Segundo o filme Espelho Mágico, do Mestre Manoel de Oliveira, a Nossa Senhora era rica e tinha este aspecto.
2006-03-28
2006-03-27
Aquiles
O verdadeiro calcanhar de Aquiles, segundo a escritora alemã Christa Wolf: «Odysseus hatte schnell Verdacht geschöpft, ihn und den Menelaos, den alle Griechen, weil er Helena verloren hatte, insgeheim verachteten, bei der Frau gelassen, war seiner Spürnase gefolgt und fand Achill in einer abgelegnen Kammer mit einem andern Jüngling auf dem Bett. Und da der erfahrene vorausschauende Odysseus ja sich selbst, indem er sich närrisch stellte, dem Truppenaufgebot hatte entziehn wollen - wie? Das wüssten wir nicht? Ja was wüssten wir von unsern Feiden überhaupt! -, da er nicht dulden wollte, dass ein anderer davonkam, wo er bluten musste, habe er also den Achill buchstäblich am Schlafittchen in den Krieg geschleppt. Es mochte sein, dass er das schon bereute. Achill stellte nämlich allen nach: Jünglingen, nach denen ihn wirklich verlangte, und Mädchen, als Beweis, dass er wie alle war.»
(in Christa Wolf: Kassandra, München, Luchterhand, 2004, p. 99)
2006-03-20
Errâncias
«Alexander Reschke evitou o caminho que passava junto ao mercado. O abandono em que se encontrava e o cheiro que ficara pairando podiam ter feito esfriar o seu entusiasmo. Concentrado ia com certeza. Oiço-o trautear à boca fechada: qualquer coisa entre a Serenata Nocturna e a Suite de Holberg. Contornou pela direita o edifício colossal em gótico tardio, parou, hesitou quando a Travessa das Mulheres abriu com os seus patamares, teve a tentação de emborcar um copito ou outro num bar ainda aberto, talvez no Clube dos Actores, que anunciava movimento com o canto que se ouvia pela porta escancarada, resistiu e manteve-se fiel à sua boa disposição: foi em direcção ao hotel.» (in Günter Grass: Mau Agoiro)
«Errou pelas ruas nocturnas consentindo que a aragem leve e tépida das montanhas brincasse nas suas fontes, até que, por fim, num passo resoluto, como se tivesse finalmente divisado um objectivo há muito procurado, entrou num café relativamente pequeno, modesto mas acolhedor, de antigo estilo vienense, moderadamente iluminado e pouco frequentado àquela hora.» (in Arthur Schnitzler: Traumnovelle)
«Le 4 octobre dernier, à la fin d’un de ces après-midi tout à fait désoeuvrés et très mornes, comme j’ai le secret d’en passer, je me trouvais rue Lafayette: après m’être arrêté quelques minutes devant la vitrine de la librairie de L’Humanité et avoir fait l’acquisition du dernier ouvrage de Trotsky, sans but je poursuivais ma route dans la direction de l’Opéra. Les bureaux, les ateliers commençaient à se vider, du haut en bas des maisons des portes se fermaient, des gens sur le trottoir se serraient la main, il commençait tout de même à y avoir plus de monde. J’observais sans le vouloir des visages, des accoutrements, des allures.» (in André Breton: Nadja)
«A humidade vinda do rio encharcava-me os ossos. Deixei de ouvir as badaladas da Sé. Acabou-se-me o tabaco, o que ainda assim foi o pior de tudo. A comichão já não me incomodava muito, a não ser nas costas das mãos. O ardor nos tomates só começou mais tarde, pela manhã, se não estou em erro. Rabiei durante não sei quanto tempo. Não se via vivalma, nem um ladrão de carros para dar dois dedos e cravar um cigarro. Por fim, lá topei uma padaria aberta. As carcaças cairam-me na fraqueza. Costume. Tenho um pacote de manteiga escondido no meu quarto. Aposto que a puta da velha não o encontra nem que vire tudo do avesso. Já não caio noutra.» (in João César Monteiro: Recordações da Casa Amarela)
«Errou pelas ruas nocturnas consentindo que a aragem leve e tépida das montanhas brincasse nas suas fontes, até que, por fim, num passo resoluto, como se tivesse finalmente divisado um objectivo há muito procurado, entrou num café relativamente pequeno, modesto mas acolhedor, de antigo estilo vienense, moderadamente iluminado e pouco frequentado àquela hora.» (in Arthur Schnitzler: Traumnovelle)
«Le 4 octobre dernier, à la fin d’un de ces après-midi tout à fait désoeuvrés et très mornes, comme j’ai le secret d’en passer, je me trouvais rue Lafayette: après m’être arrêté quelques minutes devant la vitrine de la librairie de L’Humanité et avoir fait l’acquisition du dernier ouvrage de Trotsky, sans but je poursuivais ma route dans la direction de l’Opéra. Les bureaux, les ateliers commençaient à se vider, du haut en bas des maisons des portes se fermaient, des gens sur le trottoir se serraient la main, il commençait tout de même à y avoir plus de monde. J’observais sans le vouloir des visages, des accoutrements, des allures.» (in André Breton: Nadja)
«A humidade vinda do rio encharcava-me os ossos. Deixei de ouvir as badaladas da Sé. Acabou-se-me o tabaco, o que ainda assim foi o pior de tudo. A comichão já não me incomodava muito, a não ser nas costas das mãos. O ardor nos tomates só começou mais tarde, pela manhã, se não estou em erro. Rabiei durante não sei quanto tempo. Não se via vivalma, nem um ladrão de carros para dar dois dedos e cravar um cigarro. Por fim, lá topei uma padaria aberta. As carcaças cairam-me na fraqueza. Costume. Tenho um pacote de manteiga escondido no meu quarto. Aposto que a puta da velha não o encontra nem que vire tudo do avesso. Já não caio noutra.» (in João César Monteiro: Recordações da Casa Amarela)
2006-03-15
Sim, Sr. Ministro
A série Sim, Sr. Ministro é um magnífico objecto de estudo para os especialistas da ciência política e da linguística. A política é um domínio da actividade humana que se socorre de uma linguagem muito particular, que visa não só a manipulação do público mas também a estruturação do pensamento dos próprios governantes. Veja-se o caso da guerra do Golfo: o discurso político foi abundante em metáforas do mundo empresarial, que banalizavam o conflito armado e amesquinhavam as suas sequelas humanas, económicas e ambientais. Algo de semelhante acontece com Sim, Sr. Ministro, já que a série retrata um verdadeiro ambiente de guerra: a máquina administrativa do Estado em conflito permanente com o ministro protagonista, cujas propostas, por mais razoáveis e lúcidas que sejam, encontram sempre as maiores resistências.
Uma das armas utilizadas pelos burocratas é precisamente o palavreado complexo, altamente técnico e muitas vezes indecifrável. Esta linguagem decorre do fenómeno que Max Weber designava por profissionalização: os funcionários que exercem o poder burocrático trabalham em regime de exclusividade, no sentido de serem especializados nas suas tarefas e apenas a elas se dedicarem. Ora, esses conhecimentos técnicos específicos fazem dos altos funcionários uma peça fundamental no processo de decisão política e o modo como eles transmitem as informações aos governantes pode condicionar fortemente as suas opções. O nosso ministro queixa-se muitas vezes desse estado de coisas: «das três vezes que dei ordens com palavras de uma só sílaba, recebi relatórios incompreensíveis que diziam exactamente o contrário daquilo que eu lhes tinha pedido para dizerem».
Outro dos traços característicos da linguagem de Sim, Sr. Ministro consiste na abundância do understatement. É uma figura de retórica caracteristicamente britânica, que suaviza a linguagem e torna a realidade menos tangível: a «intrujice» converte-se em «maleabilidade moral», o «encobrimento» em «discrição responsável» e a «greve» em «harmonia industrial». Um excelente exemplo pode ser encontrado no episódio A Visita de Estado:
«O Buranda é o que costumávamos chamar de País Subdesenvolvido. Contudo, esta designação foi universalmente considerada ofensiva. Daí passaram a Países em Vias de Desenvolvimento e mais tarde a Países Menos Desenvolvidos ou PMD. Estamos agora a preparar-nos para substituir PMD por PRRH: Países Ricos em Recursos Humanos. O que significa são mais que sobrepovoados e imploram por dinheiro […] O Buranda seria uma Nação Pré-rica: Pré-rica em petróleo que poderemos explorar dentro de alguns anos. Não é de forma alguma um PQA: um Paísito Qualquer de África.»
Ou seja, a linguagem permite tornear qualquer má consciência que eventualmente existisse relativamente aos países mais pobres de África. Mais uma vez, são os problemas dos políticos com a realidade das coisas.
Poderíamos ainda acrescentar a ironia (a expressão Sim, Sr. Ministro é profundamente irónica, pois é proferida pelos funcionários quando a vontade do governante já foi completamente subjugada), os jogos de palavras e outros brilharetes dos guionistas. Mas por mais inspirados que sejam os diálogos, os melhores momentos da série são silenciosos e estão ligados à linguagem corporal dos três magníficos actores que encabeçam o elenco. Uma troca de olhares, um estalar de dedos ou um sorriso afectado podem ganhar conotações inesperadas e fascinantes: por exemplo, quando o ministro protagonista sabe da sua ascensão a chefe do governo, leva napoleonicamente a mão à barriga, num gesto tão significativo e carregado de simbolismo como a entrée royale de Luís XIV em Paris.
2006-03-09
Brokeback Mountain
Ang Lee afirmou várias vezes que Brokeback Mountain (2005) não é um filme gay, mas apenas uma história sobre a ilusão do amor. O realizador explicou em numerosas entrevistas quais eram as suas intenções: «Aquilo que me interessava era o aspecto dramático da história, o seu impacto emocional e a forma como podia ecoar nas nossas vidas, independentemente das orientações sexuais». Porém, a simpatia de Lee para com as pretensões das pessoas marginalizadas é evidente em toda a sua filmografia. E na cerimónia da entrega dos Óscares, fugiu-lhe a boca para a verdade quando proferiu um discurso eloquente e emocionado em defesa dos direitos das minorias sexuais. Não há dúvidas que Brokeback Mountain é um filme empenhado na causa dos direitos dos homossexuais.
As convicções ideológicas de Ang Lee estão presentes em toda a sua mise en scène e em particular na apetência pelos grandes cenários naturais. É um motivo que Lee foi buscar ao cinema chinês que ele tanto aprecia e que já se tornou numa imagem de marca do realizador. Dos jardins ingleses de Sensibilidade e Bom Senso à montanha mágica de Brokeback Mountain, os espaços naturais nada têm de decorativo e são também protagonistas de pleno direito, com o seu dramatismo, emotividade e simbologia. Novamente, Ang Lee: «Para mim, a montanha é a principal personagem do filme. Por isso, ela tinha de resultar bem visualmente e por isso passei tanto tempo a filmar lá no alto, ao ponto dos meus assistentes me perguntarem se era mesmo preciso demorar tanto».
O conceito de natureza em Brokeback Mountain é abrangente e inclui não apenas as paisagens mas também as pessoas e a sua sexualidade. Os heróis do filme são dois rancheiros pobres, que interagem com o espaço natural e nele projectam a sua interioridade e os seus conflitos íntimos. Os momentos de maior afecto entre ambos ocorrem muitas vezes junto de um rio, imagem simbólica da fertilidade, da morte e da renovação. Por sua vez, a montanha é um lugar de meditação e isolamento: tal como a montanha de Wudan é o lugar a que o protagonista do Tigre e o Dragão se recolhe para o treino de meditação, também o rancheiro de Brokeback Mountain parte numa viagem de introspecção e descoberta interior. O próprio nome do protagonista (Ennis significa literalmente ilha) sugere essa ideia de solidão e abandono.
A natureza selvagem e indómita da montanha contrasta com o espaço urbano. As mulheres exigentes, os sogros detestáveis (curiosamente, um deles é vendedor de máquinas) ou as crianças ruidosas fazem da cidade um lugar disfórico, que representa a América patriarcal e homofóbica dos tempos da Guerra Fria. É um modelo social que merece as maiores reservas de Ang Lee e nem os ritos e símbolos mais sagrados são poupados ao seu olhar crítico: recordemos a mordacidade com que o realizador filma os jantares em família do Dia de Acção de Graças, por contraponto às refeições solitárias e silenciosas na montanha. Mais uma vez, salta à vista a sua solidariedade com as minorias sexuais. Dir-se-á que o filme é protagonizado por um homem homofóbico, que os dois rancheiros pouco fazem para concretizar os seus sonhos de uma vida em comum e que a palavra homossexualidade nem sequer chega a ser proferida. Porém, tudo isso apenas retrata a complexidade do espírito humano. Se Ang Lee tivesse feito um filme unidimensional ou panfletário, dificilmente teria conseguido a adesão do público e estimulado as pessoas à reflexão sobre o absurdo da homofobia.
2006-03-06
Nossa Senhora & São José
«Maria: Zé, vamos ter um bébé.
Zé: O quê? Não pode ser. Eu só to esfrego entre as coxas.
Maria: Pois... não sei. Deve ter havido um imprevisto qualquer.
Zé: Quem disse que estás grávida?
Maria: Um anjo que me apareceu no quintal.
Zé: Um anjo?
Maria: Um anjo do Senhor. Chamava-se Gabriel. Tinha uma trombeta e apareceu-me no quintal.
Zé: O quê?
Maria: Apareceu-me.
Zé: Estava nu?
Maria: Não. Acho que tinha uma gabardina. Não sei bem. Brilhava muito e não dava para ver bem.
Zé: Maria, tu não andas bem. Porque não tiras uns dias de folga? As contas da loja podem esperar.
Maria: Estou-te a dizer, Zé. O Anjo Gabriel disse-me que o Senhor quer que eu tenha o filho Dele.
Zé: Pediste para te mandarem um sinal qualquer?
Maria: Claro que sim. E ele disse-me que amanhã ia começar a ficar enjoada.
Zé: Mas porque é que Deus quer um puto?
Maria: Bom... o Gabriel disse que, de acordo com o Lucas, tem a ver com o ego. Além disso, parece que prometeu aos judeus mas esteve muito ocupado até agora. Mas agora que finalmente se sente preparado para ter filhos, não quer limitar-se a fazer um de barro ou pó. Quer que haja humanos envolvidos no processo.
Zé: E está a pensar ajudar nas despesas? Deus sabe que não podemos sozinhos. Dava-me jeito uma loja maior e podia arranjar-me um daqueles contratos para fazer cruzes. Os romanos andam a pregar toda a gente a que deitam as mãos.
Maria: Querido, o Gabriel disse que não há motivo para preocupações. O miúdo tem a vida feita. Vai ser um excelente orador e ter jeito para milagres.
Zé: Ao menos isso. Olha lá, agora que estás oficialmente grávida, achas que podemos... passar à acção a sério?
Maria: Desculpa, querido. Deus quer que isto seja um parto de uma mãe virgem.
Zé: Não estou a perceber.
Maria: É isso mesmo que ouviste, Zé.
Zé: Quer dizer que não posso fazer nada?
Maria: Ele quer que arranjes um nome para o miúdo.
Zé: Cristo!
Maria: Boa, Zé. És o maior!»
(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, Novembro de 2005)
Zé: O quê? Não pode ser. Eu só to esfrego entre as coxas.
Maria: Pois... não sei. Deve ter havido um imprevisto qualquer.
Zé: Quem disse que estás grávida?
Maria: Um anjo que me apareceu no quintal.
Zé: Um anjo?
Maria: Um anjo do Senhor. Chamava-se Gabriel. Tinha uma trombeta e apareceu-me no quintal.
Zé: O quê?
Maria: Apareceu-me.
Zé: Estava nu?
Maria: Não. Acho que tinha uma gabardina. Não sei bem. Brilhava muito e não dava para ver bem.
Zé: Maria, tu não andas bem. Porque não tiras uns dias de folga? As contas da loja podem esperar.
Maria: Estou-te a dizer, Zé. O Anjo Gabriel disse-me que o Senhor quer que eu tenha o filho Dele.
Zé: Pediste para te mandarem um sinal qualquer?
Maria: Claro que sim. E ele disse-me que amanhã ia começar a ficar enjoada.
Zé: Mas porque é que Deus quer um puto?
Maria: Bom... o Gabriel disse que, de acordo com o Lucas, tem a ver com o ego. Além disso, parece que prometeu aos judeus mas esteve muito ocupado até agora. Mas agora que finalmente se sente preparado para ter filhos, não quer limitar-se a fazer um de barro ou pó. Quer que haja humanos envolvidos no processo.
Zé: E está a pensar ajudar nas despesas? Deus sabe que não podemos sozinhos. Dava-me jeito uma loja maior e podia arranjar-me um daqueles contratos para fazer cruzes. Os romanos andam a pregar toda a gente a que deitam as mãos.
Maria: Querido, o Gabriel disse que não há motivo para preocupações. O miúdo tem a vida feita. Vai ser um excelente orador e ter jeito para milagres.
Zé: Ao menos isso. Olha lá, agora que estás oficialmente grávida, achas que podemos... passar à acção a sério?
Maria: Desculpa, querido. Deus quer que isto seja um parto de uma mãe virgem.
Zé: Não estou a perceber.
Maria: É isso mesmo que ouviste, Zé.
Zé: Quer dizer que não posso fazer nada?
Maria: Ele quer que arranjes um nome para o miúdo.
Zé: Cristo!
Maria: Boa, Zé. És o maior!»
(in George Carlin: Quando é que Jesus traz as Costeletas?, Publicações Europa-América, Mem Martins, Novembro de 2005)
2006-03-01
Centelha Luminosa
O melhor e mais polémico blogue anarquista: a Centelha Luminosa. O seu criador chama-se SAM e é já um dos meus heróis da blogosfera.
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