2005-10-31
Irreversível
O filme Irreversível (2002), de Gaspar Noé, é uma obra arrojadíssima. O arrojo não está nas suas duas sequências mais controversas, ainda que estas sejam explícitas e violentas: na primeira dessas sequências, um dos protagonistas envolve-se numa pancadaria e esmaga a cara do oponente com um extintor; na outra, assistimos à violação da linda Monica Bellucci, que se prolonga por nove penosos e intermináveis minutos. Tudo isto é chocante e perturbador, mas a maior ousadia do realizador Noé reside na forma como nos conta as coisas: Irreversível está divido em 13 partes de aproximadamente cinco minutos cada, que são dispostas numa sucessão cronologicamente inversa. Todo o filme é contado do fim para o princípio. Esta estrutura (que também vimos em Memento e Betrayal) contraria as regras mais elementares da escrita para cinema, mas a verdade é que funcionou brilhantemente. O segredo está na figura da ironia dramática.
Fala-se em ironia quando um enunciado revela, para além do seu significado primeiro e evidente, um outro significado, menos óbvio e geralmente contrário ao primeiro. Está-se aqui num plano puramente verbal. Já a ironia de Irreversível está mais ligada às situações. Pensemos no célebre exemplo de um ladrão que está a ser roubado por outro, ou na situação trágica do rei Édipo que, fugindo para escapar a um destino predito, vai precisamente ao seu encontro: há nestes casos um descompasso entre a situação desenvolvida no drama e as palavras ou actos que a acompanham, os quais são entendidos pelo público mas não pelas personagens. Isto é ironia dramática.
Em Irreversível, o espectador ocupa esse lugar privilegiado relativamente às personagens. A estrutura ousada do filme permite que conheçamos de antemão o destino trágico dos nossos heróis, enquanto que estes não suspeitam do que quer que seja e avançam irremediavelmente (ou irreversivelmente…) em direcção à sua própria destruição. Sim, tudo começa pelo clímax, mas são as informações que vão sendo fornecidas a seguir que deixam o espectador verdadeiramente incomodado. Porquê? Porque só então compreendemos como tudo foi, afinal, terrivelmente irónico: ficamos a saber que a vingança foi efectuada contra o homem errado; que pouco antes da violação, a protagonista tinha feito amor com o namorado e conversado longamente sobre os prazeres do sexo; que ela, sem o saber, desperdiçou todas as pequenas oportunidades de evitar a sua agressão; e que tudo aconteceu precisamente quando estava grávida.
Se o filme tivesse sido contado de forma convencional, não teria nada de irónico: seria apenas a história gratuita e mais ou menos banal de uma mulher violada na rua e que depois é vingada pelos amigos. Tal como está estruturado, o argumento acentua não os acontecimentos trágicos do final da noite, mas as razões que conduziram à sua ocorrência. É isto que torna Irreversível tão perturbador, porque não há verdadeiramente razões para o que se passou: aconteceu com os protagonistas, como poderia ter acontecido em qualquer altura com qualquer um de nós. Daí a grande lição de Gaspar Noé: se «todo o mundo é um palco», então talvez haja um encenador supremo que nos manipule a todos como marionetas e nos reserve, sem que nos demos conta, as maiores infelicidades logo ao virar da rua. Será que Deus também se interessa pelo espectáculo?
2005-10-28
Cavaco Silva
Uma das qualidades dos grandes líderes democráticos é a sua coragem física. Os titulares dos órgãos do poder político são meros intérpretes e mediadores da vontade do eleitorado e, nestas coisas, o melhor mesmo é falar directamente com o povo e ouvir as suas reivindicações. Por exemplo, o alemão Walther Rathenau era conhecido pelo seu carisma e contacto com as multidões de todos os estratos; todas as manhãs, à mesma hora, saia da sua casa na Grunewald e dirigia-se à Wilhelmstrasse num carro descoberto – apesar do perigo evidente para a sua segurança pessoal. Já os grandes dirigentes nazis só raramente saíam e, quando o faziam, rodeavam-se de verdadeiros exércitos – o que diz muito sobre a natureza do seu regime. Hoje e ressalvadas as devidas proporções, o nosso Cavaco Silva parece seguir o exemplo nazi em matéria de segurança pessoal: quando se trata de confrontar directamente as pessoas, ele é, na verdade, covarde como uma lebre. Todos nós vimos o espectáculo que se seguiu ao anúncio da sua candidatura: apesar de estar no interior do Centro Cultural de Belém e rodeado pelos seus próprios militantes, o Cavaco nem assim prescindiu de um autêntico regimento de guarda-costas. E se mesmo estes falhassem, o candidato podia ainda contar com a presença tutelar e silenciosa da sua poetisa de Boliqueime: «se não se portarem bem, levam com um poema».
2005-10-18
Viciado em Cinema e TV
Um excelente blogue que é uma espécie de cinéfilos anónimos: o Viciado em Cinema e TV, do Nuno Cargaleiro. O título é magnífico e diz tudo.
2005-10-17
2005-10-14
2005-10-11
Alice
Nuno Lopes e Beatriz Batarda aceitaram um duplo desafio no filme Alice (2005). Por um lado, representar o sofrimento mais profundo a que um ser humano pode estar sujeito: o desaparecimento de um filho. Por outro lado, fazê-lo num meio – o cinema – que é pouco propício a um grau elevado de arte dramática. Na verdade, o habitat natural de um actor é o teatro: no palco, ele é o responsável último pela sua actuação e encontra uma saída livre para a sua inspiração e o seu trabalho criativo. Já o actor de cinema é mais vulnerável, porque a interpretação depende de factores que escapam ao seu controlo: a grandeza dos planos exigirá dele uma maior ou menor intensidade emocional; a iluminação revelará ou encobrirá as imperfeições da pele ou da estrutura óssea; e as necessidades de rodagem não permitirão grandes ensaios. Perante toda a confusão de maquinaria, microfones, lentes e móveis, o actor sente-se por vezes como um acessório miserável e desamparado.
O filme Alice inclui, quase furtivamente, alguns excertos da peça On Average Day, de John Kolvenbach, e permite que Nuno Lopes brilhe em ambos os meios: cinema e teatro. Na peça, o talento do protagonista está na amplitude dos gestos e na habilidade de dizer as palavras de modo simples e directo para mostrar o seu significado interno. A comunicação com o público exige uma possante projecção de voz. No cinema, o menos significa mais. O texto é substituído pelas imagens porque o filme perfeito necessita de poucos diálogos e a interpretação do Nuno é marcada pela contenção de meios: o desespero do pai emerge nos silêncios prolongados, no custo com que masca e engole as batatas fritas ou nas olheiras cavadas pela falta de sono.
Quanto a Beatriz Batarda, a sua participação é breve mas intensa e demonstra que em cinema não há pequenos papéis. A sua primeira aparição é muita expressiva e dá o mote para toda a acção: Beatriz acorda e, ainda toldada pelos efeitos do sono, pede ao marido Nuno Lopes que aqueça o leite para a filha de ambos. Porém, a pequena Alice já há muito que está ausente. Todo o filme está situado algures nessa zona fronteiriça entre a realidade e o sono, quando não se está adormecido nem completamente desperto. Em desespero, a mãe não quer acordar e as suas acções subsequentes são uma tentativa para regressar de uma vez ao mundo dos sonhos, onde ainda poderá estar junto da filha: quer quando se embebeda de soníferos, quer através da sua derradeira tentativa de suicídio. Algo de semelhante acontece com o Nuno, pois a sua linguagem corporal recria muitas vezes a de um sonâmbulo e os seus olhos estão revestidos daquela falta de brilho característica das coisas inanimadas.
Há ainda um terceiro protagonista que não deve ser esquecido: o realizador Marco Martins. Na rodagem de um filme, o público de teatro é substituído pela equipa de realização e é fundamental que a sua relação com o actor seja de fé e absoluta confiança. O próprio Nuno Lopes disse-o expressamente: «era impossível conseguir este resultado se não houvesse uma boa química com o realizador». Não há fórmulas mágicas ou infalíveis para a direcção de actores, mas uma boa comunicação é sempre essencial: o realizador deve saber transmitir com clareza os seus conceitos acerca da maneira como o filme se irá desenvolvendo, mas também acolher as sugestões do elenco que enriqueçam e aprofundem as suas personagens. Quanto a Alice, Martins escolheu a via do improviso e, como sucede com muitos cineastas principiantes e inteligentes, confiou plenamente nas qualidades do seu elenco excepcional: «não se dirige os grandes actores, olha-se para eles».
O filme Alice inclui, quase furtivamente, alguns excertos da peça On Average Day, de John Kolvenbach, e permite que Nuno Lopes brilhe em ambos os meios: cinema e teatro. Na peça, o talento do protagonista está na amplitude dos gestos e na habilidade de dizer as palavras de modo simples e directo para mostrar o seu significado interno. A comunicação com o público exige uma possante projecção de voz. No cinema, o menos significa mais. O texto é substituído pelas imagens porque o filme perfeito necessita de poucos diálogos e a interpretação do Nuno é marcada pela contenção de meios: o desespero do pai emerge nos silêncios prolongados, no custo com que masca e engole as batatas fritas ou nas olheiras cavadas pela falta de sono.
Quanto a Beatriz Batarda, a sua participação é breve mas intensa e demonstra que em cinema não há pequenos papéis. A sua primeira aparição é muita expressiva e dá o mote para toda a acção: Beatriz acorda e, ainda toldada pelos efeitos do sono, pede ao marido Nuno Lopes que aqueça o leite para a filha de ambos. Porém, a pequena Alice já há muito que está ausente. Todo o filme está situado algures nessa zona fronteiriça entre a realidade e o sono, quando não se está adormecido nem completamente desperto. Em desespero, a mãe não quer acordar e as suas acções subsequentes são uma tentativa para regressar de uma vez ao mundo dos sonhos, onde ainda poderá estar junto da filha: quer quando se embebeda de soníferos, quer através da sua derradeira tentativa de suicídio. Algo de semelhante acontece com o Nuno, pois a sua linguagem corporal recria muitas vezes a de um sonâmbulo e os seus olhos estão revestidos daquela falta de brilho característica das coisas inanimadas.
Há ainda um terceiro protagonista que não deve ser esquecido: o realizador Marco Martins. Na rodagem de um filme, o público de teatro é substituído pela equipa de realização e é fundamental que a sua relação com o actor seja de fé e absoluta confiança. O próprio Nuno Lopes disse-o expressamente: «era impossível conseguir este resultado se não houvesse uma boa química com o realizador». Não há fórmulas mágicas ou infalíveis para a direcção de actores, mas uma boa comunicação é sempre essencial: o realizador deve saber transmitir com clareza os seus conceitos acerca da maneira como o filme se irá desenvolvendo, mas também acolher as sugestões do elenco que enriqueçam e aprofundem as suas personagens. Quanto a Alice, Martins escolheu a via do improviso e, como sucede com muitos cineastas principiantes e inteligentes, confiou plenamente nas qualidades do seu elenco excepcional: «não se dirige os grandes actores, olha-se para eles».
2005-10-10
2005-10-02
João Vuvu
«Por isso é que se lembraram de enfiar uma grande patranha nos cornos de um carpinteiro a quem a mulher, uma puta judia, apareceu de barriga. Que não desse ouvidos, não perdesse as estribeiras, que o caso não era de repúdio, antes pelo contrário. Tinha havido, é certo, intervenção divina, obra de uma pomba, mas estava tudo nos conformes, em estado de graça. Mais e melhor: enquanto a aldeola ria a bandeiras despregadas, convenceram o néscio que a boa-nova era para ser espalhada pelo mundo fora: finalmente, coisa nunca vista, ia nascer o filho de Deus. Tarde piaste, arrepelava-se José, tocado pela luz. Ó Maria, descobrimos a imaculada fornicação e esqueci-me de apontar a fórmula. Olhou de soslaio para os pacóvios da terrinha, fez a trouxa e abalou com a mulher a cavalo num burro. Talvez tenha deitado contas à vida e chegado à conclusão que não ganhou para o susto. O bendito fruto fez-se homem e como qualquer pantomineiro que se preze, limitou-se a papaguear a lengalenga que toda a gente já estava farta de saber: que esta vida é um vale de lágrimas.»
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