2004-12-27
Suspeita
Parece que Alfred Hitchcock nunca gostou muito do final feliz do seu filme Suspeita (1941), com Cary Grant e Joan Fontaine. O romance original Before the Fact, do inglês Anthony Berkeley Cox (sob o pseudónimo de Francis Iles), era bem mais pessimista e contava a história bizarra de uma mulher tão fanaticamente apaixonada pelo marido, que vivia com ele mesmo sabendo que era um burlão, um engatatão e um homicida. Ao descobrir não só que está grávida dele mas também que ele planeia matá-la, a protagonista resolve suicidar-se e bebe o copo de leite envenenado que o marido lhe tinha deixado. Hitchcock apreciou sobretudo a abordagem psicológica da obsessão e da morte e queria, em conformidade com o texto original, revelar no final do filme que o seu protagonista era na realidade um assassino.
Os produtores, menos ousados, levaram as mãos à cabeça e disseram logo que não a esse final, entre outras razões porque era impensável que o simpático Cary Grant interpretasse um homicida. A reputação de Grant era a de um galanteador alto, divertido e sofisticado e não a de um intérprete particularmente dotado ou profundo. Como a grande Pauline Kael escreveria a seu respeito, «não queremos que ele seja intenso, apenas lhe pedimos que seja subtil, elegante e nos faça rir». O próprio Grant, lúcido até à medula, estava plenamente consciente dessas suas limitações e sabia que jamais seria credível na pele do assassino que Hitch pretendia.
O processo de selecção de um final mais apropriado viria a ser um parto longo e doloroso. Quando as filmagens começaram em 10 de Fevereiro de 1941, ninguém fazia ainda ideia de como é que seria o desenlace do filme. Isto não só era completamente estranho ao método de trabalho de Hitch, como também lançou os actores na confusão mais absoluta, pois nenhuma cena ou fala tinha um propósito certo. Pela primeira vez em muitos anos, Hitchcock adoeceu e a rodagem teve que ser suspensa durante várias semanas. O realizador regressava sempre exausto e deprimido ao estúdio e os seus colaboradores queixavam-se do seu desinteresse. O azedume foi tal que a 18 de Abril chegou-se mesmo a falar do cancelamento do filme.
Durante todo este tempo, Joan Fontaine e Alma Reville trabalharam fervorosamente em vários finais. Uma das possibilidades era que Cary Grant, num gesto de inusitado heroísmo, ingressasse na Royal Air Force e assim se redimisse dos seus crimes. De acordo com esta versão, felizmente abandonada a tempo, Grant deveria morrer num acto de sacrifício e patriotismo, o que contornava o problema do homicídio e suicídio no final. Em início de Maio, os produtores chegaram à conclusão que para compensar os custos substanciais e inesperados acarretados pelo atraso das filmagens, a RKO deveria distribuir o filme o mais rápida e amplamente possível – preferentemente, ainda antes do Verão.
Hitchcock exigia, porém, mais tempo – e ainda bem que o fez, pois em meados de Julho ainda não tinha sido encontrado um final para o seu filme. A dada altura, houve a ideia de fazer da protagonista uma mulher adúltera e assim conseguir ultrapassar as objecções dos censores relativamente ao seu suicídio. Porém, quando esta versão foi projectada numa sneak preview, o público desfez-se em risos e Hitchcock teve de retomar as filmagens. Alma e Joan arranjaram um novo final, mas as variantes eram tantas que já ninguém sabia que tipo de história é que estavam para ali a contar.
A decisão final foi revelar que as suspeitas de Joan Fontaine eram infundadas e que tudo não passou de um equívoco terrível. A história de uma mulher que descobre que o marido é um assassino transformou-se assim na história de um mulher que julga que o marido é um assassino. Cary Grant está, todavia, inocente e é mais um desses falsos culpados que Hitchcock tanto aprecia. A grande novidade é que, desta feita, tudo nos é mostrado não da perspectiva de quem é imerecidamente acusado (Grant), mas sim de quem acusa injustamente (Fontaine): por isso, quando a protagonista suspeita do marido, o mundo surge mergulhado nas sombras; quando ela acredita nele, predominam os ambientes claros e luminosos, que no final sairão prevalecentes com a absolvição definitiva e surpreendente de Grant. Assim foi o desenlace mais controvertido da filmografia de Alfred Hitchcock, que acabaria por ser também o mais inesperado, absurdo e hitchcockiano de todos eles – apesar da oposição declarada do próprio Hitchcock.
O taxista português
Nunca compreendi muito bem o porquê da péssima reputação dos taxistas portugueses. Para mim, uma viagem de táxi é sempre lamentavelmente curta. Os nossos táxis são eficientíssimos e conduzidos por homens extraordinários. Em cada taxista que conheci, encontrei sempre um amigo, um filósofo, um confidente instantâneo e sobretudo um contador de histórias notável que conhece como ninguém os caminhos do comportamento humano. A todos os taxistas da nossa terra deixo por isso os votos de excelentes festas e viagens seguras.
2004-12-22
Um sítio alquímico
Graças ao Bernardo Motta e ao seu excelente blogue Espectadores, descobri esta maravilha de sítio sobre o tema eterno da alquimia: The Alchemy Website.
2004-12-20
Arizona Dream
«O elenco de Arizona Dream é, de certo modo, uma revisitação pós-moderna da história do cinema. Pelos vistos, há muito tempo que ninguém queria contratar uma antiguidade como Jerry Lewis para um filme. Por causa da sua presença forte (ainda que já fora de moda) no ecrã, Lewis tinha estado mais ou menos condenado a interpretar a sua própria pessoa nos anos precedentes. Ele tinha sido incluido, sempre em conformidade com essa sua imagem, nos elencos de The King Of Comedy, que precedeu Arizona Dream, onde lhe coube o papel 'sério' de um apresentador de talk shows, e de Funny Bones, que veio a seguir, no qual interpretou um papel semelhante, um ex-humorista gabarolas. Algo de semelhante aconteceu com Faye Dunaway. Durante os seis anos entre Barfly e Arizona Dream ela não teve um único filme de sucesso ou interpretação notável. Ambos os actores estavam afastados das luzes da ribalta até à sua ressurreição por Kusturica em Arizona Dream, e Lewis (apesar da ambiguidade sério-cómica de Leo, a sua personagem no filme) teve mesmo direito a um cantinho para as palhaçadas dos bons velhos tempos. O seu papel no filme de Kusturica conseguiu trazer ao de cima algum do seu 'verdadeiro' lado humano, ao mesmo tempo que recordava a sua carreira passada.
Arizona Dream também contou com as participações de Johnny Depp e Lili Taylor, actores populares e reputados, que começaram as suas carreiras 'no tempo certo' e com presença assídua em grandes produções. A sua imagem neste filme seria premonitória: Johnny Depp continuou a interpretar sonhadores urbanos, falhados e depressivos depois deste papel. Imediatamente após o filme de Kusturica, Depp participou em What's Eating Gilbert Grape?, um filme independente com uma concepção semelhante, sobre a doença e a debilidade na América profunda. Finalmente, em Arizona Dream, Kusturica contou também com a modelo Paulina Porizkova e a participação de supermodelos no cinema comercial tornar-se-ia frequente nos anos seguintes. A carreira do subaproveitado Vincent Gallo, que interpreta Paul, é igualmente comentada através da sua personagem: o actor é um arruaceiro, tal como o aspirante a vedeta de Arizona Dream, talentoso mas incompreendido. Em Arizona Dream, o próprio elenco representa o passado, o presente e o futuro do cinema.»
(in Goran Gocic: Notes from the Underground: the cinema of Emir Kusturica, Directors' Cuts, Wallflower Press, Londres, 2001, págs. 124 e 125; tradução do inglês de Flávio Sousa)
Solidariedade de Natal
Nesta época de boa vontade natalícia, gostaria de propor um voto de solidariedade para com todos aqueles que, nas ruas, nas lojas e nos centros comerciais, se vêem forçados a vestir roupas de Pai Natal e a fazer uma figura perfeitamente ridícula para poderem vender as suas coisinhas.
2004-12-16
O dragão ataca
Vale bem a pena assistir ao combate grandioso entre o Dragão e a nossa querida Zazie no excelente blogue Dragoscópio, a respeito do Vasco Pulido Valente.
Prova irrefutável da existência de Deus
O próximo álbum do extraordinário Beck estará à venda em Fevereiro.
Pi
«Um: a matemática é a linguagem da Natureza. Dois: tudo à nossa volta pode ser representado e compreendido através dos números. Três: se se representar graficamente os números de qualquer sistema, começam a surgir padrões. Por conseguinte, há padrões em todo o lado na Natureza. Provas: os ciclos das epidemias, o aumento e decréscimo das populações de caribus, o ciclo das manchas solares, o nível das águas do Nilo. E que dizer então do mercado bolsista? O universo de números que representa a economia global. Milhões de pessoas envolvidas, biliões de mentes, uma vasta rede pulsante de vida: um organismo, um organismo natural. A minha hipótese: dentro do mercado bolsista, também existe um padrão. Mesmo à nossa frente. Oculto por detrás dos números. Sempre existiu.»
2004-12-10
Bruce Lee
O facto mais misterioso e controvertido na vida do grande Bruce Lee continua a ser… a sua morte. As circunstâncias que rodearam o falecimento prematuro do maior mestre de artes marciais do séc. XX foram estranhas e permanecem até hoje inexplicadas. Conta-se que Bruce reagiu tragicamente mal a um comprimido para dores de cabeça, mas não parece que essa explicação oficial e politicamente correcta convença muita gente: designadamente, fica por esclarecer porque é que durante a rodagem do seu último filme Bruce afirmou que não viveria o suficiente para ver o seu final. Muitos fãs inconformados têm por isso procurado outras explicações. Uns falam da possibilidade de suicídio. Outros, mais optimistas, acreditam que o seu ídolo não morreu, mas vive em reclusão num templo de Shaolin, longe dos olhares do mundo. Outros ainda, julgam que Bruce terá sido vítima da máfia chinesa, à qual sempre recusou prestar vassalagem.
Antes de morrer, porém, Bruce Lee fez vários filmes e o primeiro deles foi The Big Boss (1971). Precisamente por ter sido o primeiro, este não foi o seu melhor filme: o controlo de Bruce sobre o produto final esteve consideravelmente limitado e, infelizmente, nem todas as sequências de luta foram da sua autoria. Mesmo assim, as marcas do seu talento estão lá quase todas e o excelente argumento combina a ficção mais espectacular com alguns elementos retirados da biografia da sua vedeta principal. Tal como o protagonista Cheng Chau-an aporta numa terra estrangeira à procura de trabalho, também Bruce regressou em 1959 à sua cidade natal de São Francisco com apenas 115 dólares (15 do pai e 100 da mãe) nos bolsos em busca de uma nova vida. E tal como Bruce jurou aos seus pais evitar os sarilhos, também Cheng traz ao pescoço um amuleto de jade que representa idêntica promessa feita à sua mãe. Num dos pormenores mais memoráveis do filme, o amuleto é quebrado em dois, pelo que, liberto do peso simbólico desse compromisso, Bruce poderá então começar a fazer justiça pelos seus próprios meios.
O seu filme seguinte foi Fist Of Fury (1972), uma história de resistência ao imperialismo japonês que é também um testemunho eloquente do universalismo da mensagem de Lee. Numa das melhores cenas, Bruce desafia sozinho toda uma escola japonesa de karate, cujos membros haviam insultado a sua escola e apelidado o povo chinês de «homens doentes da Ásia». Bruce consegue derrotar todos os seus membros graças às suas superiores técnicas de combate – que são uma mistura de artes marciais de diversas regiões – demonstrando deste modo que o mais importante não é o país de origem das artes, mas sim o indivíduo e as suas convicções. Ao longo da sua vida, Bruce manteve-se leal a estes princípios e nas suas escolas compartilhou os seus ensinamentos e princípios de auto-defesa com todas as pessoas de todas as raças. Entre os seus alunos mais célebres, estiveram Roman Polanski, James Coburn e Steve McQueen.
Tanta generosidade e espírito de abertura não caíram no goto de muita gente, sobretudo da fraternidade chinesa da Califórnia, cujos membros não aceitavam de bom grado que os segredos das artes marciais fossem revelados a estrangeiros. Bruce começou então a ser o destinatário de um sem número de ameaças e desafios, o mais célebre dos quais por Wong Jack Man, um mestre de kung-fu recém-chegado à América: quem dos dois perdesse o combate, seria forçado a fechar a sua escola de artes marciais. Bruce saiu ganhador em poucos minutos, mas mesmo assim não ficou suficientemente satisfeito com a vitória, pelo que considerou que era altura de reavaliar a sua condição física e repensar a sua técnica: nascia assim o seu jeet kune do, que acabaria por se tornar no mais eficiente sistema de combate corporal alguma vez concebido.
Alguns dos princípios desta nova arte seriam expressamente enunciados em Way Of The Dragon (1972), o filme que se seguiu: «o método não é importante, desde que se utilize o corpo na sua máxima potencialidade», «mesmo por entre movimentos violentos podemos atingir os nossos objectivos e exprimirmo-nos» ou «qualquer que seja a arte, faltar-nos-ão sempre as forças se não aprendermos as coisas correctamente». A designação jeet kune do foi adoptada em 1967, mas anos mais tarde Bruce arrependeu-se de ter dado um nome à sua arte, pois os dois tornaram-se indissociáveis. Um nome junta-se sempre ao seu referente de uma forma rígida. Ora, a rigidez é exactamente o oposto do «método sem método» sobre o qual assenta esta nova arte, que é essencialmente um processo de crescimento contínuo, melhoramento e adaptação. Bruce chegou, a este respeito, a afirmar: «o que quero mostrar é a necessidade de nos adaptarmos a circunstâncias que mudam. A incapacidade de adaptação traz consigo a destruição».
Este princípio de adaptação encontrou a sua expressão máxima naquela que viria a ser a maior sequência de combate alguma vez filmada: o célebre confronto final entre Bruce Lee e Chuck Norris no Coliseu de Roma. No início do combate, Bruce é atingido diversas vezes pelo oponente porque adopta uma atitude demasiado rígida. Norris também adopta uma atitude rígida e os dois adversários vão trocando um número mais ou menos idêntico de golpes. Porém, Chuck Norris começa a levar a melhor graças ao seu peso e estatura. Bruce decide então mudar a sua estratégia e adopta um «método sem método», variando constantemente o ritmo e a intensidade dos seus ataques, muito para irritação de Norris. Anos mais tarde, perguntaram ao actor americano qual dos dois ganharia se o confronto fosse mesmo real e Norris, que foi oito vezes campeão mundial de karate, confessou que o vencedor seria sem dúvida Bruce!
As reflexões filosóficas continuaram com o filme seguinte, Enter The Dragon (1973): o título de maior sucesso na carreira de Bruce é também a sua obra mais sábia e o compêndio de algumas das suas lições mais profundas. Uma delas está contida numa frase célebre que dirigiu a um jovem estudante do templo de Shaolin: «não penses, sente. É como um dedo apontado à lua». Quando o estudante olha especado para o dedo, apanha uma bofetada e Bruce prossegue: «não olhes para o dedo senão perderás toda a beleza divina». O mestre fala aqui da necessidade dos homens se expressarem honestamente e abrirem o seu espírito a tudo aquilo que os rodeia; concentrar-se no dedo implicaria limitar a visão do mundo. O filósofo Bruce Lee sempre foi, aliás, avesso a sistemas fechados e acolheu influências das mais diversas proveniências, como o budismo, o taoísmo e o confucionismo. O próximo filme deveria ser a enunciação mais completa desta sua doutrina, mas infelizmente Bruce nunca chegaria a realizar esse sonho.
Lembram-se do uniforme amarelo com a risca preta que Uma Thurman usou em Kill Bill? Pois bem, o traje é uma homenagem explícita a Game Of Death, o quinto e último filme de Bruce Lee, no qual o protagonista utilizou um uniforme rigorosamente idêntico. A escolha do guarda-roupa não foi, aliás, casual: o fato representava a singularidade do estilo de Lee e a sua não filiação em nenhuma das artes marciais existentes. Lamentavelmente, a morte inesperada de Bruce não permitiu que o filme fosse concluído e a versão póstuma surgida em 1978 pouco ou nada tem que ver com o projecto original: por isso, esse celebérrimo fato amarelo mais o verdadeiro Bruce Lee surgem apenas no último terço do filme e durante 15 minutos, já que tudo o resto foi representado por duplos e sósias do mestre. Mesmo assim, pelo menos esses 15 minutos sobreviventes estão lá: três extraordinárias sequências de luta fluidas, dinâmicas e ricas em simbolismo, as melhores que Bruce alguma vez concebeu.
2004-12-06
Mais blogues amigos
Vale sempre a pena dar um pulinho ao simpático Associação de Ideias do João Paulo Cotrim e ao cosmopolita Memórias do Tempo Que Passa.
2004-12-02
Santana Lopes
Repararam como Santana Lopes se engasgou quando afirmou aos jornalistas que só tinha a dizer bem do ex-Ministro Henrique Chaves?
I.
Concebido nos banhos e nascido no ar, tornado verdadeiramente vermelho, ele avança sobre as águas. O Enxofre (o Sol dos Sábios) fecunda a Lua Mercuriana através da imersão. O Mercúrio (a Lua dos Sábios) tem a característica de absorver a Tintura que o Enxofre liberta durante a imersão (ou Banho do Rei). É esta analogia com o coito que inspirou na alquimia o uso das imagens sensuais.
Os tomates
Um dos melhores sítios internacionais sobre cinema é o popularíssimo Rotten Tomatoes, com os seus fóruns, as notícias frescas e o grande Roger Ebert.
Um conselho a José Sócrates
Os astrólogos conhecem bem a chamada lei da repercussão, segundo a qual as energias (positivas ou negativas) que projectamos no exterior são as mesmas que o mundo nos devolve. Trata-se de uma lei implacável e universal, que se aplica a todos os domínios da vida, inclusive a política. Por isso mesmo, espero que o nosso José Sócrates não se esqueça dela e que, na campanha eleitoral que se aproxima, se preocupe mais com as suas qualidades pessoais e menos com os eventuais vícios dos oponentes. O mundo (neste caso, o eleitorado) saberá certamente responder de forma generosa.
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