2004-10-27

Toque de classe

O melhor blogue que existe sobre cinema é o excelente Touch Of Evil e o seu criador chama-se Rui Silva.

2004-10-25

Morais Sarmento


O Ministro Morais Sarmento é, para os antropólogos e estudiosos da cultura, um objecto de estudo fascinante, pois reúne todos os defeitos do chamado homem moderno. Sarmento é seco, seguro de si, arrogante, presunçoso, convencido da sua boa fé e da sua inocência, regrado, agressivo, autoritário, egoísta, incapaz de compreender os outros, sedento de sucesso e um pouco megalómano. No debate parlamentar sobre a televisão, foi o que se viu, quando o Ministro alertou para as «perversidades» da «independência excessiva» da RTP e defendeu que deve ser o Governo a definir o modelo da sua programação, uma vez que é o Executivo que responde pelas decisões adoptadas na estação pública. Incoerências e inconstitucionalidades à parte, que competências ou legitimidade tem ele para vir agora falar de serviço público e interesse cultural? É que, excepção feita ao consumo de drogas confesso e à carreira de pugilista, não se lhe reconhece grande currículo na matéria.

Uma viagem com João Barrento

O Professor João Barrento é um senhor de barbas cinzentas, cordato e afável, a quem devemos as melhores traduções portuguesas que por aí andam da boa literatura alemã. Esta semana, tivemos o prazer, a sorte e a honra de poder ouvi-lo na Expolíngua Portugal, no Fórum Picoas de Lisboa. A conferência que aí proferiu, intitulada Viagem à memória de viagens - Imagens de Portugal em autores alemães contemporâneos, inscreveu-se na chamada imagologia: o estudo das imagens que os outros fazem de nós e nós deles. Durante uma hora cheia, Barrento foi um guia seguro num percurso pela obra e pensamento de alguns dos escritores alemães que o nosso País inspirou: Schneider, Fichte, Jünger, Weiss, Eich, Meyer-Clason, Helga Novak, o incontornável Grass, entre outros.

2004-10-15

Mais Marcelo

Ainda a propósito do caso Marcelo, há agora uma tendência extraordinária de opinião entre alguns blogues segundo a qual a vítima é o Ministro censor e não o comentador censurado. O raciocínio destas cabeças é pouco claro, mas parece resumir-se ao seguinte: que é perfeitamente aceitável que seja afastado um comentador, ouvido e respeitado por milhões de pessoas, apenas porque incomodou um Ministro; que é também normal que o mesmo Ministro, a ter razões de queixa, tenha recorrido a semelhante expediente e não aos tribunais; que Marcelo não pode comentar nada desacompanhado de um contraditor (coisa que, aliás, esses blogonautas não têm, tal como Santana Lopes não tinha nos seus tempos de opinador); e que incidentes como a censura de Marcelo, o bloqueio às activistas holandesas pró-aborto e o exílio dos bonecos da Contra-Informação da RTP para horários indecentes são apenas uma sucessão de coincidências inocentes. Bom senso para quê? Qualquer dia, pode ser que estes mesmos blogonautas se manifestem em solidariedade com os fascistas pela invasão da Etiópia ou com a Bruxa Má pelo envenenamento da Branca de Neve.

2004-10-12

Alberto João Jardim

Hoje, gostaria de aproveitar esta crónica (detesto o termo post, é tão impessoal!) para contar uma história pequena e rigorosamente verdadeira a propósito do nosso Alberto João Jardim. A ideia foi-me instigada por alguns comentários maldosos e injustos que se podem ler na blogosfera a respeito do Presidente madeirense, que pelos vistos muitos só conhecem das parangonas – nem sempre verdadeiras – dos nossos tablóides. Jornalistas, opinadores e intelectualidade do Continente gostam de falar, sempre em tom de altivez desdenhosa e cheios de superioridade moral, de um pequenito tirano malcriado, prepotente e beberrão e tal, mas será que as coisas são mesmo assim como dizem?

Tudo começou há um punhado de anos atrás, quando eu ainda era um advogado estagiário tímido, inexperiente e sobretudo jovem. Eu era o defensor de turno no Tribunal de Comarca do Funchal, quando me chegou subitamente às mãos um processo judicial curioso: o meu cliente (cujo nome não revelarei, por razões óbvias) era um homem humilde e de poucas posses e estava nessa tarde de tal modo nervoso que não dizia coisa com coisa. Não faz mal, esperamos pela audiência para que se esclareça tudo. Entra o juiz, começam os trabalhos e a surpresa é espantosa: do outro lado do litígio, estão nada mais nada menos que Alberto João Jardim e um seu colaborador (cujo nome também não revelarei, por razões igualmente óbvias)!

Na manhã seguinte, a minha estratégia é conseguir que os dois ilustres proponentes desistam da acção. Mas será possível fazê-lo num prazo exíguo de algumas horas? Telefono para a residência oficial do Governo e imaginem o espanto da voz do outro lado quando digo: «olhe, faz favor, queria falar com o Dr. Alberto João Jardim». Como eu nem sequer dispunha de um faxe, lá fui a correr para expor pessoalmente o caso aos chefes de gabinete, todos com cara de espanto face à audácia do jovem causídico. Durante a tarde, o suspense é insuportável. Felizmente, tudo acabará em bem: os queixosos acedem aos meus pedidos, o cliente é absolvido e o processo é resolvido da forma mais civilizada possível, como sempre sucede entre pessoas de bem. Surpreendidos? Afinal, talvez Jardim não seja o filho da mãe arrogante que alguns julgam…

Bem-vinda, Catherine Breillat!


Hoje, a cineasta Catherine Breillat visitou Lisboa e trouxe consigo mais um filme controverso: Anatomie de l'enfer, com Amira Casar e o ex-actor porno Rocco Siffredi. Goste-se ou não, todos temos de saudar as imagens audaciosas desta realizadora, para quem «a pornografia não existe» e com quem, no final da sessão, pudemos trocar algumas palavras bem simpáticas. Numa terra cada vez mais intolerante como é a nossa, a vinda de Breillat foi uma lufada de ar fresco.

2004-10-10

Algumas banalidades a propósito do caso Marcelo

Conheci pessoalmente Marcelo Rebelo de Sousa aquando da minha passagem pela Faculdade de Direito de Lisboa e guardo impressões ambíguas a respeito do multifacetado professor. Aqui, há que fazer distinções. O Marcelo-pessoa é um ser cordato, afável, educado e generoso, que se dá bem com toda a gente. O Marcelo-docente, sábio e íntegro, é unanimemente adorado por todos: não é por acaso que os alunos enchem todo o amplo Anfiteatro 1 da Faculdade durante as suas aulas teóricas. Já o Marcelo-comentador, apesar da extensão do seu saber, é demasiado comprometido para o meu gosto e até falho de algum bom senso: por exemplo, a respeito do escândalo da Casa Pia, foi sempre um apoiante declarado de Souto Moura (excepção feita ao escândalo das cassetes) e demasiado brando na apreciação dos dislates do juiz Rui Teixeira. Mesmo assim, sou daqueles que lamentam o seu afastamento da tribuna do Jornal Nacional da TVI.

E que se pode dizer a respeito deste caso Marcelo? Algumas conclusões foram tão óbvias e regurgitadas tantas vezes que já se converteram em banalidades: que não estamos apenas perante uma inocente questão interna na vida de uma empresa privada; que Santana Lopes deve um pedido de desculpas ao país; e que, ao contrário do que afirmou Luís Filipe Menezes, não houve nenhum exagero da parte de Marcelo, pois nenhuma outra saída restava a uma pessoa digna e livre. Se algum mérito tudo isto teve, terá sido apenas o de inspirar algumas das palavras mais eloquentes dos nossos melhores comentadores. Pacheco Pereira escreveu que «calar Marcelo seria um atentado efectivo à liberdade de expressão no seu conjunto e um péssimo sinal para a saúde da nossa democracia». Eduardo Prado Coelho afirmou que «não basta ser-se do partido do Governo, é preciso aparecer como porta-voz do pensamento do Governo. O que a médio prazo pode levar à esquizofrenia, dado que o Governo tem em si pensamentos diversos, e o próprio Santana Lopes pensa coisas diferentes no mesmo dia (o que mostra como é um espaço de liberdade e pluralismo)». Na blogosfera, podemos ler outras opiniões acertadas aqui, aqui e aqui.

2004-10-08

O excesso de poderes do Ministério Público

Uma das coisas mais irritantes no actual Procurador-Geral da República, Souto Moura, é a sua mania de falar por enigmas. Souto Moura, a Esfinge, gosta de falar à Imprensa e de aparecer, mas sempre que o faz, usa uma linguagem tão rebuscada e inacessível que faria empalidecer de espanto o mais hermético dos alquimistas. Talvez porque se não fosse assim, ficaria à vista de toda a gente o indivíduo arrogante, prepotente e vaidoso que ele na realidade é. Foi o que sucedeu aquando da sessão comemorativa (?) dos 25 anos do estatuto do Ministério Público, a propósito das críticas movidas pelo Presidente Jorge Sampaio.

As declarações de Sampaio reavivaram a velha polémica do excesso de poderes do Ministério Público em Portugal: após criticar o corporativismo dos agentes da justiça (todos, sem excepção), que «esquecem, com demasiada frequência, a comunidade de valores essenciais que lhes cabe promover», o Presidente acrescentou que «o último ano veio evidenciar como é frágil a nossa cultura de direitos fundamentais». E que teve Souto Moura a dizer a este respeito? Como é do seu timbre, a Esfinge mostrou-se avessa a tudo o que seja mudança, pois «devemos preservar esta estrutura de que fomos pioneiros». Acrescentou mesmo que as «democracias inteligentes do centro da Europa procuram o nosso modelo», pelo que devemos concluir que as democracias que não seguem o dito modelo, como as anglo-saxónicas, são estúpidas!

Na sua concepção tradicional, o Ministério Público era um mero departamento do poder executivo, hierarquicamente subordinado ao governo; os seus membros não eram por isso considerados como magistrados equiparados aos juízes ou magistrados judiciais, mas sim como agentes administrativos equiparados no essencial aos funcionários públicos; não ocupava um lugar destacado no organograma do sistema judicial; não havia uma carreira privativa dos seus agentes; o seu dirigente máximo, o Procurador-Geral da República, não possuía um estatuto especial ou notoriedade pública, pois era apenas um dos altos funcionários do Ministério da Justiça; enfim, não gozava de autonomia face ao governo e os seus agentes formavam uma hierarquia administrativa dirigida pelo Procurador-Geral, que por sua vez dependia do Ministro da Justiça.

Com a Constituição de 1976, o legislador reagiu contra os excessos de centralização e concentração de poderes praticados pela Ditadura e, com isso, o Ministério Público veio a conquistar um conjunto de novos poderes. A expansão desses poderes foi, porém, desmesurada. No essencial, a Constituição consagrou-lhe um capítulo próprio; equiparou-o à magistratura judicial, atribuindo-lhe estatuto próprio e chamando aos seus agentes «magistrados»; estabeleceu que a nomeação, promoção e colocação destes magistrados, bem como a acção disciplinar sobre eles, deixou de pertencer ao governo e passou a ser da competência da Procuradoria-Geral da República, num claro regime de auto-governo profissional. A legislação ordinária foi ainda mais longe e conferiu-lhe um regime de autonomia em relação aos órgãos de poder central, regional e local; desvinculou-o da obediência hierárquica ao governo; construiu uma carreira de magistrados paralela à magistratura judicial e dela independente; e permitiu-lhe exercer funções próprias do poder judicial, bem como passar a controlar, em substituição do Ministro da Justiça, a Polícia Judiciária.

Estas alterações suscitam um número infindável de problemas, interrogações e perplexidades, sobretudo no campo jurídico-penal – que não é o domínio exclusivo da actuação do Ministério Público, mas é a sua face mais visível. Serão referidos dois pontos em particular: a invasão da esfera das atribuições dos tribunais; e a assunção de poderes de investigação criminal.

Quanto à invasão de atribuições dos tribunais, a inconstitucionalidade é flagrante: porque viola o princípio da separação de poderes; porque origina grandes promiscuidades entre juízes e procuradores, que na prática discutem e decidem entre si os processos, no segredo dos respectivos gabinetes e sem a presença dos advogados («uma mão lava a outra»); porque gera desigualdades tremendas entre acusação e defesa, num processo penal que deveria ser pautado pela igualdade de armas e lealdade. Tão flagrante é essa ingerência, que a lei chega a mesmo a conceder ao Ministério Público a possibilidade de decidir na determinação da medida concreta das penas, que deveria ser o último reduto dos poderes cometidos aos juízes: o Código de Processo Penal atribui-lhe a possibilidade de remeter determinados processos-crimes para julgamento por um tribunal singular, se entender que não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos.

Este estado de coisas tem produzido resultados graves ao nível da tutela dos direitos fundamentais, como salientou Sampaio na sua intervenção. A presunção de inocência cai por terra e na prática inverte-se o ónus da prova: uma acusação equivale a uma condenação e, em vez de caber ao Estado a incumbência de provar culpas, passa a ser o arguido quem deve demonstrar a sua inocência. E ai daquele que não consiga comprovar, com assinaturas reconhecidas notarialmente e tudo, todos os passos que deu em todos os dias do ano, pois bastará um procurador sem escrúpulos e um punhado de depoimentos acusadores para encarcerá-lo durante mais de um ano e sem direito a julgamento – lembram-se de Carlos Cruz?

A assunção pelo Ministério Público de poderes de investigação criminal e a colocação da Polícia Judiciária sob o seu controlo e fiscalização têm também gerado inúmeros problemas: ineficiência na perseguição dos criminosos, confusão orgânica, sobreposição funcional e conflitos permanentes. No processo da Casa Pia, a descoordenação foi evidente. Antes da escandalosa detenção de Carlos Cruz, a Procuradoria foi avisada pela Polícia Judiciária da fragilidade das provas acusatórias. Um relatório de Artur Pereira, director da Directoria de Lisboa da PJ, referiu então a exiguidade de provas e ausência de elementos básicos em qualquer investigação, nomeadamente «as localizações das residências onde os abusos terão sido cometidos, as identificações dos seus proprietários ou locatários, a existência de relações interpessoais comprovadas entre os arguidos, a falta de realização […] de buscas domiciliárias e em escritórios dos visados, a recolha e tratamento da facturação dos seus telemóveis e a análise dos próprios telemóveis» (in Jornal de Notícias de 27.06.2004, pág. 8). Não obstante, o procurador João Guerra afastou qualquer intervenção da Judiciária, no que foi apoiado por Souto Moura.

2004-10-05

Werther

O realizador Max Ophuls é uma das personalidades mais reverenciadas pelos cinéfilos. Todos reconhecem a forma generosa como o criador de Lola Montès enriqueceu o cinema com a sua sabedoria, inteligência viva e sensibilidade cosmopolita. Porém, nem sempre foi um cineasta consensual: apesar da admiração entusiástica que desde cedo granjeou junto dos cinéfilos dos Cahiers, Ophuls é o exemplo acabado de criador cujo merecido reconhecimento só adveio após a sua morte. Falou-se demasiadas vezes de um cinema pretensamente antiquado e pueril, sem que se tivesse compreendido que a sua obra não abordava senão temas essenciais e intemporais: o amor, o prazer, o desejo. Ophuls lamentou muito particularmente a impaciência estética do grande público consumidor de cinema, o mesmo que visiona filmes como quem traz um cigarro à boca, «sem saber já se o fumam ou guardam enquanto falam».

O seu percurso biográfico foi igualmente atribulado: eterno judeu errante, Max Ophuls foi vítima da intolerância e viu-se muitas vezes constrangido a partir, tendo por isso repartido a sua vida pelos destinos mais diversos, como a Alemanha, a França ou os Estados Unidos. Os anos foram todavia generosos com Ophuls e o mundo parece finalmente ter redescoberto a obra e talento deste cineasta do movimento. A seu respeito, é frequentemente reaproveitada uma afirmação de Goethe referente a Mozart: «existe em todas as suas composições uma força criativa que tem atravessado sucessivas gerações e que não parece dever ficar esgotada num futuro próximo».

Um dos Autores por quem Ophuls sempre nutriu uma admiração profunda foi precisamente Johann Wolfgang Goethe, pelo que a decisão de filmar a sua obra-prima A Paixão do jovem Werther (Die Leiden des jungen Werther, 1774) é pouco surpreendente, mas nem por isso menos arrojada. Com efeito, este Werther assinala o nascimento do romance moderno na Alemanha e é, juntamente com Fausto, a obra mais lida de Goethe. O efeito que produziu no seu tempo foi inimaginável: se os leitores anónimos acolheram Werther com um entusiasmo febril, já muitos intelectuais e teólogos ortodoxos difamaram a obra por causa do seu pretenso enaltecimento do suicídio como «engodo de Satanás» e gritaram pelo censor. Seguiu-se uma série infindável de imitações, contrafacções e paródias.

A publicação do livro extravasou mesmo a esfera do estritamente literário para originar o que se designou como wertherismo, para uns uma moda e para outros uma verdadeira praga: copiava-se a indumentária de Werther, bebia-se por chávenas de porcelana decoradas com cenas idílicas retiradas do romance ou (pasme-se!) cometia-se suicídio à imagem do desafortunado protagonista. De facto, deu-se um considerável número de suicídios entre os leitores do romance, o que levou Goethe, aquando da segunda edição (1775), a antepor ao livro a advertência admoestadora: «Sê um homem, e não me sigas!». A influência do romance não se circunscreveu ao século XVIII e Werther perdurou como um desafio para as gerações vindouras, tendo a sua forma e conteúdo inspirado muitos autores dos séculos XIX e XX.

Werther foi também várias vezes adaptado ao cinema. A versão de Ophuls data de 1938 e é um prodígio de sensibilidade e inteligência: Goethe teria seguramente apreciado esta magnífica obra, que enverga com orgulho as marcas do talento do seu realizador! Um dos momentos mais inesquecíveis é a célebre sequência em que Lotte descobre e lê os versos apaixonados de Werther. O cauteloso travelling é um dos mais belos e expressivos de sempre e sublinha o carácter contido, não sensual da relação dos dois protagonistas, que nasce e existe através de um poema de amor. A subsequente recusa de Werther em beijar a mulher que diz amar sublinha esta singularidade do relacionamento entre ambos, assim como a ambivalência do comportamento do protagonista: se por um lado, Werther sabe argumentar racionalmente como na discussão sobre suicídio, por outro lado é muitas vezes emocional, excessivo e sentimental, e bem menos sereno que a sua Lotte, que pensa em termos de planeamento lógico mais do que ele e que faz a escolha mais racional para casar. É esta natureza mista do seu carácter que faz de Werther um protagonista tão fascinante, intrigante e invulgar.

Avelino Ferreira Torres

Um dos maiores atractivos da deliciosamente decadente Quinta das Celebridades da TVI é a presença de Avelino Ferreira Torres. Gosto muito do Presidente do Marco pela sua frontalidade, pela sua genuinidade e pelos serviços que prestou ao Povo da terra que o elegeu e acarinha. Mais: a sua aceitação do convite da TVI, ao arrepio de todos os «parece mal», demonstra sentido de humor e este revela inteligência. Quanto às tropelias e problemas judiciais mais recentes de Avelino, não fizeram nada para beliscar esta minha admiração, bem pelo contrário. Aliás, uma das suas afirmações mais argutas foi proferida precisamente à porta do tribunal: questionado por um jornalista sobre onde estava à data dos alegados crimes, o autarca respondeu a semelhante atrevimento da forma mais diplomática possível ao afirmar «olhe, estive na casa de banho».

2004-10-04

I'll See You In My Dreams


Os dicionários definem zombie como um cadáver ao qual se atribui a aparência de vida através de feitiçaria. A origem destes zombies está no culto haitiano do vodu, que mistura ritos e crenças africanas com práticas rituais católicas: a esmagadora maioria da população do Haiti pratica ainda hoje as duas religiões sem que encontre nisso qualquer oposição. Humfu é o templo vodu, sede de todas as cerimónias. Os sacerdotes são Hungan (homem) e Mambo (mulher), Hunsi são as esposas de deus, auxiliares sagradas dos Loa (deuses e espíritos). Os Hungenikon (rainha do coro) encarregam-se dos cantos litúrgicos. La-place é o mestre de cerimónias, la confiance é confidente e mão direita de Hungan. Os fiéis são pititt-feuilles (folhinhas), pessoas tratadas no Humfu, e pittit-caye (folhas de casa). Poder-se-iam acrescentar ainda os Zombi e Bocor (curandeiro e feiticeiro).

A finalidade primacial das cerimónias de vodu é a possessão de uma pessoa por um Loa, bom ou mau: «Loa monta a cavalo» (é a expressão habitual para designar este fenómeno) e faz o que quer da pessoa que encarne. Ao começar a cerimónia, o sacerdote pinta o seu rosto de branco utilizando uma mistura de terra de cemitério e cinzas de ossos humanos. O seu propósito é enviar os mortos contra um qualquer inimigo. Espalhar o pó à porta da casa da vítima ou num caminho que costume atravessar será suficiente para provocar a sua paralisia ou morte. Já a criação de um zombie exige a deslocação da alma. A alma, segundo a religião vodu é composta de duas entidades: o gross bon-ange e o ti bon-ange (o grande e o pequeno anjos bons). O primeiro é a alma essencial de uma pessoa que forma o seu carácter, enquanto que o segundo forma a sua consciência. Durante a possessão, a alma é deslocada. Numa possessão normal, o gross bon-ange será restaurado pelo sacerdote, mas se não o for, a alma deslocada poderá cair em mãos malignas e daí resultar a criação de um zombie.

As populações haitianas levam o seu vodu e a criação de zombies muito a sério. A derrota do exército napoleónico pelos escravos africanos em 1801 é explicada por muitos pelas práticas do vodu e todas as tentativas da Igreja Católica para erradicar o «perigo sincretista» fracassaram. Ainda hoje, o artigo 246º do Código Penal Haitiano dispõe que «é também considerado intenção de matar o uso de substâncias mediante as quais a pessoa não é morta mas reduzida a um estado de letargia, mais ou menos prolongada, independentemente do modo como as substâncias foram administradas ou quais foram os seus resultados posteriores. Se após o estado de letargia, a pessoa for enterrada então as tentativas serão consideradas homicídio». Ainda mais explícito é o artigo 249º que determina que «será também considerada tentativa de homicídio o uso de drogas, hipnose ou qualquer outra prática oculta que produza coma letárgico ou sono sem vida; e se essa pessoa tiver sido enterrada será considerado homicídio, qualquer que seja o resultado que advenha posteriormente».

A prática do vodu tem fascinado os ocidentais e suscitou um número incontável de estudos. Uma obra particularmente influente foi o livro The Magic Island, de William Seabrook, que inspirou os irmãos Halperin mais o seu filme White Zombie (1932). A figura de Seabrook é quase tão misteriosa e fascinante quanto as cerimónias de vodu que foram objecto das suas investigações: diz-se mesmo que participou nessas cerimónias e que terá comido carne humana, mas qualquer que seja a verdade, levou-a consigo para o túmulo após o seu suicídio em 1945. Mais recentemente, uma reportagem de Geraldo Rivera pôde mostrar ao mundo os segredos dos rituais vodu na selva haitiana. As vítimas eram esfregadas com uma poção derivada de um peixe tropical, que as colocava num transe de quase-morte. O médico do programa descobriu que a poção continha uma droga que era também empregue para descontrair o corpo durante intervenções cirúrgicas. As vítimas eram enterradas vivas durante várias horas ou mesmo um dia e depois desenterradas. Muitas estavam ainda vivas, mas padeciam de graves lesões cerebrais devido à falta de oxigénio na sepultura. É aqui que encontramos a origem do característico olhar vazio dos zombies e a sua estupidez.

Este fascínio mórbido chegou rapidamente ao cinema. Os filmes White Zombie e I Walked With a Zombie (1943), do grande Jacques Tourneur, são considerados os pioneiros deste sub-género, mas é ao americano George A. Romero mais a sua grandiosa trilogia dos mortos que devemos o moderno filme de zombies. Tudo começou em 1968, com um pequeno filme a preto e branco chamado A Noite dos Mortos Vivos. A violência gráfica das suas imagens era algo de nunca visto e mudaria para sempre a feição do cinema de terror: pela primeira vez, o público confrontava-se com monstros que devoravam vítimas humanas, crianças que cometiam matricídio, pessoas que eram incendiadas vivas e ninguém saía dali com vida. O terror continuou com A Maldição dos Mortos Vivos (1979) e a sua guerra declarada ao consumismo desenfreado: a acção tem lugar num grande centro comercial cercado por zombies que buscam aí a vacuidade e o conforto das suas vidas passadas. O filme Day Of The Dead (1985) fala-nos de uma humanidade já inteiramente subjugada ao domínio dos zombies e concluiu brilhantemente a série.

O impacto dos filmes de Romero foi tremendo e o entusiasmo pelos zombies alastrou como uma epidemia pelo mundo inteiro. A Maldição dos Mortos Vivos, co-produzido por Dario Argento, foi um filme particularmente influente em Itália e aí inspirou grandes cineastas como Lucio Fulchi, que soube aproveitar admiravelmente o lado grotesco de Romero. Em Espanha, Amando de Ossorio, com os seus cavaleiros templários, e Jesus Franco são nomes incontornáveis, mas o grande filme zombie de referência é ainda e sempre No Profanar El Sueno De Los Muertos (1974), de Jorge Grau. O cinema francês deu-nos Jean Rollin e os neozelandeses o filme Death Warmed Up (1985) de David Blyth. Os cineastas asiáticos têm sido, em contrapartida, pouco receptivos ao cinema zombie, excepção feita ao célebre A Chinese Ghost Story (1987), de Ching Sju Tung. Mais recentemente, os ingleses fizeram Shaun Of The Dead (2004), unanimemente aplaudido pela crítica internacional.

Graças ao excelente filme I’ll See You In My Dreams (2003), escrito e produzido por Filipe Melo, o cinema português pode agora juntar-se a esta lista prestigiosa. A história é simples e muito bem contada. Numa aldeia inexplicavelmente assolada pela praga dos zombies, o pobre e honesto Lúcio (Adelino Tavares) parece ser a única pessoa capaz de lhes fazer frente. Mas os problemas de Lúcio não acabam aqui: na cave da sua casa, esconde Ana (Sofia Aparício), sua adorada mulher, agora transformada num demónio violento e disforme. O desafortunado protagonista vai afogando estas mágoas no bar local, onde os estranhos habitantes da povoação buscam refúgio. É aqui que um padre zarolho (o sempre excelente Rui Unas) vem a ser abatido sem misericórdia, após o seu contágio pelos zombies. E é também aí que, numa noite, Lúcio redescobre o amor junto de Nancy (São José Correia). Porém, a relação de ambos é ameaçada pelas medonhas criaturas e pelos ciúmes mortais da sua mulher. Quando Lúcio se vê forçado a confrontar os zombies por uma última vez, tudo terminará da forma mais trágica e surpreendente possível!

As originalidades deste argumento de Filipe Melo, Ivan Vivas e Miguel Angél Vivas começam com a estrutura. Os filmes de terror dividem-se normalmente em três actos que documentam a queda e reorganização de uma determinada ordem social. O primeiro acto fornece um retrato da ordem cessante e descreve-nos uma comunidade ainda em paz, que tanto pode ser uma cidade normal (Halloween, Gremlins) como um grupo isolado (Veio do Outro Mundo, Sexta-Feira 13, Deliverance), ou mesmo uma pessoa singular (Carrie, The Vanishing). O segundo acto testemunha a chegada de um monstro que traz consigo o caos, a violência e a destruição da ordem vigente. O terceiro e último acto ocupa-se da resolução dos conflitos e da instauração de uma nova ordem, que pode ser idêntica ou não à que existia no início do filme; claro que a nova ordem também não tem de ser necessariamente melhor que a precedente, pois é o seu processo de alteração e reconstrução que define e caracteriza o género de terror. No caso de I’ll See You In My Dreams, as coisas começam pelo meio, pois os monstros já existem e estão embrenhados nos hábitos e na cultura dos aldeões: na sua primeira fala em off, o protagonista queixa-se do isolamento, do quotidiano entediante e da «merda dos zombies».

Todo o filme de terror necessita de um monstro e quanto mais medonho, melhor. No caso de I’ll See You In My Dreams, os zombies de Filipe Melo são particularmente assustadores: porque o autor sabe bem que o medo mais poderoso é o do desconhecido, em nenhum momento nos é revelada a origem dos bichos. Inteligentemente, o argumentista soube manter a boca calada e poupar o espectador às enfadonhas explicações da praxe, que são geralmente de quatro ordens: naturais, sobrenaturais, psicológicas ou científicas.

As causas naturais põem em relevo a pequenez e a insignificância do ser humano perante as forças da Natureza: a erupção vulcânica de Volcano, o tubarão assassino de Jaws ou o terramoto de Earthquake. Os monstros sobrenaturais, como os Cenobitas de Clive Barker, têm um apelo normalmente limitado, pois requerem do espectador um certo grau de imaginação e uma capacidade de alheamento da vida e são relativamente poucos os que estão suficientemente livres da anestesia da rotina diária para poder responder aos subtis chamamentos do exterior. As causas psicológicas são geralmente as mais assustadoras de todas, pois radicam inteiramente no mundo real: os assassinos psicopatas de Psycho ou O Massacre do Texas. As causas científicas surgem da própria actuação humana: Dr Jekyll, Dr X, Fu Manchu ou Professor Quatermass encarnam os perigos da ciência sem ética. Nada disto surge em I’ll See You In My Dreams, que conserva assim intocado todo o seu mistério e fascínio.

O primeiro filme de terror português é já um fulgurante sucesso internacional e veio desenterrar novas perspectivas de evolução para um sub-género actualmente em crise. Enquanto que muitos dos novos realizadores optaram, sem grande sucesso, por uma abordagem mais sisuda e têm feito dos seus filmes de zombies o retrato de uma sociedade decadente e corrupta, Filipe Melo prefere o humor desbragado de obras como O Soro Maléfico (1985), O Regresso dos Mortos Vivos (1985) ou A Morte Chega de Madrugada (1987). O seu I’ll See You In My Dreams é uma pequena maravilha que aterroriza e diverte como poucos, apesar das limitações financeiras que atormentaram a sua produção. Agora, imaginem só o filme que Filipe Melo faria se tivesse ao seu dispor um orçamento decente!

António Cartaxo

Era só para dizer que o nosso António Cartaxo é um dos comunicadores mais notáveis que temos. A extensão do seu saber sobre música, a sua capacidade de síntese e o seu sentido de humor fazem dele uma das personalidades da rádio que mais admiro. Agora, os apreciadores de música podem ouvir as suas crónicas e deliciar-se com as suas magníficas histórias todos os dias na Antena 2. Obrigado, António Cartaxo!