Carmela e miúdos: os nossos corações estão convosco.
2006-07-25
2006-07-24
Twin Peaks
O protagonista de Twin Peaks não é um detective comum. Os procedimentos de Dale Cooper afastam-se das técnicas tradicionais da investigação criminal e incluem por vezes o recurso aos sonhos, aos pressentimentos e às intuições. O exemplo mais célebre é o seu método tibetano. Inspirado por um sonho sobre o Tibete e pelas entradas finais do diário de Laura Palmer, Coop organiza uma experiência bizarra no meio da floresta: escreve num quadro os nomes de todos os suspeitos que incluem a letra J e pede ao ajudante que lhe leia esses nomes, enquanto atira pedras a uma garrafa de vidro. O detective falha quase todas as tentativas, mas acerta na garrafa após a menção do nome de Leo Johnson.
O método tibetano é sedutor e empolgante, mas parece estranho que surja a meio de um murder mystery. Afinal, uma das regras de ouro das histórias policiais consiste no rigor lógico da resolução do mistério: toda a actuação do detective deve assentar na análise das provas segundo métodos racionais e científicos, o que exclui a intervenção do acaso, do espiritismo ou da intuição. Foi o grande Edgar Allan Poe, pai fundador do género policial, quem primeiro falou de uma «peculiar analytic ability» do investigador, que resultaria de «an excited, or perhaps of a diseased, intelligence».
Há boas razões para estes métodos dedutivos tradicionais. Desde logo, por uma questão de fair-play: a resolução do crime é concebida como um jogo intelectual que deve envolver tanto o protagonista como o público e ambos devem estar, à partida, numa situação de igualdade no que respeita à descoberta da identidade do assassino. Mas existem também razões culturais profundas, pois o romance policial de Poe nasceu imbuído da visão determinista que caracteriza a ciência moderna. O princípio da causalidade – as mesmas causas, nas mesmas condições, produzem os mesmos efeitos – permite explicar todos os fenómenos do mundo, incluindo os crimes.
Se o inquérito policial de Edgar Allan Poe é um produto da modernidade, já o método tibetano de David Lynch é caracteristicamente pós-moderno. Cooper é um protagonista dividido que representa a confusão alienante dos nossos tempos: ele não rejeita por completo os métodos das ciências exactas, mas adiciona-lhes a intuição que permite descascar como uma cebola as camadas sobrepostas da realidade e chegar aos níveis mais profundos que a razão não atinge. Esta obsessão com o caos que se esconde sob a superfície da vida percorre toda a obra de Lynch: «Just beneath the surface there’s another world, and still different worlds as you dig deeper. I knew it as a kid, but I couldn’t find the proof. It was just a feeling.»
2006-07-21
Grup Tekkan
A versão alemã do nosso Zé Cabra: os rapazes do Grup Tekkan e o grande êxito 'Wo bist du mein Sonnenlicht'.
Die deutsche Version von Zé Cabra: Die Jungs von Grup Tekkan und der grosse Erfolg 'Wo bist du mein Sonnenlicht'.
Die deutsche Version von Zé Cabra: Die Jungs von Grup Tekkan und der grosse Erfolg 'Wo bist du mein Sonnenlicht'.
2006-07-15
O público português
Tal como se analisa e julga a qualidade de um filme, também se deveria poder criticar a qualidade do público de cinema. O critério de avaliação consistiria no que poderíamos chamar, algo pomposamente, de cultura cinéfila dos espectadores – que incluiria parâmetros como a assiduidade, o civismo ou a extensão dos conhecimentos sobre filmes. Teríamos então de concluir que o público português é uma merda. É ele o grande responsável pela crise do nosso cinema: temos excelentes cineastas, argumentistas, actores e técnicos; só falta mesmo é um público bom.
O nosso público não tem um mínimo de espírito crítico. É um público provinciano (no pior sentido) e pacóvio. Um estudo recente da Universidade Lusófona demonstrou que mais de metade dos portugueses têm uma atitude de indiferença em relação ao cinema do nosso país. Eis alguns números expressivos: 58,2% dos inquiridos afirmaram-se nem satisfeitos nem insatisfeitos com os filmes, mas 45,9% não foram capazes de dizer qual o último filme que tinham visto e 66,7% acham que a solução está na melhoria da qualidade dos diálogos. Isto diz tudo.
O problema maior é que já nem os filmes estrangeiros, bons ou maus, parecem interessar aos portugueses. Os cinemas estão cada vez mais às moscas e multiplicam-se os casos de salas históricas que encerram por falta de espectadores. À excepção de alguns fenómenos da moda ou altamente mediatizados, o cinema é hoje um espectáculo em crise entre nós e os resultados do box-office não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito.
Quanto à falta de civismo, chega a ser escandalosa. Os poucos portugueses que ainda vão ao cinema não sabem como se comportar num lugar desses, nem respeitam os outros que lá estão e também pagaram bilhete: os pés em cima das cadeiras, a ruminância das pipocas e até a escarradela furtiva para o chão já se tornaram em lugares comuns. Quando fui ao cinema ver A Costa dos Murmúrios, a algazarra de um casal de paneleiros enchia a sala toda; a meio da sessão, lá tive de me levantar e pedir aos dois que se calassem, porque não conseguia ouvir o filme; mal regressei ao meu lugar, recomeça aquela balada infernal. Ainda hoje, não sei do que trata A Costa dos Murmúrios.
O nosso público não tem um mínimo de espírito crítico. É um público provinciano (no pior sentido) e pacóvio. Um estudo recente da Universidade Lusófona demonstrou que mais de metade dos portugueses têm uma atitude de indiferença em relação ao cinema do nosso país. Eis alguns números expressivos: 58,2% dos inquiridos afirmaram-se nem satisfeitos nem insatisfeitos com os filmes, mas 45,9% não foram capazes de dizer qual o último filme que tinham visto e 66,7% acham que a solução está na melhoria da qualidade dos diálogos. Isto diz tudo.
O problema maior é que já nem os filmes estrangeiros, bons ou maus, parecem interessar aos portugueses. Os cinemas estão cada vez mais às moscas e multiplicam-se os casos de salas históricas que encerram por falta de espectadores. À excepção de alguns fenómenos da moda ou altamente mediatizados, o cinema é hoje um espectáculo em crise entre nós e os resultados do box-office não deixam quaisquer dúvidas a esse respeito.
Quanto à falta de civismo, chega a ser escandalosa. Os poucos portugueses que ainda vão ao cinema não sabem como se comportar num lugar desses, nem respeitam os outros que lá estão e também pagaram bilhete: os pés em cima das cadeiras, a ruminância das pipocas e até a escarradela furtiva para o chão já se tornaram em lugares comuns. Quando fui ao cinema ver A Costa dos Murmúrios, a algazarra de um casal de paneleiros enchia a sala toda; a meio da sessão, lá tive de me levantar e pedir aos dois que se calassem, porque não conseguia ouvir o filme; mal regressei ao meu lugar, recomeça aquela balada infernal. Ainda hoje, não sei do que trata A Costa dos Murmúrios.
2006-07-14
Modigliani
O filme pode ser uma grande merda, mas a interpretação do Andy Garcia é, como sempre, uma obra-prima.
2006-07-08
Gato Fedorento
Quando se escrever a história do surrealismo em Portugal, os nomes mais importantes serão Mário Cesariny, João César Monteiro e… os Gatos Fedorentos. A arte do fabuloso quarteto de humoristas assenta na chamada justaposição, que é um procedimento caracteristicamente surrealista. A justaposição consiste na junção de dois objectos incompatíveis sobre uma superfície que lhes é estranha: Max Ernst descreveu «o encontro casual de uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de operações» de Lautréamont como um exemplo clássico.
Esta apetência pelas «rencontres fortuites d’objets» corresponde a uma tentativa de compor as imagens segundo a lógica de funcionamento dos sonhos. Nestes, as leis da física não impõem quaisquer limitações à movimentação dos corpos e todas as combinações são possíveis. Por isso, as imagens surrealistas são tão bizarras e sedutoras: o procedimento da justaposição permite que o artista represente os níveis profundos do inconsciente e que, ao mesmo tempo, exclua o mais possível o pensamento racional.
Os programas dos Gatos Fedorentos são férteis nestas imagens. Recordemos os super-heróis que disputam partidas de ténis, as irmãs carmelitas armadas com metralhadoras ou o Napoleão Bonaparte que se debate com problemas de utilização de um computador pessoal. Todos estes números funcionam lindamente, porque aplicam com eficácia o princípio da justaposição. Mas talvez o número mais surrealista da carreira dos Gatos seja o do célebre Senhor Vítor. A discussão, já de si absurda, entre funcionários públicos e o utente protagonista é interrompida pela intromissão de uma bola de ténis gigante: um magnífico e redondo deus ex machina que pouco ou nada fica a dever ao enorme ovo engaiolado de René Magritte.
As justaposições surpreendentes não se limitaram às imagens, pois o surrealismo começou por ser um fenómeno literário. Para os seus poetas, a escrita automática, os textos colectivos, as collages e os «cadavres exquis» revelavam uma actividade inconsciente escondida por séculos de racionalismo. As palavras perdem a sua função utilitária e trivial de comunicação e passam a ser «des tremplins à l’esprit». Um exemplo expressivo retirado dos espectáculos dos Gatos Fedorentos é o já referido Senhor Vítor, fórmula como, por razões práticas, o utente do serviço público se refere a todos e quaisquer interlocutores: o nome converte-se então numa realidade puramente poética e desliga-se por completo do mundo referencial.
2006-07-05
Bur(r)ocracia (ii)
Serviço de Finanças do Lumiar, 15 horas. 30 minutos à espera na bicha para o balcão cinco. Utente brasileira pede cartão de contribuinte mas funcionária menopáusica diz que ali não têm nada e por isso que vá para o outro lado; mas no outro lado já lhe disseram para ir ao balcão cinco, ao que funcionária menopáusica responde que vai receber o cartão no correio; utente já está há três meses à espera e não recebeu nada no correio, pelo que a funcionária pergunta com quem vive, quantos são lá em casa e se alguém não terá roubado o cartão de contribuinte e que a solução é a utente brasileira fazer novo pedido e pagar uma segunda vez o mesmo cartão. Chega a minha vez. Peço uma certidão um papel qualquer coisa que diga que não tenho dívidas ao fisco mas funcionária menopáusica diz que ali no fisco não sabem nem podem saber se tenho dívidas ao fisco, ao que respondo que já antes um colega dela viu que eu não tinha dívidas ao fisco; funcionária menopáusica diz que não pode ser e quando foi isso e como se chamava esse colega que disse que eu não tinha dívidas ao fisco; respondo que não me recordo do nome de todos os funcionários das finanças com quem falei na vida mas que têm obrigação de ter uma base de dados dos contribuintes e funcionária menopáusica retorque que há muita coisa que não funciona bem e se quiser que vá de avião para a Madeira buscar o papel certidão qualquer coisa que diga que eu não tenho dívidas ao fisco. Acima das nossas cabeças, paira um enorme e branco cartaz que louva a eficiência da Administração Pública e onde se lê um garrafal SIMPLEX. E se fossem todos para o caralhex?
2006-07-04
2006-07-03
Laranja Mecânica
«Estavam lá eu, que sou o Alex, e os meus três compinchas, Georgie, Pete e Dim. E estávamos na Leitaria Korova a puxar pelas carolas sobre o que fazer durante a noite. A Korova vendia leite aditivado, leite mais velocet, synthemesc ou drencorm, que era o que estávamos a beber. E isto havia de nos espicaçar para um pouco da boa e velha ultra-violência.»
«Se há coisa que não suporto é ver um bêbedo velho e nojento a berrar aos quatro ventos velhas canções entercortadas de arrotos, como se tivesse uma nojenta orquestra enfiada no bucho. Nunca suportei ver quem quer que fosse nesse estado, qualquer que fosse a sua idade. Mas ainda mais, tratando-se de um velhadas como este.»
«É um mundo de merda, porque já não há lei nem ordem. É um mundo de merda, porque deixam os novos fazer pouco caso dos velhos, como vocês fazem. Oh, já não é um mundo para um velho como eu. Que mundo é este, afinal? Homens na Lua. E homens girando à volta da Terra. E já ninguém liga mais à lei e à ordem terrenas.»
«Eu vivia com o meu pai e a minha mãe no Bairro Municipal 18-A. Tinha sido uma noite maravilhosa e do que eu precisava agora era de um digno fim de festa com o velho Ludwig Van. Que felicidade! Que felicidade e que céu aberto! Era toda a beleza, todo o encanto feito carne! Era como se um pássaro tecesse um raro ninho de fios celestes ou como se um vinho de prata escorresse de uma nave espacial insensível às leis da gravidade.»
«Como é que vai ser a vossa vida? Um fora e dentro de instituições como esta? Para a maioria, mais dentro que fora. Ou vão escutar a palavra de Deus e aprender qual o castigo que aguarda os pecadores sem remédio no outro mundo? Sois um punhado de idiotas, vendendo a vossa progenitura por um prato de papas frias, a emoção do roubo e da violência, o desejo de viver sem trabalhar. Valerá isso a pena quando temos provas irrefutáveis, sim, provas indiscutíveis de que o inferno existe?»
«O governo não se pode preocupar com teorias penais ultrapassadas. Em breve precisaremos de todo o espaço prisional para presos políticos. Presos de delito comum como estes devem receber tratamento adequado que elimine todo o impulso criminoso. Implementação dentro de um ano. O castigo para eles nada significa. Eles até apreciam o pretenso castigo.»
«Couves... cuecas... não tem bico.»
«Li tudo sobre as flagelações e a coroa de espinhos. E via-me tomando parte em tudo, desde as chicotadas até ao martelar dos pregos, solenemente vestido de soldado romano. Gostava menos da parte final do Livro, que tinha mais de conversa fiada do que de acção e pouca-vergonha. Gosto da parte em que os judeus se flagelam para depois beberem o seu vinho judeu e se meterem nas camas com as servas das mulheres. Isso sim, interessava-me.»
«Há uma grande tradição de liberdade a defender. A liberdade é tudo. O homem comum deixa correr, trocando a liberdade por uma vida calma. É nosso dever despertá-lo, guiá-lo, empurrá-lo.»
«Se há coisa que não suporto é ver um bêbedo velho e nojento a berrar aos quatro ventos velhas canções entercortadas de arrotos, como se tivesse uma nojenta orquestra enfiada no bucho. Nunca suportei ver quem quer que fosse nesse estado, qualquer que fosse a sua idade. Mas ainda mais, tratando-se de um velhadas como este.»
«É um mundo de merda, porque já não há lei nem ordem. É um mundo de merda, porque deixam os novos fazer pouco caso dos velhos, como vocês fazem. Oh, já não é um mundo para um velho como eu. Que mundo é este, afinal? Homens na Lua. E homens girando à volta da Terra. E já ninguém liga mais à lei e à ordem terrenas.»
«Eu vivia com o meu pai e a minha mãe no Bairro Municipal 18-A. Tinha sido uma noite maravilhosa e do que eu precisava agora era de um digno fim de festa com o velho Ludwig Van. Que felicidade! Que felicidade e que céu aberto! Era toda a beleza, todo o encanto feito carne! Era como se um pássaro tecesse um raro ninho de fios celestes ou como se um vinho de prata escorresse de uma nave espacial insensível às leis da gravidade.»
«Como é que vai ser a vossa vida? Um fora e dentro de instituições como esta? Para a maioria, mais dentro que fora. Ou vão escutar a palavra de Deus e aprender qual o castigo que aguarda os pecadores sem remédio no outro mundo? Sois um punhado de idiotas, vendendo a vossa progenitura por um prato de papas frias, a emoção do roubo e da violência, o desejo de viver sem trabalhar. Valerá isso a pena quando temos provas irrefutáveis, sim, provas indiscutíveis de que o inferno existe?»
«O governo não se pode preocupar com teorias penais ultrapassadas. Em breve precisaremos de todo o espaço prisional para presos políticos. Presos de delito comum como estes devem receber tratamento adequado que elimine todo o impulso criminoso. Implementação dentro de um ano. O castigo para eles nada significa. Eles até apreciam o pretenso castigo.»
«Couves... cuecas... não tem bico.»
«Li tudo sobre as flagelações e a coroa de espinhos. E via-me tomando parte em tudo, desde as chicotadas até ao martelar dos pregos, solenemente vestido de soldado romano. Gostava menos da parte final do Livro, que tinha mais de conversa fiada do que de acção e pouca-vergonha. Gosto da parte em que os judeus se flagelam para depois beberem o seu vinho judeu e se meterem nas camas com as servas das mulheres. Isso sim, interessava-me.»
«Há uma grande tradição de liberdade a defender. A liberdade é tudo. O homem comum deixa correr, trocando a liberdade por uma vida calma. É nosso dever despertá-lo, guiá-lo, empurrá-lo.»
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