2004-04-23

Les Diaboliques


Les Diaboliques (1955) é um admirável exemplo do que de melhor pode produzir a cumplicidade entre literatura e cinema. O romance original Celle qui n'était plus era resultado da imaginação fervilhante de Pierre Boileau e Thomas Narcejac e narra uma história de ciúme, crime e infidelidades conjugais entremeada com os elementos sobrenaturais tão característicos dos dois autores franceses. O filme viria a ser realizado por Henri-Georges Clouzot e é ainda hoje aclamado como uma das mais aterradoras obras-primas do cinema de suspense.

Na origem de tão notável consórcio de talentos esteve a mediação oportuna de Vera Clouzot, mulher do realizador e sua actriz de eleição, que lhe sugeriu a obra no decurso de uma noite de insónias. Nas palavras do próprio Henri-Georges Clouzot: «às duas da manhã, queria apagar a luz e dormir; às quatro, terminei a leitura do livro; às nove e meia, comprei os respectivos direitos». Em boa hora o fez, pois o romance era também objecto do interesse do seu colega cineasta e amigo Alfred Hitchcock. Clouzot levou a melhor e Hitch teve de se contentar com o terceiro romance da talentosa dupla autoral D'Entre les Morts, igualmente baseado no tema da reaparição de um cadáver e do qual resultaria o memorável Vertigo. Aliás, as semelhanças entre os dois cineastas não se ficavam pela admiração por Boileau e Narcejac: ambos professavam o rigor e a utilização de minuciosos storyboards; partilhavam o mesmo sentido de humor negro e apetência pelo absurdo; comungavam de um fascínio enorme pelo mal. Não admira pois que Clouzot seja frequentes vezes apelidado de Hitchcock francês.

Obsessivo até aos ossos, Clouzot sempre foi um criador indómito para quem a perfeição era suficiente: atestam-no os relacionamentos tempestuosos com os seus elencos e colaboradores, a recusa intransigente dos convites americanos por receio de perda da autonomia criativa e uma filmografia reduzidíssima numa carreira que se estende por mais de vinte e cinco anos. Pouco surpreende por isso que as modificações ao romance original tenham sido mais que muitas. A perspectiva dominante é não já a do marido adúltero, mas a da esposa violentada. O décor não é o lar conjugal, mas o espaço feérico, quase surreal de um colégio interno onde fermenta toda a sorte de ódios, rancores e hipocrisias. O extraordinário final, que a pedido expresso do realizador não será aqui desvelado, nada tem de tranquilizador ou verosímil. Os próprios Boileau e Narcejac reconhecem que «[Clouzot] concebeu, escreveu e realizou uma história que mais não tem que uma ligeira parecença com a nossa» acrescentando que «o filme é bem menos uma adaptação que uma reinvenção cuja originalidade não pode deixar de ser realçada». Les Diaboliques viria contudo a projectar os dois escritores para o estrelato e, claro está, a confirmar Henri-Georges Clouzot como o cineasta francês mais genial, controverso e perturbador de sempre.

Este homem é um senhor!

Obrigado pelo estímulo e pelas palavras amigas, Stephen King! Oxalá que sim, que este meu blogue cresça e resulte em qualquer coisa de útil. Abraço de Urso!

2004-04-22

Rebelde sem uma equipa

Robert Rodriguez é um dos mais talentosos cineastas saídos de Hollywood nos últimos anos. O seu currículo, já considerável, inclui títulos tão interessantes como Spy Kids, Quatro Quartos, Aberto Até de Madrugada ou Desperado. Rodriguez é também o Autor de Rebel Without a Crew, o célebre diário que desvela os segredos da rodagem da sua primeira obra-prima cinematográfica, El Mariachi. O livro é uma maravilha e de leitura obrigatória para todos quantos sonhem um dia ingressar na arte de fazer filmes.

O que tornou El Mariachi um filme de referência entre os cinéfilos foi não apenas a energia e inventividade do seu estilo mas sobretudo os seus custos de produção ridiculamente baixos: com um orçamento de apenas sete mil dólares, Rodriguez concebeu uma obra que lhe viria a franquear as portas das grandes produtoras norte-americanas. Rebel Without a Crew é o relato minucioso de todo o processo de feitura do filme, desde a angariação do dinheiro até às filmagens e pós-produção. A fórmula do sucesso é simples e resume-se à utilização da inteligência e da criatividade como substitutos do dinheiro na resolução dos problemas de filmagem.

Mais curioso ainda é notar como a escrita de Robert Rodriguez mimica o seu estilo cinematográfico frenético: o resultado é uma obra de leitura tão proveitosa quanto agradável para todos, recheada de episódios geniais - designadamente a sujeição de Rodriguez a experiências laboratoriais como forma de angariação do dinheiro da produção ou o seu convívio com algumas das maiores vedetas do cinema americano. Não obstante, é sobretudo aos jovens cineastas que o livro se destina. Nas palavras do próprio Rodriguez «o primeiro passo para se ser um cineasta é deixar de dizer que se quer ser um cineasta. Eu já era um realizador desde o dia em que fechei os olhos e me imaginei fazendo filmes. O resto era inevitável. Por isso não se quer ser, é-se um cineasta. Depois, é só encomendar um cartão de visita.»

Robert Rodriguez, Rebel Without a Crew - or How a 23-Year-Old Filmmaker with $7,000 Became a Hollywood Player, EUA, Plume, Setembro de 1996.

Pacheco Pereira e o futebol

José Pacheco Pereira tem sido um crítico implacável do excesso de futebol na sociedade portuguesa e, por uma vez, devo subscrever as palavras do controverso comentador. «Nenhum país civilizado, e em muitos deles o futebol é uma paixão nacional, dá este tempo e estes recursos a uma actividade que acaba, pelo excesso, por ser um factor do nosso desinteresse social, da nossa anomia, do nosso atraso», escreve Pacheco Pereira (in Público de 19.02.2004, pág. 5). Portugal vive, come, respira, fala e pensa futebol como nunca terá alguma vez feito e com a chegada do famigerado Euro 2004 mais as quinhentas horas de transmissão pela RTP, o excesso só tende a piorar. Por reflectir e discutir ficam outros excessos bem mais prementes, como os do desemprego, da iliteracia ou da prisão preventiva.

A crise fez dos portugueses o povo mais deprimido e frustrado da Europa e não é anormal que as pessoas procurem formas de entretenimento e escapismo em períodos difíceis. O que é mais dificilmente compreensível é que se esbanje tanto tempo e energia num espectáculo tão fútil e idiota, sobretudo se considerarmos a mediocridade desportiva da nossa selecção nacional e dos nossos clubes (excepção feita ao Futebol Clube do Porto, claro). E com que proveito? O futebol uniformiza, embrutece e estupidifica; banaliza o insulto e a violência; consome dinheiro e energias; e em vez de trazer conhecimento, amealha aquilo que é pior que toda a ignorância junta.

Os Parasitas da Morte


Todas as culturas do mundo são confrontadas com problemas decorrentes dos limites éticos e jurídicos das intervenções médicas no corpo humano. Mesmo após a morte, sempre se encarou o corpo como um objecto de respeito e com a natureza especial de extensão da pessoa. Ao longo dos tempos e dos sistemas jurídicos, razões de ordem religiosa atribuíram ao cadáver uma característica de sacralidade, que ainda hoje se manifesta sob as mais diversas formas, desde os ritos funerários à sua incomercialidade. As concepções religiosas e éticas do cristianismo só vieram fortalecer esse respeito ancestral pelo cadáver. Por vezes, tais concepções chegaram até a constituir um entrave ao progresso da medicina, pela dificuldade em dispor de cadáveres para estudos anatómicos.

Felizmente, semelhantes escrúpulos nunca detiveram criadores artísticos como o cineasta David Cronenberg. O realizador canadiano sempre preferiu considerar o corpo humano como mero objecto de experimentação estética e científica. Nas palavras do próprio Cronenberg, «enquanto artista não me incumbem responsabilidades cívicas de qualquer ordem, pois a minha única responsabilidade é consentir-me a maior liberdade criativa possível», acrescentando que «os meus filmes abordam privilegiadamente o corpo humano e a sua existência como organismo vivo, diferentemente da generalidade dos filmes de terror e ficção científica, mais orientados para a tecnologia e para o sobrenatural e nessa medida mais abstraídos do corpo».

As controversas teses cronenberguianas irromperam no grande ecrã pela primeira vez, e de forma espectacular, com Shivers (em português, Os Parasitas da Morte). O filme é não apenas uma prodigiosa (e polémica!) obra-prima mas também o precursor do sub-género de terror venéreo. O pesadelo começa nos luxuosos apartamentos Starliner Towers, onde o médico Emil Hobbes desenvolve pesquisas no sentido da criação de um parasita com fins terapêuticos. A investigação conduz todavia a resultados trágicos quando os parasitas induzem comportamentos homicidas e de violência sexual extrema por parte dos hospedeiros respectivos. Em poucas horas, acabarão por infectar os habitantes do complexo residencial e, a breve trecho, toda a população mundial. David Cronenberg explica o seu filme como uma exaltação da sexualidade embora do ponto de vista de uma doença venérea: «um vírus está apenas a fazer o seu trabalho e a tentar viver a sua vida. Considerá-lo da sua própria perspectiva é perfeitamente razoável. Muitas doenças ficariam chocadas se soubessem que eram tidas como doenças. É uma conotação extremamente negativa. Para elas, é algo de muito positivo quando dominam e destroem o nosso corpo».

2004-04-21

No País dos Lotófagos

Um dos episódios mais fascinantes e misteriosos da Odisseia de Homero é o da chegada ao País dos Lotófagos (os que comem a flor de lótus). Ulisses e seus companheiros levantaram ferro da costa da Trácia, desceram à costa do Peloponeso, ladearam os seus promontórios e navegaram para a costa ocidental de Ítaca. Ao décimo dia de navegação, desembarcaram então nessa terra de gentes amistosas que lhes deram de comer a flor de lótus. Os marinheiros ficaram todavia de tal maneira narcotizados que já não queriam saber de voltar para a sua pátria. Ulisses teve de levá-los à força para os barcos e ordenar que partissem com rapidez.

Alguns estudiosos tentaram localizar este país na Tripolitânia, no Noroeste da Líbia. Contudo, o mérito principal de Homero será sempre o de poeta genial e não o de geógrafo, historiador ou cronista: a muitas informações verdadeiras e rigorosas, o príncipe da poesia grega juntou uma boa parte de imaginação e de histórias populares. Por isso, o melhor será concluir que os Lotófagos da Odisseia não têm pátria no mundo real. Mas se este Povo é uma criação puramente lendária, tão imaginário como o Ciclope ou a feiticeira Circe, já a flor de lótus é bem real. Na Índia, é simultaneamente sagrada e útil. No 3º milénio a. C. já é referida como existente nas margens do rio Indo, onde é venerada pelos Hinduístas e Budistas: quando Buda nasceu, logo floriu uma flor de lótus na terra que ele tocou pela primeira vez. A ela se atribuem diversas qualidades relativas à saúde, sorte, beleza, fertilidade, divindade, ressurreição e pureza. Terá sido todavia o lótus do Egipto que serviu de inspiração para Homero. Os micénicos mantiveram contacto com os egípcios durante duzentos ou trezentos anos: os seus produtos chegaram ao Nilo e ao Assuão. Os comerciantes de Micenas tinham por isso muito que contar e entre os seus relatos estaria o de que os egípcios viviam de uma flor chamada lótus.

O carácter misterioso do lótus terá servido na perfeição os propósitos de Homero, cujo auditório escutaria tal história como se fosse realidade. E essa flor é apenas um de entre os muitos objectos mágicos que abundam nesta Odisseia: Helena tem um droga calmante, trazida do Egipto, que faz parar o sofrimento e a dor (IV, 219-232); Circe tem uma poção que transforma os homens em porcos; e, contra os seus efeitos, Hermes dá a Ulisses o môlu, a planta de raiz negra e de flor branca, muito dura para arrancar e que o deve preservar de todos os sortilégios e que por vezes é comparada à mandrágora (X, 302-306). Em Homero, o mágico, o belo e o exótico estão em todo o lado!

A chegada ao País dos Lotófagos é um dos exemplos mais frisantes da criatividade indómita de Homero, assim como do seu entusiasmo pela vida e compreensão da natureza humana. A ingestão do lótus provocava a amnésia e este esquecimento é uma ambição antiga: abre a possibilidade de começar de novo, de renascer, de apagar o passado. Quem de nós é que enjeitaria esta oportunidade de provar o doce lótus e com isso passar uma esponja sobre todos os males e erros do passado? Não surpreende por isso que só a muito custo é que Ulisses tenha conseguido arrancar os seus companheiros daquele estado de êxtase e fazê-los regressar: «e eu fui obrigado a trazê-los à força e debulhados em lágrimas para as naus; puxei por eles e atei-os ao fundo da embarcação, sob os bancos; e entretanto insistia com os outros companheiros que me tinham permanecido fiéis para que se instalassem depressa nas suas naves ligeiras, receando que algum deles ao saborear o lótus se esquecesse do regresso». Esquecer e começar de novo: é tentador, não é?