2007-05-01

O Evangelho segundo Jesus Cristo


O romance O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) tem um título enganador. O Cristo descrito por José Saramago é original e tem pouco a ver com o que encontramos nos evangelhos canónicos – o que, aliás, suscitou as polémicas furiosas que continuam frescas na memória de toda a gente. Mas o maior engano não é esse. Ainda que a vida de Jesus ocupe a parte de leão do texto, o mais importante do livro não está aí. O momento fulcral da obra de Saramago é aquele em que Deus surge e revela os seus desígnios divinos.

Jesus é um interveniente relativamente secundário. O texto di-lo expressamente, ao descrever a sua biografia como «alguns vulgares episódios da vida pastoril» e ao qualificar o filho de José e Maria como «medíocre em vida». Isto é reforçado pelas considerações sobre o livre arbítrio que proliferam ao longo do livro. O Jesus de Saramago é um ser destituído de verdadeira capacidade de escolha: «Deus é quem traça os caminhos e manda os que por eles hão-de seguir, a ti escolheu-te para que abrisses, em seu serviço, uma estrada entre as estradas.» O verdadeiro protagonista deste Evangelho não é Jesus, mas o próprio Deus.

Deus é, na verdade, um protagonista magnífico. Desde logo, pelo seu carácter misterioso: a Bíblia contém muito pouco que se possa considerar filosofia e o Deus do Antigo Testamento nada esclarece sobre as contradições da vida. A maior perplexidade de todas talvez seja a do sofrimento no mundo. Se Deus é perfeito e criador de todas as coisas, parece inaceitável que o mal exista e que esse mesmo Deus seja imune ao sofrimento de que é causa. Para um ateu declarado como Saramago, é incompreensível que as pessoas se ajoelhem perante uma divindade destas: «O inferno é este planeta onde vivemos, onde sofremos, onde cremos.»

Tudo isto desarma os censores do Evangelho. Não há aqui qualquer «anti-teologia de larga audiência». José Saramago limita-se a transportar para o seu romance algumas das dificuldades fundamentais dos homens na sua relação com Deus. O autor fê-lo na forma e no momento certos. Não só porque a literatura é o espaço adequado para abordar os grandes temas teológicos e filosóficos junto do homem comum, mas também porque o seu ateísmo lhe dá uma legitimidade acrescida para escrever sobre a religião. Tal como os melhores cronistas de um país são os estrangeiros, também o distanciamento de Saramago lhe confere mais objectividade e lucidez.

1 comentário:

Patrícia disse...

O Saramago é dos meus autores preferidos, e o Evangelho é, na minha opinião, um livro brilhante, extremamente bem conseguido. Eu cá gosto mais de um Jesus que ama uma mulher que lhe mereceu o perdão (por falhar perante os ensinamentos de Deus) do que de um Jesus humano mas celibatário.

Beijinhos e bom fim-de-semana