2004-06-24

À conversa com o argumentista de Sete Pecados Mortais


Eis a transcrição de um magnífico texto que me foi remetido pelo argumentista do filme Sete Pecados Mortais (1995), de David Fincher, a respeito do controverso diálogo entre Morgan Freeman e Gwyneth Paltrow:

«[...]The point of that scene in part was to continue heaping on this idea that this is a world where there are nothing but awful ugly choices people have to make. What would ordinarily be happiness gets contorted by reality and it weighs on them like a heavy suffocating dirty coat or like constant rain, or a foul smell that won't go away. It creates sympathy for the Gwyneth Paltrow character and leaves you wondering which unpleasant path is she going to take and adds more to the tragedy later. Not that it should make my opinion weightier but I spent a lot of time working on the film. I (with others) made gluttony and sloth.
I know Morgan Freeman is known for playing wise but in this movie and in that scene he isn't giving the advice he would like to give in a normal world. He is giving advice for the stinking world he lives in. You think he enjoyed giving the advice kill the baby and lie about it? Of course not. It stank in his gut. There is no sunshine in Seven. No joy. No happy retirement or rest. No happy endings for anybody. This isn't a movie where there is the possiblility of the thought of happily bouncing a baby on your knee. Where does giving advice about hope and making pleasant choices fit into this movie? Seven is about normal thoughts twisted around barbed wire. It was all the more depressing because when Seven came out the world seemed to be swimming in these murky no win questions.»


(in http://www.rottentomatoes.com/vine/showthread.php?t=160107&page=8&pp=30)

Cristiano Ronaldo


O meu talentoso conterrâneo Cristiano Ronaldo, natural da freguesia de Santo António, no Funchal.

2004-06-20

As Normas: projecto de ideia para um filme

Será que na vida, assim como na escrita de um filme, as normas devem ser sempre escrupulosamente observadas? Qual é afinal a importância das normas poéticas na escrita de um argumento de cinema? Esta é a grande questão teórica de que se ocupa este pequeno filme e que aflige o seu jovem casal de protagonistas em ruptura: ela, Alexandra, é uma argumentista rebelde e falhada; ele, David, é um médico íntegro e rígido seguidor de todas as regras, ao que atribui o seu grande sucesso profissional. Ambos discutem violentamente o guião de um filme intitulado As Normas e a briga logo resvala para o namoro dos dois. Como resultado, Alexandra deixa o apartamento e a relação de ambos e sem intenções de regressar a uma e a outro. Nessa mesma noite, o acaso leva David a cruzar-se com Solange, uma prostituta brasileira, e o seu proxeneta Tóni, que ela acabou de esfaquear. David será então forçado não só a salvar as vidas de ambos, mas também a confrontar-se com um dilema: telefonar às autoridades para denunciar Solange, conforme lhe impõem as normas da sua deontologia profissional, ou obedecer ao imperativo do seu coração, cada vez mais fascinado pela brasileira. O pragmatismo e integridade da sedutora Solange levam-no todavia a reformular as suas próprias convicções a respeito das mulheres, do amor e do cinema. No final, David faz um telefonema, sim, mas para deixar um recado apaixonado à sua Alexandra.

2004-06-19

Olá Madalena!


A nossa querida Madalena Santos, como todas as tias genuínas, sabe receber com gosto e elegância. Podem por isso clicar aqui e fazer uma visita ao seu excelente blogue, onde todos serão seguramente muito bem-vindos.

2004-06-15

O blogue do Carlos

O Carlos Almeida é alto, bom tipo e um excelente contador de histórias. Razões mais que suficientes para clicar aqui e visitar o seu blogue.

2004-06-14

Em defesa do Quarteto!


Hoje, gostaria de me debruçar um pouco mais sobre aquela que é uma das melhores (senão a melhor!) e mais históricas das salas de cinema de Lisboa: o mítico Quarteto, situado ali na Rua Flores do Lima, junto à Avenida dos Estados Unidos da América. Nas palavras certeiras de Baptista-Bastos, «estando numa das zonas nobres da cidade, é um cinema de bairro popular e cívico, democrático e plural».

Qualquer texto sobre o Quarteto, por mais breve que seja, não pode esquecer a referência ao nome daquele que foi o pai, mentor e organizador deste excelente espaço: Pedro Bandeira Freire. Empresário, poeta e autor teatral reconhecido, assumiu a criação do Quarteto como uma verdadeira causa. Estávamos em 1975 e Freire era então um jovem de 36 anos de idade, muitos dos quais dedicados ao cinema, sobretudo como empregado no Cineasso, uma empresa já desaparecida, tal como os cinemas que então explorava (Monumental, Satélite, Império, Estúdio, Alvalade, Éden, S. Luiz). Obstinado, Freire leva avante o seu projecto, contrariando todos os augúrios, em particular que o público português não estava preparado para essa inovação, que seria uma alteração radical de um quotidiano burguês em que ir ao cinema era um acontecimento e não um hábito, que não havia cinéfilos em número suficiente para quatro salas onde seriam exibidos filmes de qualidade como era seu requisito, que mesmo a maioria dos filmes ditos de qualidade não eram permitidos no nosso País em face da castradora política cultural da ditadura.

Para os jovens portugueses da altura, muito limitados politicamente na possibilidade de viagens ao estrangeiro, privados de contacto directo com o mundo, o cinema era a grande fonte de conhecimento. Nas vésperas da sua criação, o Quarteto não seria propriamente um oásis, já que se podia mitigar a fome de filmes noutras salas, mas a verdade é que, apesar dos esforços agonizantes dos cine clubes e da programação da Cinemateca, o panorama cinéfilo era desolador. Com o 25 de Abril franquearam-se as portas à disseminação das pequenas salas. O primeiro enorme impulso, que constituiu uma novidade falada em toda a Cidade, foi dado pelo Quarteto. A liberdade, para quem gosta de cinema neste país, também chegou com o Quarteto. Nas palavras de Bandeira Freire, «escolhemos a liberdade e os seus sacrifícios, mas também a liberdade e os seus direitos».

Também o Quarteto, em plena ressaca abrilista, encetou a sua própria revolução. Das salas monovolumes ou quando muito aglomerando uma sala grande com um pequeno estúdio ou satélite, iniciava-se a passagem a um sistema multisalas, num tempo em que tal conceito estava longe de ser considerado o futuro nos meios de distribuição e exibição, mas que viria ao longo dos anos a dominar progressivamente o mercado.

O mais importante do Quarteto foi, todavia, a revelação de uma nova forma de programar, assente no amor pelas obras exibidas. A 21 de Novembro de 1975, abriu finalmente as suas portas. «Foi um espanto!», diz quem lá esteve. No mesmo prédio, quatro salas, quatro filmes em simultâneo: o primeiro multiplex de Portugal! Para os cinéfilos, foi o deslumbramento. Os filmes de estreia eram um luxo: S. Miguel tinha um Galo, dos Irmãos Tassani; Um Filme Doce, de Makavejev; Amor em Tons Eróticos, de Mai Zetterling; e E deram-lhe uma Espingarda… de Dalton Trumbo. Assim nasceu o Quarteto, com bilhetes a 30$00.

O Quarteto foi o espaço de estreia de largas dezenas de filmes portugueses, muitos dos quais não teriam de outra forma conhecido o olhar do público. Acolheu iniciativas como extensões das Quinzenas dos Realizadores ou das Perspectivas do Cinema Francês, ambas saídas do Festival de Cannes. Promoveu mostras de filmes soviéticos, várias maratonas que assinalaram o início de actividades de revistas como Isto é Espectáculo!, Isto é Cinema!, ou ainda aniversários do próprio complexo. Foi o Quarteto que estreou em Portugal o primeiro filme chinês, O Milho vermelho, o primeiro filme africano Yellen de S. Cissé ou que lançou a ideia de reestrear grandes clássicos com cópia nova, como Lola Montès. Ciclos de cinema de grandes realizadores e de grandes temas constituíram acontecimentos culturais de enorme importância e actualidade. Cine clubes, revistas, grupos de jovens, todos puderam contar com o Quarteto para dar amplitude e visibilidade às suas iniciativas. Chegou mesmo a ter a sua revista própria, A Memória do Cinema. Particularmente admirável foi a cumplicidade com a Cinemateca: a 23 de Abril de 1981, cerca de seis meses após a inauguração, a sua sala na Barata Salgueiro ardeu e durante dezoito longos meses a nossa Cinemateca viu-se na incómoda condição de desalojada. Para onde mudá-la? A possibilidade era só uma: o Quarteto. Pedro Bandeira Freire não hesitou na resposta, disse logo que sim e cedeu uma das suas salas.

O Quarteto é uma das conquistas de Abril que perduram. É, na verdade, um sobrevivente que resistiu e resiste a tudo: à dramática baixa de espectadores dos finais dos anos 80 até meados dos anos 90, à concorrência do vídeo, à abertura quase simultânea dos canais de TV privada, à instalação em catadupa dos novos multiplexes. Adversidades que o espaço suplantou, apoiado numa clientela fiel e numa qualidade cinematográfica singular. Os seus fundadores tinham a noção clara de que estavam a investir no futuro, bem ao contrário das outras salas de então – as tais grandes salas – que, ano após ano, iam fechando as suas portas, enquanto que o Quarteto se fortalecia com um programação que fundia a qualidade com os clássicos, não esquecendo os grandes filmes do momento. Os objectivos eram claros: passar filmes por gosto. A táctica era simples: jogar com as diferentes distribuidoras que à época existiam.

Hoje, a conjuntura da distribuição / exibição alterou-se radicalmente. Das cerca de trinta distribuidoras que existiam em 1975, actualmente não restam mais de meia dúzia que na generalidade têm os seus próprios circuitos de cinema, cumprindo maquinalmente os comandos das grandes produtoras e impedindo desse modo todas e quaisquer possibilidades de escolha criteriosa. Aos muitos espaços de exibição, sobrepõe-se uma oferta reduzida e o cinzentismo, numa lógica de pura escravatura às leis de um mercado em que a venda de pipocas e não o filme em si é o negócio principal. É a globalização a estender a sua sombra também à indústria cinematográfica!

Por tudo isto, hoje mais do que nunca precisamos de um Quarteto forte e popular. É verdade que o espaço actual está algo ultrapassado na dimensão e no número de salas por outros grupos de grande poder à escala nacional e internacional. A variedade da programação, que continua a satisfazer as diferentes correntes de opinião, não deixou de se ressentir. Mesmo assim, a presença de Pedro Bandeira Freire continua visível no estilo, na memória, no bom acolhimento dos espectadores. As suas salas não são pequenas, são aconchegantes. Os intervalos são oportunidades privilegiadas para beijos, apertos de mão e comentários apaixonados dos filmes visionados: frente às quatro salas, um espaço acolhedor para a troca de impressões, acompanhado no simpático bar de um copo e uma fatia de delicioso pão-de-ló de Alfeizerão. Resta-nos esperar que quatro salas, quatro filmes continue a ser por muito tempo o slogan de um espaço que ao longo dos anos tem ajudado a formar gerações de cinéfilos – ou cine-filhos – na cultura e no bom gosto. Viva o Quarteto!

2004-06-12

Casa Pia (i)

O processo da Casa Pia conheceu um momento fundamental com a conclusão da instrução mediante o despacho da juíza Ana Teixeira e Silva. A instrução, como todos já muito bem sabem, é a fase processual que consiste na apreciação da acusação formulada pelo Ministério Público e que finda com a formulação de um despacho judicial, o qual poderá decidir num de dois sentidos: pela pronúncia e transição do processo para a fase de julgamento, ou simplesmente pela não pronúncia e subsequente arquivamento dos autos (sem prejuízo da possibilidade de interposição de recurso).

O essencial do despacho de Ana Teixeira e Silva foi amplamente divulgado pela Imprensa. O mais relevante foi a absolvição de três dos dez arguidos: Herman José, Francisco Alves e Paulo Pedroso. No caso do deputado, as razões invocadas para a sua absolvição foram de vária ordem: a descredibilidade e contradições das testemunhas; a inadmissibilidade do reconhecimento do arguido através de fotografia; a omissão de referências aos sinais físicos evidentes de Pedroso; a total desvalorização dos exames efectuados às alegadas vítimas por Alexandra Ansiães, psicóloga do Instituto de Medicina Legal. Mesmo os arguidos pronunciados viram a sua situação processual francamente favorecida: quer porque as medidas de coacção foram substituídas por outras de menor gravidade, quer porque o número de crimes imputados é consideravelmente inferior ao que inicialmente constava da acusação.

Que dizer então do mérito das decisões de Ana Teixeira e Silva? Num momento em que muito do conteúdo do processo ainda está por conhecer, é evidente que a prudência desaconselha apreciações críticas. Mesmo assim, é possível formular algumas conclusões.

A primeira conclusão, aliás óbvia, é que Ana Teixeira e Silva teve a sensatez e serenidade suficientes para não incorrer nos erros do seu antecessor Rui Teixeira. Ao contrário do que afirma o Carlos no seu excelente blogue Contra a Corrente, o juiz halterofilista exerceu a sua dificílima função sem humildade, senso ou sentido de responsabilidade. Recordemos a forma batoteira como o magistrado chegou a este processo e que viria aliás a ser censurada pela Relação de Lisboa no seu acórdão de 17.03.2004: consideraram então os desembargadores que Adelino Frescata, magistrado do 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, a quem o processo da Casa Pia coube inicialmente, fez uma distribuição "abusiva" do mesmo ao seu colega Rui Teixeira, porque este teria em Dezembro de 2002 autorizado uma busca no âmbito do caso. Pensemos ainda na apetência de Rui Teixeira pelo vedetismo e declarações públicas bombásticas (leiam-se as suas longas entrevistas no Público de 22.11.2003 e 23.11.2003 ou no Diário de Notícias de 29.03.2004), ou na forma intolerável como apelidou Carlos Cruz e os seus defensores de palhaços – uma linguagem aviltante que nem a um garotelho de 13 anos se admite, quanto mais a um magistrado judicial!

Uma segunda conclusão é que Ana Teixeira e Silva terá cedido à propensão velhinha dos nossos juízes de dar uma no cravo e outra na ferradura e procurar não desagradar excessivamente a nenhum dos lados do litígio ou à opinião pública. Se por um lado, a juíza de instrução não hesitou em favorecer a posição dos arguidos e mesmo em absolver três deles, por outro não deixou de conceder aos acusadores que «a questão cerne neste processo não é determinar se os ofendidos foram vítimas de abusos sexuais: este é um dado assente (…)». Mesmo assim, Ana Teixeira e Silva deixou entrever uma desconfiança profunda relativamente a uma acusação que, aliás, tem dado sobejas provas de fragilidade. Se faltou à juíza coragem para ter ido mais longe, só o futuro dirá.

2004-06-08

Woyzeck


O drama Woyzeck (1836), que nos conta a história desafortunada de um soldado vitimado pela loucura e pela miséria, é a obra mais fascinante, misteriosa e aclamada do alemão Georg Büchner. Nem sempre foi, todavia, um texto consensual: como geralmente sucede com as obras grandiosas e profundamente inovadoras, Woyzeck foi durante muito tempo um texto incompreendido e injustiçado. Mesmo o próprio Ludwig Büchner, que organizou em 1850 uma primeira edição dos escritos do irmão Georg, deixou Woyzeck de fora, por não conseguir decidir-se a publicar um texto em muitos aspectos escandaloso para o gosto da época. A primeira edição integral surge apenas em 1878 na revista berlinense Mehr Licht!, por mão do escritor Karl Emil Franzos. A estreia em palco teria lugar somente em 8 de Novembro de 1913, no Residenztheater de Munique, na versão estabelecida por Franzos.

À consagração tardia de Woyzeck também não serão alheias as sucessivas vicissitudes de que o texto original foi objecto. A morte prematura de Georg Büchner em 19 de Fevereiro de 1837, quando contava apenas 24 anos mal feitos, impediu-o de concluir o texto, pelo que tudo o que restou do seu Woyzeck foi um aglomerado de páginas manuscritas, dificilmente legíveis, não numeradas nem ordenadas. Só a partir da década de 1920 é que são levadas a cabo tentativas profundas de adequação do texto dramático, sem que todavia alguma vez se tenha chegado a uma versão que se possa com segurança rotular de definitiva. Por tudo isto, melhor seria que falássemos de Woyzeck como não um, mas vários textos, com diferentes sequências dramáticas e diferente aproveitamento do material legado por Büchner.

Relativamente à forma, Woyzeck é um drama inovador, no qual não encontramos a tradicional divisão em actos e cenas. Ao invés, o que temos é uma sucessão de quadros com grande autonomia estrutural, levando a uma nítida dispersão da acção, do tempo e do espaço dramáticos. Fala-se por isso deste Woyzeck como o paradigma do drama de forma aberta, um tipo dramático regido pela lógica da dispersão e da fragmentação, em oposição ao tipo clássico de forma fechada, regido por um conceito de unidade e totalidade. Esta estrutura de mosaico, em que os pequenos quadros dão uma visão de conjunto, havia sido já utilizada no terceiro quartel do século XVIII por Goethe (primeira versão de Fausto) e Lenz (Os Soldados) e ecoa a chamada técnica de Stationendrama, que já só representa acção em blocos isolados e não numa sequência contínua.

Nesta medida, não encontramos em Woyzeck o artifício da Personenkette, isto é, da ligação entre as cenas pela permanência em palco de pelo menos uma personagem. Falta também uma cena a que possamos atribuir uma função de exposição, pois inexiste aqui qualquer sequência inicial que apresente os antecedentes da acção que vai decorrer perante os olhos do espectador, caracterizando as personagens e fornecendo todas as informações prévias necessárias à produção da ficção. Na edição de Lothar Bornscheuer, por exemplo, a peça inicia-se abruptamente com a cena do corte de vimes por Woyzeck e Andres, que nos introduz de imediato no mundo perturbado e agoirento do protagonista. Enfim, inexiste um desenlace claro: cada edição de Woyzeck aventa o seu próprio final, como a morte por afogamento do protagonista ou a sua condenação judicial; seja como for, estamos aqui no puro reino das conjecturas pois sabemos que Büchner não chegou a concluir esta sua obra.

A propósito de Woyzeck e de fragmentos, uma reflexão muito interessante, que relaciona os mundos do teatro e da banda desenhada, é-nos proposta por João Paulo Cotrim:

«É, aliás, revelador de sentidos que tenha sido escolhido para argumento um texto fragmentado [Woyzeck]. A banda desenhada é, por condição, fragmentária. Põe em sequência momentos (mais ainda quando as histórias nos eram reveladas em continuação), pedaços de movimento, expressões, restos de gesto. Relaciona tudo, muitas vezes sugerindo, outras vezes despertando memórias visuais mas sem nunca destruir a unidade de cada partícula. Um pouco como a luz, que é em simultâneo onda e conjunto de partículas, um verdadeiro colar de pérolas. Esta arte da síntese (num pictograma ou num ícone) é notável até no facto de um nome – banda desenhada – se ter tornado sigla – bd – e, por coincidência, sobejamente gráfica.»

Também o tempo e o espaço de Woyzeck não são lineares. Embora o arco temporal da acção não possa ser muito grande, não temos aqui qualquer noção de continuidade. O espaço reparte-se, por sua vez, pelos ambientes naturais e urbanos, além do que não se trata de mero bastidor neutro ou meramente decorativo, antes comunga do acontecer dramático e do estado de espírito das personagens.

Este carácter aberto e fragmentado não significa contudo que o desenvolvimento da acção seja totalmente desgarrado ou incoerente. A esta estrutura fraccionada contrapõe-se uma série de processos construtivos que visam assegurar a coesão do todo dramático. Pense-se na concentração do drama em torno da figura do soldado Woyzeck, o que é desde logo um poderoso factor de unificação. Pense-se também na rede de motivos ou cadeias metafóricas que atravessam todo o texto: o movimento descendente, o simbolismo das cores, a oposição frio / calor, o motivo do esfaqueamento, as imagens apocalípticas e silêncio do mundo ou o motivo «immer zu, immer zu». Também apontam no sentido da coesão dramática os chamados pontos de integração, os quais consistem em momentos de comentário da acção à semelhança dos coros das tragédias gregas: pense-se no sermão do aprendiz na taberna ou no conto da avó, verdadeira parábola do destino de Woyzeck.

A novidade do drama é não apenas formal, mas também – e sobretudo – temática. A grande inovação do texto de Büchner está na sua tónica social, que fez de Woyzeck o modelo do novo teatro realista-naturalista de base social. Pela primeira vez na história do drama alemão, as figuras centrais da peça não saíram da burguesia ou das classes mais favorecidas, mas sim do Povo, tendo Büchner buscado inspiração em casos criminais verdadeiros acontecidos em meios pobres, entre os quais o assassínio de Johanna Christiane Woost por Johann Christian Woyzeck a 21 de Junho de 1821, em Leipzig, que suscitou enorme polémica no seu tempo.

A simpatia de Büchner pelas carências e pretensões das classes mais desfavorecidas é manifesta. A cena de abertura é expressiva, ao mostrar as personagens entregues a um trabalho árduo e manual, do qual depende em parte a sua subsistência – uma situação perfeitamente atípica nos dramas de então. Ademais, só as personagens de condição social modesta são merecedoras de um nome: Woyzeck, Marie, Andres, Margareth. Já as personagens de condição elevada são referidas apenas pelos seus postos hierárquicos ou pela função que ocupam na sociedade: Hauptmann, Doktor, Tambourmajor. A isto, acresce ainda a caracterização assumidamente satírica e unidimensional destes representantes das classes dominantes: por exemplo, a figura do médico, não só indiferente ao sofrimento de Woyzeck como também em boa medida causador dos seus males, condensa uma crítica implacável às pretensões de racionalidade científica; também o capitão atesta a sua superioridade ridicularizando Woyzeck e achincalhando-o na sua dignidade.

Nunca antes de Büchner o drama havia concedido um lugar central a alguém como Woyzeck, um pobre diabo que nem sequer é dono do seu próprio corpo. O conceito tradicional de herói dramático não pode aplicar-se a este barbeiro e soldado que se deixa submeter a toda a espécie de humilhações pelos seus superiores: temos aqui, isso sim, um anti-herói, um protagonista cujas características, comportamento e linguagem o definem como completamente marginal à sociedade. Será necessário esperar muito tempo, até ao surgimento da era modernista, para que possamos assistir ao ressurgimento deste tipo de personagem no universo literário alemão.

A questão da culpa trágica não pode por isso ser posta relativamente a este drama e a este protagonista. Inexiste aqui qualquer espécie de culpa ou queda em desgraça. Woyzeck não pode cair, porque está sempre no plano mais baixo da existência e porque lhe faltam em absoluto as condições de soberania e personalidade essenciais aos heróis das tragédias. Quando inicia o drama, já há muito que a semente da destruição de Woyzeck havia germinado.

2004-06-07

A minha estreia cinematográfica

O cinema canibal tem-nos fornecido títulos memoráveis que ajudaram a autonomizar um verdadeiro género cinematográfico e a fidelizar um número incontável de seguidores. Pensemos em obras notáveis como O Massacre no Texas, Holocausto Canibal ou mesmo O Insaciável. Ainda recentemente, o filme português Uma Mesa para Dois veio juntar o seu nome a esta galeria prestigiosa. A história, excelentemente escrita pelo meu colega de cinema Nelson Cravo, é livremente inspirada no caso do alemão Bernd-Jurgen Brandes, que se deixou mutilar e comer por Armin Meiwes, em resposta a um anúncio na Internet para o efeito. O filme contou ainda com a minha estreia como intérprete, na pele de um dos inspectores destacados para a investigação do sórdido delito. Numa das melhores cenas, fotografo algumas das provas do crime enquanto que o meu colega de investigações deixa desabafar, num suspiro lamentoso, que “este mundo está perdido!”. O argumento é excelente, os efeitos especiais são convincentes e a produção decorreu sobre rodas. Resta-nos aguardar pela estreia, em Julho. Parabéns, Nelson!

2004-06-02

Mudanças no blogue

A pedido de várias famílias, mudei o nome deste blogue para o actual A Bomba. Os conteúdos continuam, todavia, rigorosamente os mesmos.