2004-09-16

Marluce e Carlos Cruz

A prisão preventiva do Senhor Carlos Cruz no âmbito do processo Casa Pia apanhou desprevenido todo um país. Então como hoje, sempre acreditei na inocência do popular apresentador: os sinais de prepotência judicial e incompetência eram evidentes e só não os via quem não quisesse. O que seguiu a essa madrugada atribulada de 1 de Fevereiro só serviu para cimentar a minha convicção inicial: os depoimentos insidiosos, o silêncio ensurdecedor das autoridades judiciárias e a verdadeira campanha mediática movida contra o Senhor Carlos Cruz. A voz mais estridente desse coro de Eríneas foi e é ainda a do Correio da Manhã – o tablóide que se auto-intitulou de grande defensor das criancinhas, mas que nem por isso se coíbe de fomentar a prostituição através dos anúncios amorosos que preenchem as suas páginas centrais. Por estas e por outras, recebi como uma lufada de ar fresco a notícia de que o livro Carlos Cruz: As Grades do Sofrimento tinha chegado finalmente às bancas. O livro de Marluce e Carlos Tomás é um tónico de dignidade e um daqueles livros que picam e mordem.

Um dos maiores méritos deste As Grades do Sofrimento é o facto de conseguir ser um relato simultaneamente sereno e comovido do processo judicial português mais controverso de sempre. A serenidade coube ao seu co-autor Carlos Tomás, um dos nomes mais isentos e respeitados do nosso jornalismo e que foi, desde a primeira hora, um crítico assumido da condução deste processo-crime. A comoção está a cargo dos familiares do Senhor Carlos Cruz, que desvelam o drama humano por detrás dos autos e denunciam corajosamente a mentira, a calúnia e a hipocrisia. É bom que não esqueçamos que no meio de todo o carnaval mediático está uma família que sofre e que, contrariamente às outras famílias de pessoas presas, não teve direito à discrição e ao recato: Raquel, a mulher que foi ao limite das suas forças para defender o marido; Marta, uma jovem bonita e inteligente que no espaço de um ano se viu forçada a deixar a sua adolescência e a crescer para ajudar a família; e a pequenita Mariana, demasiado jovem para perceber o que se passa, mas que um dia saberá que o pai esteve preso porque alguém disse que fazia mal a meninos.

Um dos factos que mais ocupou a reflexão dos autores foi o do célebre incidente de recusa do juiz Rui Teixeira. Apesar das críticas indignadas que se abateram sobre os advogados, a verdade é que foi a actuação conjunta destes defensores que permitiu que a vergonha e a transparência na administração da Justiça fossem repostas. Sem estar na posse das acusações feitas pelos jovens e sem conhecer os indícios existentes no inquérito, a audição para memória futura não teria passado de uma simples recolha de depoimentos dos denunciantes, que impossibilitaria a sua contradição por parte dos arguidos e um possível confronto em julgamento.

Os propósitos do Ministério Público eram óbvios: validar os novos depoimentos dos jovens, ocultar todas as ilegalidades processuais até então cometidas e erradicar do processo os nomes de todas as pessoas acusadas pelos denunciantes. O incidente de recusa de juiz, apesar de ter sido julgado improcedente, impediu mesmo assim que o procurador João Guerra destruísse o que quer que fosse do processo e blindasse a acusação aos arguidos. Curiosamente, as mesmas Eríneas que então clamaram por conspiração contra Rui Teixeira e ataque ao poder judicial nada disseram agora a propósito de idêntico incidente de recusa apresentado por António Pinto Pereira, advogado dos denunciantes, a respeito do juiz desembargador Varges Gomes…

Marluce / Carlos Tomás, Carlos Cruz: As Grades do Sofrimento, Editorial Notícias, Julho de 2004.