2007-02-13

Belarmino


O começo do filme Belarmino (1964) é surpreendente. Ouvimos dizer em off que o protagonista poderia ser um pugilista excepcional, mas que na realidade não o é: «Podia ter sido um grande pugilista, dos melhores da Europa, talvez até campeão dos meios leves e agora é quase um punching ball: Belarmino Fragoso». A locução inicial do Baptista Bastos dá o mote para todo o filme, porque o excelente documentário de Fernando Lopes fala apenas de uma eventualidade: não se descreve um campeão de pugilismo que tenha efectivamente existido, mas apenas aquele que poderia ter existido. Isto é, no mínimo, curioso. Parece estranho que o filme seja anunciado como um documentário e ainda mais insólito que o realizador tenha escolhido um protagonista aparentemente tão desinteressante e até desprezível.

Belarmino tem inúmeros defeitos e o pior deles é a falsidade. O senhor mente com o atrevimento mais descarado e tem o péssimo hábito de alijar responsabilidades: quando é questionado sobre o seu fiasco no ringue do Albert Hall perante um pugilista de segunda, ele desencanta uma história disparatada de corrupção e compadrio. Porém, as mentiras não nos incomodam por aí além. Não só porque o filme do Fernando Lopes deixa claramente à vista o que é ou não patranha, mas também porque a própria inépcia do Belarmino se encarrega de o denunciar, um pouco como a criança que diz ‘não fui eu’ com a boca lambuzada de doces. Aceitamos as mentiras do Belarmino Fragoso e até simpatizamos com elas, pela sua candura e ingenuidade. Mas não só.

O Belarmino seria um indivíduo risível em qualquer outro país do mundo, mas em Portugal é um campeão. Mais do que simples simpatia, existe entre ele e o público português uma verdadeira empatia: uma fusão emocional, uma adesão de sentimentos que se estabelece entre espectador e personagem de tal modo que parece dar-se entre os dois uma espécie de identificação ou projecção. Os portugueses reconhecem-se nas mentiras do Belarmino e na sua esquiva permanente à realidade, porque se há coisa que fazemos bem é não querer ver as coisas como elas são. A este respeito, uma diplomata francesa descreveu o nosso povo como «os chineses do ocidente», porque os chineses nunca vão directamente ao assunto, dão inúmeras voltas antes de lá chegar e sempre em termos pouco claros.

Além do seu feitio esquivo, há outras características do protagonista que são muito nossas: a mediocridade, a ignorância, a gabarolice e a indisciplina. Tudo isto faz do Belarmino um case study, um representante da mentalidade dos portugueses e do seu proverbial «medo de existir», uma figura tão típica e característica como o galo de Barcelos, o Zé Povinho ou o caldo verde. A condição portuguesa é o verdadeiro assunto de Belarmino e não apenas a vida de um pugilista falhado. Daí o valor documental do filme do Fernando Lopes, porque descreve com verdade e rigor a mentalidade de um povo. Se o realizador encena ou falseia alguns detalhes da vida do protagonista (algumas sequências, como a chegada aos treinos no Sporting ou o engate nos Restauradores, são manifestamente encenadas) é apenas para que se registe com mais fidelidade essa verdade maior.

1 comentário:

Bino disse...

Neste filme, excelente fotografia de Augusto Cabrita.