
Os filmes de Steven Spielberg deixam-nos com o coração dividido ao meio. É verdade que Spielberg não é o cineasta mais profundo que existe e que a sua visão do mundo é muitas vezes pueril, simplista e ingénua. Em contrapartida, o realizador da Lista de Schindler sempre revelou uma energia notável e um grande conhecimento das técnicas dramáticas e dos princípios fundamentais da psicologia da percepção e da compreensão que as regem. Foram estas qualidades que fizeram de Spielberg o cineasta mais famoso da actualidade e um ícone da cultura popular, que ombreia com nomes como Mark Twain, Walt Disney, Norman Rockwell, Ernest Hemingway ou Aaron Copland.
O extraordinário filme Tubarão (1975) é, ainda hoje, a melhor coisa que Steven Spielberg fez em cinema. Curiosamente e talvez por causa das filmagens longas e conturbadas, o cineasta nunca gostou muito do resultado final: «quando revejo o filme, tenho a sensação que foi outra pessoa que o realizou». A afirmação é surpreendente, pois Tubarão é um verdadeiro filme de autor, naquele sentido particular que foi formulado pelos críticos da Nouvelle Vague. O projecto dos produtores Richard Zanuck e David Brown começou por ser o de um típico filme de aventuras, cuja raison d’être consistia exclusivamente no sucesso comercial; porém, o jovem realizador depressa se impôs e deixou indeléveis as marcas do seu génio criativo. Por exemplo, o ritmo. O filme move-se a um ritmo prodigioso e não há um único fotograma que seja inútil, redundante ou aborrecido.
Vale a pena determo-nos um pouco sobre esta questão do ritmo. Se toda a história é uma metáfora da vida, então um filme deverá seguir o ritmo particular dessa mesma vida. Ora, o andamento do nosso quotidiano não é uniforme, pois os momentos de maior agitação alternam geralmente com os de algum sossego: o frenesim do trabalho no escritório, uma visita mais tranquila ao café da esquina para retemperar energias e o regresso à confusão quando se conduz o automóvel de volta a casa. Algo de semelhante acontece com os filmes: uma sequência lenta talvez pareça aborrecida se vier após outra sequência igualmente lenta; mas se preceder uma sequência mais dinâmica, poderá já ser bem acolhida. É tudo uma questão de contexto.
Um excelente exemplo da mestria de Spielberg é a sequência em que o embarcadouro é destruído pelo monstro marinho. É um momento pleno de ritmo, precisamente porque junta com eficácia o terror e o humor. Os dois pescadores escapam ao ataque do tubarão por uma unha negra e um deles desabafa: «Já podemos ir para casa?!» É uma réplica divertidíssima e no tempo certo, que permite que o espectador dê uma saudável gargalhada e liberte a tensão acumulada. Mais uma vez, é uma questão de contexto.
A primeira aparição do tubarão branco também conjuga esses dois elementos, mas agora na ordem inversa: primeiro o humor e depois o terror. Já no barco de pesca, o protagonista lança isco ao mar e resmunga que não tem muita vontade de estar ali «a atirar aquela merda»; nesse preciso instante, o tubarão irrompe das águas e exibe as suas temíveis mandíbulas. Uma entrada em grande! Até então, o monstro marinho nunca nos havia sido mostrado, mas apenas sugerido por uma série de sinais indiciadores da sua presença: a música de John Williams, os gritos de terror dos banhistas ou a barbatana dorsal à superfície da água. Esta estratégia (que já se tornou num cliché do cinema do terror) seria repetida noutros filmes de Spielberg: por exemplo, a aproximação do T-Rex no Parque Jurássico é sinalizada pela agitação nas copas das árvores ou pelas vibrações da água.
O momento mais encantador do filme é aquele em que o protagonista e o filho brincam à mesa de jantar, que contrasta com o ritmo implacável do resto da história. Spielberg sempre teve um enorme afecto pelas crianças e a sua qualidade de pai de família exemplar emerge nessa magnífica sequência, a mais comovente e reveladora de toda a sua filmografia. Isto introduz a noção de verdade do cinema. Os filmes poderão ser obras ficcionais, mas são também profundamente verdadeiros, porque desvelam o universo interior dos cineastas e deixam registadas a sua personalidade e psicologia. É essa genuinidade de sentimentos que faz de Tubarão um filme com o valor de documento humano.