2005-09-29

Bocage

Imaginem isto: o autor deste blogue, enfiado numas ceroulas e com uma ridícula cabeleira loura, a correr furiosamente na perseguição do poeta Bocage (o sempre excelente Miguel Guilherme). Vejam na RTP-1, em Janeiro de 2006.

2005-09-26

She Hate Me


She Hate Me (2004) é um caso interessante de intertextualidade. O filme de Spike Lee dialoga constantemente com diversas obras cinematográficas que o precederam e que surgem, de forma mais ou menos explícita, como uma espécie de textos palimpsésticos. Claro que isto não significa nenhum plágio ou falha de originalidade por parte de Lee, pois a intertextualidade é, na verdade, uma característica essencial de todo o texto cinematográfico. Também não significa que a relação do realizador com os seus hipotextos seja necessariamente admirativa: por vezes, a intertextualidade pode funcionar como um meio de desqualificar, de contestar e destruir um código vigente. Aliás, Spike Lee sempre foi conhecido pela sua irreverência demolidora.

Um dos filmes referenciados é O Padrinho. Numa das melhores cenas, o mafioso Turturro imita na perfeição a célebre arenga de Marlon Brando a respeito do negócio das drogas. Um dos chefes levanta-se e diz: «Eu também não acredito em drogas. Durante anos, paguei mais à minha gente para eles não se meterem nesse tipo de negócio. Alguém vem ter com eles e diz: ‘Tenho pó branco. Se fizerem um investimento de dois, três mil dólares, conseguimos um lucro de 50 mil’. Eles não conseguem resistir. Quero controlar isto como um negócio, para o manter respeitável. Não a quero nas escolas. Não a quero vendida às crianças. É uma infâmia. Vamos manter o tráfico entre os pretos, os de cor. São animais, de qualquer modo.» A intertextualidade surge aqui sob a forma da citação explícita, mas não tem nada de admirativa. Bem pelo contrário, o realizador acrescenta-lhe uma boa dose de condescendência – que é a forma mais acintosa de desprezo – e da ironia amarga que lhe é tão característica. Mesmo quando cita, Spike Lee é original.

Outra referência, menos evidente mas igualmente corrosiva, é feita a O Nascimento de Uma Nação. A obra-prima de D. W. Griffith sempre despertou sentimentos contraditórios: por um lado, admiramos o seu pioneirismo técnico e a forma brilhante como estabeleceu ne varietur as regras da gramática visual; por outro, devemos condenar a sua ideologia escandalosamente racista. Na sequência mais controversa do filme, a branca e virginal Mae Marsh resiste aos avanços do negro Walter Long e suicida-se. A sua morte despoletará a revolta do Ku Klux Klan – herói colectivo do filme – contra o domínio negro da sociedade americana. No final, um Jesus Cristo sorridente mete todos os pretos num barco e devolve-os ao continente africano de onde vieram. Para Griffith, a mistura de brancos e negros é condenável, já que significaria o fim de ambas as raças. Por isso, seria moralmente preferível morrer do que ter um relacionamento íntimo com um homem de pele escura.

Quase um século depois de O Nascimento de Uma Nação, Spike Lee responde a esta sequência controversa. Já o tinha feito em The Answer, mas agora é ainda mais corrosivo. Desta vez, o realizador concretiza um dos piores pesadelos de Griffith e dos racistas brancos: um protagonista negro que se relaciona sexualmente com mulheres de todas as raças e com as quais tem, de uma assentada, 19 filhos! Parece esquisito que isto surja numa história sobre corrupção, mas nenhum detalhe é inútil ou faz perder a noção do todo. De todos os filmes de Lee, este é seguramente o seu fresco mais completo e grandioso da América dos nossos dias e que melhor nos explica os males que a afligem – sempre do ponto de vista da minoria africana. Novamente, O Nascimento de Uma Nação: no filme de Griffith, os negros são a causa da ruína da nação e os seus líderes são parodiados como grosseiros ou ridículos e fazem aprovar leis que lhes permitem casar com as brancas; em She Hate Me, as personagens satíricas e unidimensionais são os dirigentes brancos – quer os membros da comissão parlamentar de inquérito, quer o executivo Woody Harrelson – e cabe aos negros defender a integridade da América.

2005-09-21

Jean Hill

«Jean Hill (JH): Eu namorava na altura com um branco chamado Skip. A minha mãe, sempre que atendia o telefone, berrava ‘És branco ou és preto?!’ e se respondiam que eram brancos, ela desligava o telefone… [risos maliciosos] …Mas quando eu conseguia falar com o Skip, ela dizia ‘Esse homem não gosta de ti’ e não sei mais o quê. A minha mãe é uma racista e o John [Waters] e os outros gozavam comigo e diziam que ela era uma Ku Klux Klan negra e que queimava cruzes nos relvados dos brancos.

Jack Stevenson (JS): Então o John chegou a conhecê-la?

JH: Sim, sim!!! Ela correu-o de casa!!! Ela dizia que eu estava a ser explorada por ele. Valha-me Deus, ela sabe esgotar a paciência dos brancos! Eu nem sequer cheguei a apresentá-la! Ela hoje é mais simpática do que era antes. Porque ela aprendeu a aceitar que são estas as pessoas que eu gosto e que eu sou assim mesmo. Mas nos primeiros tempos, 1968, 69, 70 até 75, ó meu Deus, ela era terrível! Pergunta ao John [risos] Ela dizia ao John… “tu usaste a minha filha!” – Porque eu dizia ao John, tu tens de conhecer a minha mãe, ela passa a vida a dizer que eu sou usada. E muitas pessoas meteram-me isso na cabeça. Mas, porque ela – o John não sabe disto, não sei se ele chegou a saber – eu escrevi-lhe uma carta de dezoito páginas. Depois, eu descobri que ele tinha dado 450 dólares a uma rapariga, outra rapariga – eu acabei por conhecer pessoalmente estas pessoas… a mim, acho que ofereceu mais dinheiro do que a qualquer delas. Mas também houve duas pessoas que me tentaram convencer a fazer este filme. Eu nunca o tinha visto nos jornais, nunca o vi em lado nenhum.

JS: E esse filme era DESPERATE LIVING?

JH: Exacto. Eu estava no apartamento de um amigo meu, que era o Sonny Smith, e ele falou com o Sonny e o Sonny disse-me ‘o John está a chegar’ e quer uma gorda para um filme dele. Eu desci para ter com ele e gostei imediatamente do John, mas não sabia se ele tinha gostado de mim. Ele deixou-me tão nervosa que quando fui para lhe apertar a mão, apertei-lhe o pirilau e abanei-o [risos]. Ele escreveu isto no livro Shock Value.

JS: Sim, ele diz que você o apalpou no primeiro encontro.

JH: Nem mais, eu agarrei a fruta e disse [num tom formal] “Olá Senhor Waters, como está?” – Porque é sempre aí que eu agarro nos homens quando estou nervosa.

JS: Então agarrou-lhe no pirilau?

JH: Exactamente! [gargalhadas] Eu sou famosa pelo meu aperto de mão ao pirilau.

JS: Sim, ele disse em Shock Value que isso não o incomodou nada. Se alguma vez houve um primeiro encontro notável, foi esse!»


(in Jack Stevenson: Desperate Visions, Creation Books, Londres, 1996, p. 143-144)

2005-09-15

Veio do Outro Mundo


Há tempos, o cineasta Stephen Frears veio a Lisboa e proferiu uma conferência memorável sobre a sua arte. Quando um membro do público lhe perguntou qual era o segredo da realização cinematográfica, Frears respondeu que não havia segredo nenhum ou, se houvesse, seria apenas isto: saber contar com clareza uma história. Parece simples, mas a simplicidade em cinema é, na verdade, muito complicada. Contar uma história em imagens cinematográficas exige pessoas, dinheiro e tecnologia e cabe ao realizador juntar eficazmente todos esses elementos. Além de Frears, um dos realizadores que mais se notabilizou pelo talento narrativo é o Mestre John Carpenter. O filme Veio do Outro Mundo (1982) é um exemplo magnífico da transparência do seu cinema: não há um único momento no filme que seja inútil, redundante ou aborrecido e tudo existe em função de uma excelente história de Don Stuart.

Carpenter investe todo o primeiro terço de Veio do Outro Mundo na descrição do antagonista e é importante que o tenha feito. Tal como um homem se define pelos inimigos que tem, também o protagonista de um filme necessita de bons oponentes, pois não há heroísmo nenhum em suplantar pequenas adversidades. John Carpenter sempre gostou de levar os seus heróis ao limite das suas forças e neste filme concebeu um dos vilões mais poderosos e fascinantes de sempre: um organismo extraterrestre sem morfologia própria, que percorre o espaço e o tempo na busca de seres vivos, incluindo humanos, que assimila e imita na perfeição.

Mas um inimigo poderoso como este não valeria muito, se a solução estivesse disponível ao virar da esquina ou à distância de um telefonema. Os doze protagonistas estão irremediavelmente isolados do mundo exterior e o realizador, como um professor minucioso e paciente, explica-o repetidas vezes. A sequência de abertura é muito instrutiva: um cão é misteriosamente perseguido na neve e os planos gerais das montanhas da Antárctica, entremeados com imagens do quotidiano da estação norte-americana, localizam os nossos heróis no meio desta imensidão desértica e gelada. A tempestade de neve, a destruição do rádio e a inutilização do helicóptero vão agudizar ainda mais esse sentimento de solidão e abandono.

Tudo isto prepara o espectador para um dos momentos mais emocionantes de todo o filme: o teste sanguíneo aos habitantes da estação. A sequência é memorável, porque junta dois ingredientes fundamentais do cinema de terror: a surpresa e o suspense. Hitchcock distinguiu-os na sua célebre entrevista a François Truffaut e ilustrou as suas considerações com o exemplo hipotético de uma bomba oculta debaixo de uma mesa, tendo concluído que o suspense implica o fornecimento ao espectador de informações suplementares que as personagens não possuem. Isto leva-nos de volta à sequência do teste do sangue. À medida que as diversas amostras vão sendo queimadas, a expectativa cresce até ao insustentável, pois sabemos que um dos ocupantes é um impostor: isto é suspense. A surpresa surge quando a criatura é desmascarada e irrompe num frenesim de violência.

Claro que a necessidade de clareza não implica que um filme seja minuciosamente explicado até ao último fotograma e poderão existir zonas menos iluminadas de ambiguidade e incerteza, se for essa a intenção do realizador. O extraordinário desfecho de Veio do Outro Mundo, por exemplo, é tudo menos esclarecedor. Chegou a ser filmado um final optimista, mas o realizador, benza-o Deus, preferiu a solução mais controversa: os dois protagonistas são abandonados no meio da tempestade de neve e nada nos garante que não tenham sido contaminados ou que venham a ser socorridos.

2005-09-12

Blogues excelentes

Mais alguns excelentes blogues para colocar no topo da agenda: Para acabar de vez com a cultura, O Acidental - que agora conta com a participação da grande Ana Albergaria - e Le Petit Fred.

2005-09-05

Ourivesaria judaica

«A vida é um sonho para os sábios, um jogo para os tolos, uma comédia para os ricos, uma tragédia para os pobres.» Sholom Aleichem

«Se ao menos Deus me desse um sinal, como um grande depósito em meu nome num banco suíço.» Woody Allen

«Aprender começa por escutar.» Noah Ben Shea

«A vida, tal como ela realmente é, não é uma Batalha entre o Mal e o Bem, mas entre o Mal e o Pior.» Joseph Brodsky

«A arte é o esforço permanente para competir com a beleza das flores e nunca conseguir ser bem sucedido.» Marc Chagall

«Os homens geralmente não são sinceros em matéria de sexo. Eles não revelam de bom grado a sua sexualidade e usam um sobretudo grosso – um manto de mentiras – para cobri-la, como se estivesse mau tempo no mundo do sexo.» Sigmund Freud

«A experiência é uma boa escola, mas as propinas são elevadas.» Heinrich Heine

«Um cobarde é um herói com mulher, filhos e uma hipoteca.» Martin Kitman

«Ser judeu é ser um amigo da humanidade, um arauto da liberdade e da paz.» Ludwig Lewisohn

«Onde todos pensam o mesmo, ninguém pensa muito.» Walter Lippman

«Experiência – um pente que a vida nos dá quando já não temos cabelo.» Judith Stern

«Não sei dar a fórmula do sucesso, mas sei dar a fórmula do fracasso: tentar agradar a toda a gente.» Herbert Bayard Swope

«A política é a ciência de quem fica com o quê, quando e onde.» Sidney Hillman

2005-09-01

À Boleia pela Galáxia


Há dois momentos do filme À Boleia pela Galáxia (2005), de Douglas Adams, que são memoráveis. Um é a queda do cachalote no planeta Magrathea. O outro é a solução do grande mistério da vida, do universo e de tudo o resto. Adams diz-nos que a resposta consiste simplesmente num número: o 42. A sequência, que é a mais importante de todo o filme, tem intrigado muita gente. A busca de uma teoria unificadora do universo sempre foi uma espécie de Santo Graal da comunidade científica mundial e não é de todo inconcebível que a solução resida num número. Mas porquê 42? Na realidade, o número não significa nada de especial e é nisso que está a graça toda. Adams escolheu 42 simplesmente porque lhe soava bem: em inglês, a alternância dos sons ‘or’, ‘ee’ e ‘oo’ de forty-two produz um efeito cómico. Apenas isso.

Quanto à queda mortal do cachalote, talvez não seja tão célebre como a resposta ao sentido da vida, mas é igualmente intrigante. Nos curtos segundos de vida de que dispõe, o pobre cetáceo procura dar resposta a algumas questões existenciais e diverte-se a atribuir nomes às coisas: o mundo, o estômago, o vento, a cauda ou o solo. A sequência é fascinante porque, em poucas palavras, diz muito sobre o grande mistério da linguagem humana.

Antes do cachalote de Adams, houve um outro colosso que se interessou pela quaestio do significado: o suíço Ferdinand de Saussure, autor do célebre Cours de Linguistique Générale e pai amantíssimo da linguística moderna. Para Saussure, a linguagem é um sistema de relações internas, uma rede de unidades linguísticas que existem umas em função das outras e independentemente de quaisquer outros factores externos. O modelo é anti-referencial, porque arreda do seu seio tudo o que seja extra-linguístico: o signo é uma entidade dual que une não nomes e referentes, mas sim conceitos (significados) e formas acústicas (significantes). Tudo se passa, pois, no interior de um sistema linguístico fechado e autónomo.

O modelo estruturalista de Saussure suscita muitas dúvidas, até porque deixa inexplicada a relação de significação: saber que relações semânticas existem entre as palavras não equivale a conhecer o seu significado. Por isso, a abordagem da semântica cognitiva, que contradiz abertamente a estruturalista, diz-nos que excluir radicalmente da linguística o problema do referente é um erro. A chave está antes na ligação com o mundo: o significado não pode ser dissociado da nossa experiência da realidade, que é perceptiva, física, psicológica, mental, cultural e social.

Estas considerações gerais sobre a semântica cognitiva levam-nos de volta ao malogrado cachalote de À Boleia pela Galáxia. Quando o cetáceo escolhe as palavras com que baptiza as coisas do mundo, não o faz de modo arbitrário. Por exemplo, a respeito do vento: «And hey, what about this whistling roaring sound going past what I’m suddenly going to call my head? Perhaps I can call that... wind! Is that a good name? It’ll do... perhaps I can find a better name for it later when I’ve found out what it’s for. It must be something very important because there certainly seems to be a hell lot of it.» Ou seja, o significado de wind (vento) é cunhado com base na experiência desse fenómeno atmosférico, que é considerada suficientemente importante para ser codificada em palavras. Isto é semântica cognitiva. Inclusivamente, o cachalote chega a afirmar que se reserva a possibilidade de mais tarde vir a encontrar uma palavra mais adequada à conceptualização do vento. O mesmo se diga a propósito do solo: «Hey! What’s this thing suddenly coming toward me very fast? Very, very fast. So big and flat and round, it needs a big wide-sounding name like ... ow ... ound ... round ... ground! That’s it! That’s a good name – ground!»