensível da humanidade: «um mundo sem mulheres seria uma coisa terrível!»
Esse carisma de Corto Maltese tem-lhe permitido arranjar amigos (fez muitos e de muitas nacionalidades), mas também suplantar inimigos como o temível Roman von Ungern-Sternberg. O Barão Louco, espécie de negativo do próprio Corto, é uma personalidade igualmente ambígua: ele tanto é capaz de recitar Coleridge, como de mandar fuzilar dois dos seus tenentes apenas porque se ausentaram por algumas horas para ir às putas. O sonho do barão: marchar nas pisadas de Gengis Khan, para conquistar a China, depois a Sibéria e avançar até Moscovo. Corto cruzou-se com ele quando perseguia um comboio carregado de ouro e não guarda seguramente boas recordações desse dia. Os dois trocaram apenas alguns monossílabos azedos, mas foi o suficiente para que o marinheiro conseguisse conquistar o respeito e alguma confiança do Barão. Ungern é um sanguinário, mas também um místico suficientemente lúcido para compreender que tem os dias contados. Por isso e porque sabe que Corto é tão aventureiro quanto ele, oferece-lhe o seu império. Mas o marinheiro recusa. O barão, a quem repugnam os bajuladores covardes, admira-lhe a audácia e deixa-o partir em paz mais os seus companheiros.
Também é o carisma de Corto que explica o seu prestígio junto do belo sexo, porque as mulheres sempre apreciaram os temperamentos fortes. Uma delas é a jovem Pandora Groovesnore, por quem o nosso herói se apaixonou em pleno Pacífico: «estás muito bonita! Fazes-me lembrar um tango de Arola que eu ouvia no cabaré Parda Flora, em Buenos Aires». Quanto a Tracy Eberhard, é uma mulher literalmente caída do céu: Corto encontrou-a numa ilha das Caraíbas e salvou-lhe a vida ao retirá-la dos destroços do avião despenhado. Foi também um desastre de aviação que uniu Corto a Marina Seminova, embora o marinheiro se tenha mostrado invulgarmente irritado nessa ocasião. Não era para menos: afinal, a duquesa havia mandado abater, quase desportivamente, o avião onde ele e o americano Jack Tippit viajavam. Mas talvez nenhuma mulher o tenha marcado tanto e tão profundamente como Louise Brookszowyc: é ela que salva a vida de Corto em Veneza e que, dois anos depois, motivará a sua partida atribulada para Buenos Aires. Estas e todas as outras companheiras de Corto Maltese são admiráveis, sedutoras e, tal como ele, carismáticas. Evidentemente, Pratt é um admirador declarado da metade mais sensível da humanidade: «um mundo sem mulheres seria uma coisa terrível!»
2005-04-21
Zazie dans le métro
«Experimentando a comida, Zazie declarou de cara que estava uma merda. Mas o tira, educado pela mãe numa sólida tradição de carne assada, a viúva, entendida em batatas fritas autênticas, e Gabriel, acostumado com os pratos estranhos servidos nas boates, aconselharam à menina que ficasse quieta, assumindo o silêncio covarde, que permite aos donos de restaurantes de terceira categoria corromper o gosto público no plano da política interna, e, no plano da política externa, falsificar, para estrangeiros, a magnífica herança que a cozinha francesa recebeu dos gauleses, a quem também devemos, aliás, como todos sabem, as calças compridas de boca larga, a industrialização dos barris e a arte não-figurativa.»
(in Raymond Queneau: Zazie no Metrô, tradução de Irène Monique Harlek Cubric, Rocco, Rio de Janeiro, 1985)
(in Raymond Queneau: Zazie no Metrô, tradução de Irène Monique Harlek Cubric, Rocco, Rio de Janeiro, 1985)
2005-04-20
Habemus Blogues
Alguns excelentes blogues que, benza-os Deus, são dos mais interessantes que tenho visto por aí: o enérgico Horas Mortas, o cinéfilo Lord Of the Movies e A Vida É Larga, do Jorge.
2005-04-19
Livros
Os editores ingleses têm o hábito saudável de condensar toda a produção literária de grandes autores num único volume. É fácil encontrar em qualquer livraria anglófona enormes camalhaços com as Complete Works of..., sempre a um preço excepcional. Cá em casa, a nossa estante zela cuidadosamente por alguns desses tesouros: por exemplo, as Complete Illustrated Works of Edgar Allan Poe, da Chancellor Press; a saga Hitchhiker, de Douglas Adams, no excelente The Ultimate Hitchhiker’s Guide, da Wings Books; e toda a ficção breve de Franz Kafka nas suas Complete Short Stories, da Vintage. As vantagens da condensação são evidentes: poupa dinheiro aos leitores, economiza espaço nas prateleiras e faculta aos estudiosos uma visão mais rigorosa da produção literária de um escritor. Mesmo assim e estranhamente, em Portugal ainda não existe entre as editoras este hábito de compilar. É pena. Estão todos distraídos ou será alguma manobra conspirativa para extorquir mais algum dinheirinho aos apreciadores de literatura?
2005-04-16
Filth
«O problema dela é que já há muito tempo que não tem uma boa foda. Isso é uma coisa que distorce sempre a perspectiva de uma mulher. Os Serviços Sociais deviam pagar umas massas a alguns desses garanhões no desemprego, que andam para aí todos chateados, para irem fazer a ronda e dar umas boas fodas a essas velhas todas. Assim, elas deixavam de sorver tantos recursos com todas aquelas doenças fingidas. Quando vou ao médico por causa da minha urticária e dos meus ataques de ansiedade, estão lá sempre montanhas de gajas velhas que me obrigam a esperar horas por causa das suas queixas banais.»
(in Irvine Welsh, Lixo, tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa, Quetzal Editores, Lisboa, 1993, p.33)
(in Irvine Welsh, Lixo, tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa, Quetzal Editores, Lisboa, 1993, p.33)
2005-04-15
2005-04-13
Edgar Pêra
O nosso cyneasta mais enérgiko, brylhante e alternatyvo já aderyu a estas koyzas dos blogues: vejam do ke se trata no Edgar Pêra Filmzz.
2005-04-09
Fátima Lopes
A estilista Fátima Lopes acha bem que se torturem animais para fazer casacos. É pena. Alguém deveria explicar à Lopes que a inteligência, a integridade e o civismo nunca saíram de moda.
2005-04-08
Indie Lisboa 2005
O Festival Indie Lisboa regressa para mais uma edição que será, seguramente, um grande êxito. Apesar de terem chumbado (e com toda a justiça, diga-se) o nosso filme O Porteiro, aqui ficam à mesma os meus parabéns e votos de boa sorte à organização.
2005-04-04
Walter Murch
«É completamente improvável que a montagem cinematográfica deva existir. [...] Quando paramos para pensar nisso, é espantoso, porque em toda a existência humana (e, provavelmente, já milhões de anos antes) nós e os nossos antepassados temos visto o mundo de forma contínua. Todas as manhãs abrimos os olhos e nas 16 horas seguintes - levantamo-nos, tomamos o pequeno-almoço, vestimo-nos, saímos - cada passo que damos, cada momento que vivemos é registado sem cortes: o que vemos é um único 'plano' de 16 horas. É como se retirássemos a tampa da objectiva e deixássemos a câmara a filmar 16 horas seguidas. Por conseguinte, não teria sido surpreendente se as primeiras experiências de montagem tivessem provocado alguma espécie de enjôo a quem quer que fosse submetido a elas. Isso teria sido perfeitamente razoável! Porque nada na nossa evolução alguma vez antecipou algo como uma transição instantânea de uma realidade visual em movimento para outra.
A solução, julgo eu, para compreender porque é que a montagem cinematográfica é não só possível como tremendamente eficaz está no cariz cinematográfico dos sonhos, mais do que na realidade acordada. As pessoas têm registado os seus sonhos já desde há muitos milhares de anos, muito antes da invenção do cinema, e todos eles têm em comum estas mudanças súbitas de perspectiva para perspectiva, de lugar para lugar e de tempo para tempo. Os sonhos não têm nenhuma da inércia da realidade física: 'eu estava no meio da selva e logo a seguir estava no topo de um icebergue' - isto pode ser um sonho, mas também pode ser cinema. E é cinema! Eu acredito que o mecanismo secreto que permite que o cinema funcione e tenha sobre nós o poder que tem, é o facto de termos passado, provavelmente desde há milhões de anos, oito horas por dia das nossas vidas num estado de sonho que é caracteristicamente cinematográfico e por isso estarmos completamente familiarizados com esta versão da realidade.»
(in Declan McGrath, Editing & Post-Production, Screencraft, Roto Vision, UK, 2001, pp. 37-40)
A solução, julgo eu, para compreender porque é que a montagem cinematográfica é não só possível como tremendamente eficaz está no cariz cinematográfico dos sonhos, mais do que na realidade acordada. As pessoas têm registado os seus sonhos já desde há muitos milhares de anos, muito antes da invenção do cinema, e todos eles têm em comum estas mudanças súbitas de perspectiva para perspectiva, de lugar para lugar e de tempo para tempo. Os sonhos não têm nenhuma da inércia da realidade física: 'eu estava no meio da selva e logo a seguir estava no topo de um icebergue' - isto pode ser um sonho, mas também pode ser cinema. E é cinema! Eu acredito que o mecanismo secreto que permite que o cinema funcione e tenha sobre nós o poder que tem, é o facto de termos passado, provavelmente desde há milhões de anos, oito horas por dia das nossas vidas num estado de sonho que é caracteristicamente cinematográfico e por isso estarmos completamente familiarizados com esta versão da realidade.»
(in Declan McGrath, Editing & Post-Production, Screencraft, Roto Vision, UK, 2001, pp. 37-40)
Os filhos de Sousa Mendes
Um dos factos mais fascinantes na vida de Aristides de Sousa Mendes é a fuga dos seus filhos para Portugal. O nosso cônsul em Bordéus foi, além do diplomata que salvou do Holocausto mais de 30.000 pessoas, o pai protector e exemplar de uma família numerosa: nada menos que oito filhos e quatro filhas, com idades entre os 8 e os 30 anos. Quando a guerra rebentou na Europa, como é que se poderia transportar toda esta família em segurança de Bordéus até Portugal? A solução estava num Ford familiar de 17 lugares, feito por encomenda e coloridamente baptizado de Expresso dos Montes Hermínios. Porém, aquela viagem de carro seria diferente de todas as outras: o Ministério dos Negócios Estrangeiros não a tinha autorizado e, se fossem descobertos pelas autoridades, o cônsul seria acusado de abandonar o posto. Mesmo assim, Sousa Mendes partiu com os filhos. Após a travessia da ponte internacional que ligava a cidade fronteiriça de Hendaye à sua congénere espanhola, Irún, encontraram um cenário desolador: a Espanha era um país destroçado por quase três anos de uma guerra civil fratricida e proliferavam carências de toda a espécie. Sousa Mendes queria parar tão poucas vezes quanto possível, mas um acidente perto de Salamanca obrigou-o a interromper a viagem: ao descer de uma colina, o Ford tombou de lado, resvalou na estrada e virou-se completamente. Felizmente, os ferimentos não eram graves. Seguiu-se uma série de encontros bizarros: primeiro, com uma limusina do corpo diplomático que lhes forneceu o estojo de primeiros socorros de que necessitavam; depois, com uma carrinha de freiras espanholas que perguntaram, ingenuamente, se estavam a reparar um pneu; e finalmente, com Doña Cármen Pólo y Martinez Valdés mais a sua jovem Carmencita, mulher e filha do Generalíssimo Franco! Após uma tarde de espera ao sol, veio ajuda e os filhos de Sousa Mendes chegaram sãos e salvos à aldeia de Cabanas de Viriato.
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