2004-06-08

Woyzeck


O drama Woyzeck (1836), que nos conta a história desafortunada de um soldado vitimado pela loucura e pela miséria, é a obra mais fascinante, misteriosa e aclamada do alemão Georg Büchner. Nem sempre foi, todavia, um texto consensual: como geralmente sucede com as obras grandiosas e profundamente inovadoras, Woyzeck foi durante muito tempo um texto incompreendido e injustiçado. Mesmo o próprio Ludwig Büchner, que organizou em 1850 uma primeira edição dos escritos do irmão Georg, deixou Woyzeck de fora, por não conseguir decidir-se a publicar um texto em muitos aspectos escandaloso para o gosto da época. A primeira edição integral surge apenas em 1878 na revista berlinense Mehr Licht!, por mão do escritor Karl Emil Franzos. A estreia em palco teria lugar somente em 8 de Novembro de 1913, no Residenztheater de Munique, na versão estabelecida por Franzos.

À consagração tardia de Woyzeck também não serão alheias as sucessivas vicissitudes de que o texto original foi objecto. A morte prematura de Georg Büchner em 19 de Fevereiro de 1837, quando contava apenas 24 anos mal feitos, impediu-o de concluir o texto, pelo que tudo o que restou do seu Woyzeck foi um aglomerado de páginas manuscritas, dificilmente legíveis, não numeradas nem ordenadas. Só a partir da década de 1920 é que são levadas a cabo tentativas profundas de adequação do texto dramático, sem que todavia alguma vez se tenha chegado a uma versão que se possa com segurança rotular de definitiva. Por tudo isto, melhor seria que falássemos de Woyzeck como não um, mas vários textos, com diferentes sequências dramáticas e diferente aproveitamento do material legado por Büchner.

Relativamente à forma, Woyzeck é um drama inovador, no qual não encontramos a tradicional divisão em actos e cenas. Ao invés, o que temos é uma sucessão de quadros com grande autonomia estrutural, levando a uma nítida dispersão da acção, do tempo e do espaço dramáticos. Fala-se por isso deste Woyzeck como o paradigma do drama de forma aberta, um tipo dramático regido pela lógica da dispersão e da fragmentação, em oposição ao tipo clássico de forma fechada, regido por um conceito de unidade e totalidade. Esta estrutura de mosaico, em que os pequenos quadros dão uma visão de conjunto, havia sido já utilizada no terceiro quartel do século XVIII por Goethe (primeira versão de Fausto) e Lenz (Os Soldados) e ecoa a chamada técnica de Stationendrama, que já só representa acção em blocos isolados e não numa sequência contínua.

Nesta medida, não encontramos em Woyzeck o artifício da Personenkette, isto é, da ligação entre as cenas pela permanência em palco de pelo menos uma personagem. Falta também uma cena a que possamos atribuir uma função de exposição, pois inexiste aqui qualquer sequência inicial que apresente os antecedentes da acção que vai decorrer perante os olhos do espectador, caracterizando as personagens e fornecendo todas as informações prévias necessárias à produção da ficção. Na edição de Lothar Bornscheuer, por exemplo, a peça inicia-se abruptamente com a cena do corte de vimes por Woyzeck e Andres, que nos introduz de imediato no mundo perturbado e agoirento do protagonista. Enfim, inexiste um desenlace claro: cada edição de Woyzeck aventa o seu próprio final, como a morte por afogamento do protagonista ou a sua condenação judicial; seja como for, estamos aqui no puro reino das conjecturas pois sabemos que Büchner não chegou a concluir esta sua obra.

A propósito de Woyzeck e de fragmentos, uma reflexão muito interessante, que relaciona os mundos do teatro e da banda desenhada, é-nos proposta por João Paulo Cotrim:

«É, aliás, revelador de sentidos que tenha sido escolhido para argumento um texto fragmentado [Woyzeck]. A banda desenhada é, por condição, fragmentária. Põe em sequência momentos (mais ainda quando as histórias nos eram reveladas em continuação), pedaços de movimento, expressões, restos de gesto. Relaciona tudo, muitas vezes sugerindo, outras vezes despertando memórias visuais mas sem nunca destruir a unidade de cada partícula. Um pouco como a luz, que é em simultâneo onda e conjunto de partículas, um verdadeiro colar de pérolas. Esta arte da síntese (num pictograma ou num ícone) é notável até no facto de um nome – banda desenhada – se ter tornado sigla – bd – e, por coincidência, sobejamente gráfica.»

Também o tempo e o espaço de Woyzeck não são lineares. Embora o arco temporal da acção não possa ser muito grande, não temos aqui qualquer noção de continuidade. O espaço reparte-se, por sua vez, pelos ambientes naturais e urbanos, além do que não se trata de mero bastidor neutro ou meramente decorativo, antes comunga do acontecer dramático e do estado de espírito das personagens.

Este carácter aberto e fragmentado não significa contudo que o desenvolvimento da acção seja totalmente desgarrado ou incoerente. A esta estrutura fraccionada contrapõe-se uma série de processos construtivos que visam assegurar a coesão do todo dramático. Pense-se na concentração do drama em torno da figura do soldado Woyzeck, o que é desde logo um poderoso factor de unificação. Pense-se também na rede de motivos ou cadeias metafóricas que atravessam todo o texto: o movimento descendente, o simbolismo das cores, a oposição frio / calor, o motivo do esfaqueamento, as imagens apocalípticas e silêncio do mundo ou o motivo «immer zu, immer zu». Também apontam no sentido da coesão dramática os chamados pontos de integração, os quais consistem em momentos de comentário da acção à semelhança dos coros das tragédias gregas: pense-se no sermão do aprendiz na taberna ou no conto da avó, verdadeira parábola do destino de Woyzeck.

A novidade do drama é não apenas formal, mas também – e sobretudo – temática. A grande inovação do texto de Büchner está na sua tónica social, que fez de Woyzeck o modelo do novo teatro realista-naturalista de base social. Pela primeira vez na história do drama alemão, as figuras centrais da peça não saíram da burguesia ou das classes mais favorecidas, mas sim do Povo, tendo Büchner buscado inspiração em casos criminais verdadeiros acontecidos em meios pobres, entre os quais o assassínio de Johanna Christiane Woost por Johann Christian Woyzeck a 21 de Junho de 1821, em Leipzig, que suscitou enorme polémica no seu tempo.

A simpatia de Büchner pelas carências e pretensões das classes mais desfavorecidas é manifesta. A cena de abertura é expressiva, ao mostrar as personagens entregues a um trabalho árduo e manual, do qual depende em parte a sua subsistência – uma situação perfeitamente atípica nos dramas de então. Ademais, só as personagens de condição social modesta são merecedoras de um nome: Woyzeck, Marie, Andres, Margareth. Já as personagens de condição elevada são referidas apenas pelos seus postos hierárquicos ou pela função que ocupam na sociedade: Hauptmann, Doktor, Tambourmajor. A isto, acresce ainda a caracterização assumidamente satírica e unidimensional destes representantes das classes dominantes: por exemplo, a figura do médico, não só indiferente ao sofrimento de Woyzeck como também em boa medida causador dos seus males, condensa uma crítica implacável às pretensões de racionalidade científica; também o capitão atesta a sua superioridade ridicularizando Woyzeck e achincalhando-o na sua dignidade.

Nunca antes de Büchner o drama havia concedido um lugar central a alguém como Woyzeck, um pobre diabo que nem sequer é dono do seu próprio corpo. O conceito tradicional de herói dramático não pode aplicar-se a este barbeiro e soldado que se deixa submeter a toda a espécie de humilhações pelos seus superiores: temos aqui, isso sim, um anti-herói, um protagonista cujas características, comportamento e linguagem o definem como completamente marginal à sociedade. Será necessário esperar muito tempo, até ao surgimento da era modernista, para que possamos assistir ao ressurgimento deste tipo de personagem no universo literário alemão.

A questão da culpa trágica não pode por isso ser posta relativamente a este drama e a este protagonista. Inexiste aqui qualquer espécie de culpa ou queda em desgraça. Woyzeck não pode cair, porque está sempre no plano mais baixo da existência e porque lhe faltam em absoluto as condições de soberania e personalidade essenciais aos heróis das tragédias. Quando inicia o drama, já há muito que a semente da destruição de Woyzeck havia germinado.

4 comentários:

JP Cotrim disse...

Belo texto para tema perturbador. Obrigado pela citação.

Flávio disse...

Não haja dúvida que este é um mundo pequeno e que estamos, verdadeiramente, na aldeia global. Eu é que agradeço o Vosso magnífico álbum sobre a Exposição Woyzeck, cuja leitura recomendo vivamente a todos quantos se interessem por teatro, literatura ou bd. Aqui fica a referência completa da citação: João Paulo Cotrim, 'Colar de Pérolas', in 'Exposição Woyzeck: Bandas Desenhadas de Sylvain Victor, Yvan Alagbé e Olivier Marbouef a partir da peça de Georg Büchner', Bedeteca de Lisboa, Lisboa, Julho de 1996.

JP Cotrim disse...

Chegaste a ver a exposição? O trabalho dos três autores da agora Freok (http://www.fremok.org/) era excelente a todos os níveis, expositivo também. Lemo-nos por aqui (http://assocideias.blogspot.com/)?

Unknown disse...

Conheci "WOYZECK", em filme interpretado pelo incrível Klaus Kinski, sob a direção de Werner Herzorg. O ator, cônscio e perfeitamente integrado no papel que representa se desnuda de qualquer indicio de vaidade pela celebridade que carregou durante toda a sua longa filmografia e interpreta com corpo e alma o papel central do desajeitado soldado. Cena inesquecível: no final do filme, após o assassinato de Marie e ao som de um movimento musical lento de um concerto para oboé, não sei se de Mozart ou Albinonni, fixa no espaço um olhar misto de horror, surpresa e loucura. São exatos 2 minutos e meio em que nada fala, deixando a sua fisionomia transmitir para o cinéfilo toda a carga do seu terrível drama.