Parece que Alfred Hitchcock nunca gostou muito do final feliz do seu filme Suspeita (1941), com Cary Grant e Joan Fontaine. O romance original Before the Fact, do inglês Anthony Berkeley Cox (sob o pseudónimo de Francis Iles), era bem mais pessimista e contava a história bizarra de uma mulher tão fanaticamente apaixonada pelo marido, que vivia com ele mesmo sabendo que era um burlão, um engatatão e um homicida. Ao descobrir não só que está grávida dele mas também que ele planeia matá-la, a protagonista resolve suicidar-se e bebe o copo de leite envenenado que o marido lhe tinha deixado. Hitchcock apreciou sobretudo a abordagem psicológica da obsessão e da morte e queria, em conformidade com o texto original, revelar no final do filme que o seu protagonista era na realidade um assassino.
Os produtores, menos ousados, levaram as mãos à cabeça e disseram logo que não a esse final, entre outras razões porque era impensável que o simpático Cary Grant interpretasse um homicida. A reputação de Grant era a de um galanteador alto, divertido e sofisticado e não a de um intérprete particularmente dotado ou profundo. Como a grande Pauline Kael escreveria a seu respeito, «não queremos que ele seja intenso, apenas lhe pedimos que seja subtil, elegante e nos faça rir». O próprio Grant, lúcido até à medula, estava plenamente consciente dessas suas limitações e sabia que jamais seria credível na pele do assassino que Hitch pretendia.
O processo de selecção de um final mais apropriado viria a ser um parto longo e doloroso. Quando as filmagens começaram em 10 de Fevereiro de 1941, ninguém fazia ainda ideia de como é que seria o desenlace do filme. Isto não só era completamente estranho ao método de trabalho de Hitch, como também lançou os actores na confusão mais absoluta, pois nenhuma cena ou fala tinha um propósito certo. Pela primeira vez em muitos anos, Hitchcock adoeceu e a rodagem teve que ser suspensa durante várias semanas. O realizador regressava sempre exausto e deprimido ao estúdio e os seus colaboradores queixavam-se do seu desinteresse. O azedume foi tal que a 18 de Abril chegou-se mesmo a falar do cancelamento do filme.
Durante todo este tempo, Joan Fontaine e Alma Reville trabalharam fervorosamente em vários finais. Uma das possibilidades era que Cary Grant, num gesto de inusitado heroísmo, ingressasse na Royal Air Force e assim se redimisse dos seus crimes. De acordo com esta versão, felizmente abandonada a tempo, Grant deveria morrer num acto de sacrifício e patriotismo, o que contornava o problema do homicídio e suicídio no final. Em início de Maio, os produtores chegaram à conclusão que para compensar os custos substanciais e inesperados acarretados pelo atraso das filmagens, a RKO deveria distribuir o filme o mais rápida e amplamente possível – preferentemente, ainda antes do Verão.
Hitchcock exigia, porém, mais tempo – e ainda bem que o fez, pois em meados de Julho ainda não tinha sido encontrado um final para o seu filme. A dada altura, houve a ideia de fazer da protagonista uma mulher adúltera e assim conseguir ultrapassar as objecções dos censores relativamente ao seu suicídio. Porém, quando esta versão foi projectada numa sneak preview, o público desfez-se em risos e Hitchcock teve de retomar as filmagens. Alma e Joan arranjaram um novo final, mas as variantes eram tantas que já ninguém sabia que tipo de história é que estavam para ali a contar.
A decisão final foi revelar que as suspeitas de Joan Fontaine eram infundadas e que tudo não passou de um equívoco terrível. A história de uma mulher que descobre que o marido é um assassino transformou-se assim na história de um mulher que julga que o marido é um assassino. Cary Grant está, todavia, inocente e é mais um desses falsos culpados que Hitchcock tanto aprecia. A grande novidade é que, desta feita, tudo nos é mostrado não da perspectiva de quem é imerecidamente acusado (Grant), mas sim de quem acusa injustamente (Fontaine): por isso, quando a protagonista suspeita do marido, o mundo surge mergulhado nas sombras; quando ela acredita nele, predominam os ambientes claros e luminosos, que no final sairão prevalecentes com a absolvição definitiva e surpreendente de Grant. Assim foi o desenlace mais controvertido da filmografia de Alfred Hitchcock, que acabaria por ser também o mais inesperado, absurdo e hitchcockiano de todos eles – apesar da oposição declarada do próprio Hitchcock.