2006-12-20
Match Point
Match Point (2006) é o melhor filme de Woody Allen. Público e crítica acolheram entusiasticamente este filme, numa altura em que a carreira do Allen bem precisava dessa lufada de ar fresco. Isto é um pouco surpreendente, se considerarmos que o realizador foi buscar inspiração a um género dramático que todos nós julgávamos morto: a tragédia grega. Friedrich Nietzsche fala mesmo de um suicídio da tragédia, que teria morrido sem deixar descendência. Porém, ela nunca esteve verdadeiramente morta, já que a sua essência – a visão trágica do mundo – sempre se manifestou no romance, na música, nas artes plásticas ou no cinema. Com o filme de Allen, ela ressurge com espantosa fidelidade aos originais gregos: Match Point não é apenas uma obra trágica, mas uma verdadeira e própria tragédia.
Os mais puristas talvez não estejam de acordo. Dirão que a estrutura e o assunto são indiscutivelmente trágicos, mas que não estão presentes no filme os elementos estéticos que fizeram a imagem de marca das tragédias áticas, nomeadamente o coro, a música e a dança. Contudo, a tragédia revela mais uma vez a sua grande capacidade de transformação. Todos esses elementos marcam efectivamente presença neste Match Point, mas modificados e adaptados à sensibilidade do público dos nossos dias: o coro paira como um espírito agoirento sobre os comentários dos protagonistas a respeito da condição humana e a música da tragédia ática é substituída pelo seu equivalente actual, a ópera.
O realizador leva ao limite essa fidelidade à tragédia no momento mais fascinante e memorável do filme: o confronto do protagonista com os espíritos das suas vítimas. A mise en scène de Woody Allen é perfeita. A iluminação austera, a nobreza das falas e a solenidade dos intérpretes dão à sequência o ambiente próprio de uma cerimónia misteriosa. Tudo isto evoca o tempo longínquo da tragédia ática. Junto dos gregos, ela era concebida simultaneamente como um ritual religioso, cívico e uma manifestação artística. Todos os movimentos, gestos e palavras possuíam uma solenidade própria; nada era deixado ao acaso, tudo tinha o valor de signo, de símbolo.
O maior obstáculo ao carácter perfeito e regular da tragédia de Woody Allen parece estar na ausência de um verdadeiro herói trágico. Se toda a tragédia aborda acções nobres e se ela envolve o espectador precisamente porque ele se identifica com o herói, então o filme de Allen deveria estar votado ao fracasso. O seu protagonista é um arrivista da pior espécie, um vigarista que não olha a meios para atingir os seus fins e que dificilmente conquistará a simpatia do público. Porém, a tragédia não possui um verdadeiro valor moral. Os protagonistas não se tornam trágicos pela força das suas convicções morais, mas sim pela sua ambiguidade. O professor de ténis de Match Point não é um assassino frio e sanguinário, mas um homem dominado pelas suas dúvidas e paixões. Tudo nele é intenso, dionisíaco, maior que a vida, ou seja, trágico.
As emoções arrebatadas de Match Point aproximam-no irresistivelmente do drama de Eurípides, que também fornece a tese central do filme sobre o poder do acaso. Não que o poeta de Salamina seja um ateu, porque ele não nega a existência de poderes superiores; os deuses existem e tecem destinos, mas a sua direcção metódica é crescentemente substituída pela força do acaso. Os cortes de ténis são o palco perfeito para uma tragédia destas, porque muito do jogo depende também da sorte. As bolas que balançam precariamente sobre a rede ganham então um significado duplamente simbólico: representam a fragilidade do protagonista trágico, que representa, por sua vez, a fragilidade da própria condição humana.
2006-12-19
Pasmos Filtrados
O melhor blogue de cinema (depois do meu, claro): Pasmos Filtrados, do Francisco Mendes.
2006-12-11
Scarlett Johansson
O número de telefone da Scarlett Johansson: 02079460996.
Die Telefonnumer von Scarlett Johansson: 02079460996.
2006-12-06
2006-12-02
A Corda
A Corda (1948) é a obra mais controversa de Alfred Hitchcock. O filme é, ainda hoje, uma espécie de esqueleto no armário na filmografia do mestre, não só pela inovadora técnica de rodagem, mas também pelo arrojo do seu assunto: o argumento inspirou-se no sórdido processo Leopold-Loeb e é protagonizado por jovens homossexuais que assassinam um amigo apenas pelo prazer de matar. Isto é chocante, perturbador e absurdo, mas talvez nos pareça menos estranho se reflectirmos um pouco sobre o carácter e as intenções dos protagonistas. Eles são, na verdade, os últimos representantes de uma figura que julgávamos desaparecida há muito: o dandy.
As características do dandy são brilhantemente traçadas em O Pintor da Vida Moderna, de Charles Baudelaire. O magnífico texto é uma espécie de tratado constitucional na matéria e todas as obras sobre dandismo, incluindo o filme de Hitchcock, vão aí buscar inspiração. Baudelaire fala de um modelo de homem rico, ocioso e elegante, que vagueia por entre as multidões das grandes cidades. O que busca o dandy? A descoberta da beleza do momento presente e o registo daquilo que poderíamos designar por modernidade, de que ele se tornaria uma espécie de símbolo. Porém, mantém uma relação ambígua com a sociedade do seu tempo: mais insolente que transgressor, o dandy recusa esse mundo, mas nunca o desafia abertamente.
A ligação do dandy às artes contagia todos os aspectos da sua existência. Se a arte é um refúgio contra a acção, o dandy é um ser indolente que vive ao arrepio do ritmo vertiginoso da vida moderna. E se a obra artística absorve todo o tempo e energias do autor, ele deverá remover do seu quotidiano quaisquer obstáculos que se interponham entre ele e a sua criação, em particular a família: lar conjugal, mulher (amante, esposa ou mãe) e filhos. Todas estas características assentam como uma luva aos protagonistas de A Corda. Eles são dois jovens universitários cultos, inteligentes e sofisticados, que constituem uma família homossexual encabeçada pelo antigo professor de liceu e descrevem o homicídio como uma obra de arte.
A outra referência fundamental em A Corda é Friedrich Nietzsche. O filme retoma as suas teorias do super-homem, que também tinham sido referidas em Lifeboat e que fornecem a base intelectual para o crime dos protagonistas. Em Die fröhliche Wissenchaft, Nietzsche faz o elogio dos homens superiores: «Comparada à natureza vulgar, a natureza superior é a mais irrazoável – porque o homem nobre, generoso, aquele que se sacrifica, sucumbe efectivamente aos seus instintos e, nos seus melhores momentos, a razão faz uma pausa».
O dandy de Alfred Hitchcock cede perante essa paixão nietzschiana. Os protagonistas do filme já não se limitam a remoer o seu desprezo pelas pessoas vulgares, mas tomam parte activa na sua eliminação. Este é o seu grande erro, porque o mundo não deixará de reagir de forma igualmente violenta: quando o professor descobre o crime dos ex-alunos, afirma expressamente que os entregará à sociedade para serem executados e, com isso, consumará a extinção definitiva dos dandies. Baudelaire, com notável intuição, já a tinha previsto no Pintor da Vida Moderna e descreve o dandy como um sol poente que caminha indolentemente para o seu fim. Em A Corda, esse crepúsculo não é apenas metafórico: a história começa às 19 e 30 e termina às 21 e 15 e Hitch não poupou esforços para que tudo fosse filmado com realismo e perfeição.
Subscrever:
Mensagens (Atom)