2005-10-11

Alice

Nuno Lopes e Beatriz Batarda aceitaram um duplo desafio no filme Alice (2005). Por um lado, representar o sofrimento mais profundo a que um ser humano pode estar sujeito: o desaparecimento de um filho. Por outro lado, fazê-lo num meio – o cinema – que é pouco propício a um grau elevado de arte dramática. Na verdade, o habitat natural de um actor é o teatro: no palco, ele é o responsável último pela sua actuação e encontra uma saída livre para a sua inspiração e o seu trabalho criativo. Já o actor de cinema é mais vulnerável, porque a interpretação depende de factores que escapam ao seu controlo: a grandeza dos planos exigirá dele uma maior ou menor intensidade emocional; a iluminação revelará ou encobrirá as imperfeições da pele ou da estrutura óssea; e as necessidades de rodagem não permitirão grandes ensaios. Perante toda a confusão de maquinaria, microfones, lentes e móveis, o actor sente-se por vezes como um acessório miserável e desamparado.

O filme Alice inclui, quase furtivamente, alguns excertos da peça On Average Day, de John Kolvenbach, e permite que Nuno Lopes brilhe em ambos os meios: cinema e teatro. Na peça, o talento do protagonista está na amplitude dos gestos e na habilidade de dizer as palavras de modo simples e directo para mostrar o seu significado interno. A comunicação com o público exige uma possante projecção de voz. No cinema, o menos significa mais. O texto é substituído pelas imagens porque o filme perfeito necessita de poucos diálogos e a interpretação do Nuno é marcada pela contenção de meios: o desespero do pai emerge nos silêncios prolongados, no custo com que masca e engole as batatas fritas ou nas olheiras cavadas pela falta de sono.

Quanto a Beatriz Batarda, a sua participação é breve mas intensa e demonstra que em cinema não há pequenos papéis. A sua primeira aparição é muita expressiva e dá o mote para toda a acção: Beatriz acorda e, ainda toldada pelos efeitos do sono, pede ao marido Nuno Lopes que aqueça o leite para a filha de ambos. Porém, a pequena Alice já há muito que está ausente. Todo o filme está situado algures nessa zona fronteiriça entre a realidade e o sono, quando não se está adormecido nem completamente desperto. Em desespero, a mãe não quer acordar e as suas acções subsequentes são uma tentativa para regressar de uma vez ao mundo dos sonhos, onde ainda poderá estar junto da filha: quer quando se embebeda de soníferos, quer através da sua derradeira tentativa de suicídio. Algo de semelhante acontece com o Nuno, pois a sua linguagem corporal recria muitas vezes a de um sonâmbulo e os seus olhos estão revestidos daquela falta de brilho característica das coisas inanimadas.

Há ainda um terceiro protagonista que não deve ser esquecido: o realizador Marco Martins. Na rodagem de um filme, o público de teatro é substituído pela equipa de realização e é fundamental que a sua relação com o actor seja de fé e absoluta confiança. O próprio Nuno Lopes disse-o expressamente: «era impossível conseguir este resultado se não houvesse uma boa química com o realizador». Não há fórmulas mágicas ou infalíveis para a direcção de actores, mas uma boa comunicação é sempre essencial: o realizador deve saber transmitir com clareza os seus conceitos acerca da maneira como o filme se irá desenvolvendo, mas também acolher as sugestões do elenco que enriqueçam e aprofundem as suas personagens. Quanto a Alice, Martins escolheu a via do improviso e, como sucede com muitos cineastas principiantes e inteligentes, confiou plenamente nas qualidades do seu elenco excepcional: «não se dirige os grandes actores, olha-se para eles».

4 comentários:

Anónimo disse...

É realmente um belíssimo filme. Para mim o mais interessante filme português de há muitos anos a esta parte.
Brilhante nos silêncios dos personagens, no ruído da cidade indiferente, na cor fria que doi, na teleobjectiva que isola o protagonista transformando-o num fantasma que ningém vê ou quer ver, como naquela cena em que avança, em contra-mão por entre a multidão estendendo folhetos que ninguém aceita.
Angustiante.

Anónimo disse...

olá! encontro, então, algo mais em comum que a escrita - o cinema! Agradeço, também em nome da Joana, o teu amável mail e a oportunidade de conhecer este teu cantinho universal. Muito obrigada pela tua participação tão enriquecedora.

num outro cantinho,
margarida.
http://www.livejournal.com/users/elysee/

Nuno Cargaleiro disse...

Já está marcado para ver este fim de semana! :) comentários em breve...

renata portas disse...

olà flàvio.
jà tinha vindo cá espreitar mais cedo,mas sou uma procrastinadora,por defeito:)
ainda não vi o filme,ando em falha com o cinema ( não só o nacional)...e realmente,tenho cada vez mais curiosidade.
vi o nuno lopes em palco,recentemente e superou as boas expectativas que tinha sobre ele. a beatriz batarda,que tambem é excelente actriz,parece-me que ganha com o cinema; é um daqueles casos de amor com a camâra.
pode ser apenas uma impressão,mas parece-me que é no cinema que ela se destaca,no seu registo interpretativo.
de cada vez que falam do enredo deste filme,lembro-me do magnífico livro " A Criança e o Tempo" do Ian Mcewan...é um dos meus favoritos,e assombrou-me ( em mais do que um sentido) durante o período em que o li.
por agora,é tudo.
um abraço
renata